(continuação)
NON MEA VOLUNTAS (conclusão)
Dai-nos, Senhor, a graça da perseverança em todas as situações, todos os transes, todas as amarguras
do corpo. Elas se opõem mais aos defeitos da alma, que são os que ofendem a Deus. E do que sofria a Alma de Cristo? Do que devemos sofrer nós?
De ver a vontade do Padre Eterno violada, Jesus, Nosso Senhor, recusado, negado, odiado. Pensar nisto, medir a extensão e a gravidade disto, é sofrer em nós as dores espirituais de Nosso Senhor.
Jesus Cristo e sua Igreja formam um só todo. Cada vez que vemos um anúncio imoral, uma sentença errada, uma instituição ou uma lei oposta à doutrina da Igreja, devemos sofrer. Senão, se para isto não temos zelo nem forças, servimos tão somente para “ficar sentados” e na hora do perigo fugir.
“Em tristeza mortal”: isto é, em suma tristeza. A tristeza de ver a Lei violada, a Igreja perseguida, a glória de Deus negada, deve ser em nós uma tristeza suma, e não, apenas uma dessas tristezinhas emotivas e passageiras como as que se desprendem das almas frívolas e impressionáveis, à maneira dos fogos fátuos dos charcos e dos cemitérios.
Uma tristezinha de epiderme, que não arranca de nós resoluções sérias, zelo profundo, renúncia efetiva de tudo para só viver lutando. Uma alma em “tristeza mortal” não se consola com revistas, com roupas, com restaurantes, com passeios, com bagatelas honestas... ou desonestas! Ela viverá no pesar mortal da glória de Deus ultrajada, encontrando lenitivo só e só na vida interior e no apostolado.
“Demorai-vos aqui”, isto é, não vos mistureis nem com os filhos pérfidos de Jerusalém, nem com os tíbios que a poucos passos daqui dormem.
“Ficai comigo”. Sim, participai de minha solidão, de minha derrota, de minha dor. Fazei disto vossa glória, vossa alegria, vossa riqueza.
E adiantando-Se um pouco, prostrou-Se com o rosto em terra” (S. Mateus XXVI, 39).
Porque “adiantar-Se um pouco”, se queria que os três Apóstolos “ficassem com Ele”? “Ficar com Nosso Senhor” é ficar perto dEle em espírito, é estar solidário com Ele. “Fica” com Ele quem está com a Igreja de todo o coração, toda a alma, todo o entendimento. “Fica” com Nosso Senhor quem nas horas de agonia pensa nEle e não em si. “Fica” com Nosso Senhor quem pensa só nEle, e não no mundo, seu espírito e seus deleites.
Nosso Senhor adiantou-Se só “um pouco”, a “um tiro de pedra”, diz S. Lucas (XXII, 41). Porque “adiantar-se”? E porque apenas fazê-lo “um pouco”? Nosso Senhor queria ser visto, para manter na fidelidade os três Apóstolos escolhidos, queria consolá-los, e consolar-Se sentindo-os perto. Mas era mister que “Se adiantasse”, porque era chegada uma hora de especial gravidade. Ia falar com Deus, e Deus ia falar-Lhe. Assim como no culto judaico o Sacerdote entrava só, no Santo dos Santos, assim também Nosso Senhor quis dar só, este primeiro passo de sua Paixão.
Temos na alma solidões santas destas, píncaros em que só Deus e nós estamos, e a que nenhum confidente, nenhum amigo, nenhum afeto terreno chega, no qual só admitimos o olhar de nosso Diretor? Ou somos destas almas sem reservas nem nobreza, abertas a todos os ventos, a todos os olhares, a todos os passos, como uma vulgar praça pública?
“Prostrou-Se em terra”. Humilhação completa, renúncia total. É a vítima pronta para o holocausto.
Que preparação para a oração! Quando falamos a Deus, “prostramo-nos em terra” antes? Isto é, vamos humildes, prontos a obedecer, desejosos de renunciar a tudo, reconhecendo nosso nada? Ou vamos com reservas, com reticências, com pontos doloridos em que Deus não nos pode pedir um sacrifício? Quando ouvimos a Igreja, “prostramo-nos em terra”, renunciando a todas as nossas opiniões, a todas as nossas vontades, para obedecer? Junto àqueles que nos edificam, aproximando-nos da Igreja e do Papa, “prostramo-nos em terra” aceitando sua influência, ou erguemos barreiras, levantamos restrições?
Orando e dizendo: Pai meu, se é possível, passe de Mim este cálice: todavia não seja como Eu quero, mas sim como Vós” (S. Mateus XXVI, 39).
Estar prostrado em terra, mas ao mesmo tempo orar! Com o corpo posto no que há de mais baixo, que é o chão, e subindo com a alma até o mais alto dos céus, que é o trono de Deus! Nisto está a invencibilidade do verdadeiro católico. No auge da aflição, da humilhação, do desamparo, ele tem ainda nas mãos a arma que vence todos os adversários. Quanto isto é verdade nas lutas da vida interior! Sem recursos para encontrar o caminho, ou para resistir, rezamos... e acabamos por vencer. E quanto é verdade no apostolado! Apavora-nos o ímpeto da onda paganizante? Pensamos logo em concessões, nas quais sacrificamos o acidental por que é acidental, o essencial secundário, porque é secundário, e por fim o principal... “para evitar mal maior”. Se conhecêssemos a força da oração, se soubéssemos “prostrar o rosto em terra e rezar”, compreenderíamos melhor a eficácia de nossas armas sobrenaturais, o sentido, o valor, a utilidade da intransigência cristã. O Divino Salvador sofreu aqui pelos pessimistas, pelos desanimados, que não têm a noção da força triunfal da Igreja.
“Passe de Mim este cálice...” Qual o cálice? Era o sofrimento atroz, esmagador, injusto, que se aproximava, e que Jesus antevia. Neste passo, o Divino Mestre padeceu pelos que pecam por otimismo, pelos que, colocados diante de perspectivas de luta, de angústia, de dor, praticam a política do avestruz, e entendem que “vai tudo muito bem”. Prever a dor, preparar-se corajosamente para ela, é alta, altíssima virtude. E isto quer se trate de nossa vida particular, quer da causa da Santa Igreja. Neste momento em que Ela é tão combatida, não tenhamos a estultice de dizer que vai tudo bem. Reconheçamos a gravidade da hora, olhemos varonil e cristãmente para as ameaças do futuro, com ânimo resoluto e confiante, prontos a reagir pela oração, pela luta, pela aceitação plena do sacrifício.
Foi o exemplo que o Divino Mestre nos deu. Retirou-Se de todos, para face a face com Deus, medir em toda a extensão o oceano de dores que vinha sobre Ele, e tomar atitude diante desta perspectiva.
Que atitude: “se é possível, passe de Mim este cálice: todavia, não seja como Eu quero, mas sim como Vós”.
Duas súplicas aí se contêm. Numa, o Homem-Deus pede que a dor dele se afaste “se é possível”. Noutra a aceita caso não seja possível evitá-la.
Atitude santa, sem teatralidade nem vanglória. A dor causa naturalmente pavor ao homem, e Nosso Senhor, que é não só verdadeiro Deus mas ainda verdadeiro homem, tinha pavor da dor. Pediu pois que “se possível”, fosse ela afastada. Evitar a dor é legítimo, sábio, santo. Mas evitá-la a qualquer preço, não: só “se possível”.
“Se possível”: o que quer dizer isto? Se diante daquela súplica humilde de um Justo esmagado pela antevisão da dor a vontade divina pudesse mostrar-se exorável, afastando o sofrimento, que assim fosse. Mas se pelo contrário afastar aquela dor era introduzir uma modificação nos planos da Providência, com diminuição da glória de Deus e do bem da Igreja que seria fundada, e das almas, então era melhor sofrer tudo.
“Se possível”... sublime condicional, que o século não conhece. E por isto o mundo inteiro está em crise, em transe, em agonia. Bens da terra, riqueza, glória, saúde, formosura, tudo isto é bom na medida em que lhe sobreponhamos a vontade de Deus. Mas se é preciso renunciar a tudo porque em virtude desta ou daquela circunstância interior ou exterior “não é possível” ter estas coisas sem desagradar a Deus, então façamos a renúncia completa. Se todos os homens pensassem e sentissem assim, seria outro o mundo! É por falta desta condicional na qual está contida toda a ordem e todo o bem, que a civilização vai perecendo.
“Não seja como Eu quero, mas sim como Vós”. Palavras sobre as quais assenta toda a vida da Igreja, das almas e dos povos. Palavras santas, doces, duras e terríveis, que o homem de hoje não quer entender. Definição perfeita da obediência, desta obediência que desde Lutero cada vez mais o mundo odeia.
Sim, faça-se a vontade de Deus e não a minha: cumprirei os Mandamentos, e não seguirei meus caprichos. Pensarei com o Papa, ainda que a mim se me afigurasse preferível outra doutrina. Obedecerei a todos os que exercem sobre mim um legítimo poder, porque representam a Deus: e por isto farei a vontade deles e não a minha.
Meu Jesus, como explicar à vista disto, que ainda se diga que fostes um revolucionário, e que viestes trazer à terra a Revolução?
Depois disto, há um silêncio. Os Evangelhos não nos contam o que foi respondido, nem o que Jesus disse a essa Resposta. Para que dizê-lo? E com que palavras? Provavelmente na terra só uma pessoa viu tudo, soube tudo, adorou tudo: Maria Santíssima, presente sem dúvida em espírito a tudo, e de tudo participando.
O tema é alto demais para que interpretemos este silêncio, que nem os Evangelistas quiseram romper. Peçamos à Medianeira de todas as graças que nos inicie no recolhimento da vida interior e nos mistérios inefáveis deste momento de silêncio.
Jesus aceitou. “Apareceu-Lhe então um Anjo do céu que O confortava. E posto em agonia orava com mais instância. E veio-Lhe um suor como gotas de sangue que corria até a terra” (S. Lucas XXII, 43 e 44).
Começou assim a Paixão. Jesus previra a dor e a morte, e as aceitara. A simples previsão do inevitável O colocava diante de um cúmulo de tormentos acabrunhador.
Mas “um Anjo O confortava”. Sim, sua súplica humilde fora ouvida. Deus Lhe dava forças para vencer o tormento invencível, suportar a dor insuportável, aceitar com conformidade a injustiça inaceitável.
Se compreendêssemos isto! Os Mandamentos nos parecem por demais pesados, ruge em nós o vento dos apetites desregrados e das tentações diabólicas. Se compreendêssemos que esta é a hora de Deus, se “orássemos com maior instância”, se aceitássemos a visita do Anjo que nos conforta! Sim, porque também para nós o Anjo vem sempre, desde que rezemos. Ora é um movimento interior da graça, ora é um bom livro, ora um amigo que nos dá um bom exemplo, ou um bom conselho. Mas nós não rezamos. Resultado, caímos.
Na Agonia, o Anjo veio, como fruto da oração. Recebida sua visita, Nosso Senhor continuou a orar: sim, rezar mais insistentemente é o grande segredo da vitória. Quem reza se salva, quem não reza se perde, dizia Santo Afonso de Ligório. E como tinha razão! Jesus suou sangue. O Sangue Redentor correu pela pressão da dor moral. Pode-se dizer que era sangue do Coração. Que magnífico tema para os devotos do Sagrado Coração.
Suar sangue é o extremo da dor. É o ponto mais alto da pressão do sofrimento moral sobre o corpo. Dir-se-ia que Nosso Senhor estava suportando tudo quanto podia em matéria de sofrimento. Entretanto, nem sequer o primeiro passo da Via Sacra estava dado.
Como explicar esta resistência incomparável? Seu martírio começava onde o de outros chega ao auge.
É que “um Anjo do céu O confortava”, e “Ele orava mais insistentemente”...
Oh valor do sobrenatural! E nós ousamos dizer que é por falta de forças que capitulamos na vida interior, ou nas lutas do apostolado!
Três vezes disse o Senhor o seu “fiat”(cf. S. Mateus XXVI, 39-44). E depois de cada qual veio aos discípulos.
Da primeira vez, “achou-os dormindo” (S. Mateus XXVI, 40). E lhes recomendou: “Vigiai e orai por que não entreis em tentação. O espírito na verdade está pronto, mas a carne é enferma” (S. Mateus XXVI, 41).
Mas eles não fizeram caso. Por que? Tinham sono. Um sono feito de dois excessos opostos. De um lado, o desespero, de outro a presunção. - O desespero: diante da derrota humana de Jesus, seus sonhos de grandeza terrena estavam desfeitos. O que lhes restava? Aquelas trevas, aquela solidão, aquele chão duro e vulgar em que estavam. A carreira cortada, oh dor das dores! Sob o peso desta dor a única coisa a fazer era dormir. - A presunção: entretanto, tinham-se como fortes. Haviam lutado tanto, certamente seria ofensivo duvidar de sua força. E, convictos de sua resistência, despreocupados por sua perseverança, “matavam o tempo” dormindo.
Sono feito além do mais de grosseria. O Senhor sofria, e eles dormiam! Que se lhes dava o Senhor? Já não Lhe faziam um infinito favor em estar com Ele ali, naquele abandono? O que mais queria? Que ainda ficassem rezando fora de hora? Não. Ele que vigiasse, se quisesse. Quanto aos Apóstolos, iriam dormir.
À medida que se dorme, fica mais pesado o sono. É este o processus de desenvolvimento da tibieza. Da segunda vez, Jesus “os achou dormindo porque seus olhos estavam carregados de sono” (S. Mateus XXVI, 42). Sono da mediocridade, do relaxamento, da moleza. Seguiam eles ainda o Mestre? Sim, e não. Sim, porque afinal ali estavam. Não, porque já Lhe não davam ouvidos. Ele falava, eles desobedeciam. Ele sofria, eles dormiam. Era um início de ruptura.
Como se dão quedas destas tão desastrosas? Dormir quando Jesus fala, é para mim estar desatento, displicente, tíbio quando me falam os que representam a Santa Igreja, os que me devem guiar pelas vias da santidade, aqueles que encarnam para mim pelo seu exemplo, a ortodoxia, a generosidade, a fome e sede de virtude. Quando caio neste sono, que remédio há, senão despertar-me “vigiando e orando para não cair em tentação”? E se não o faço qual é o resultado?
O fracasso na vida espiritual e na vocação. Da terceira vez as palavras de Nosso Senhor são de censura: “Dormi agora e descansai. É chegada a hora; eis que o Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores. Levantai-vos, vamos; eis aí, o que Me há de entregar está próximo” (S. Mateus XXVI, 45-46).
Era passada a hora. Nem sequer a súplica afetuosa e carregada de dor os havia comovido: “uma hora não pudestes velar?” (S. Marcos XIV, 37).
Daí a pouco, e “quando ainda falava Jesus, veio Judas Iscariotes, um dos Doze, e com ele uma multidão de gente com espadas e paus” (S. Marcos XIV, 43). E pouco depois “os seus discípulos, desamparando-O, fugiram todos” (S. Marcos XIV, 50).
Fugiram, sim, porque haviam sido tíbios, haviam dormido, não haviam rezado. Se eu, Senhor, não quiser fugir, devo ser firme, não posso dormir, tenho de rezar.
Dai-me, Senhor, essa graça da perseverança em todas as situações, todos os transes, todas as amarguras; essa graça da fidelidade em todos os abandonos, todos os desamparos, todas as derrotas; essa graça da firmeza ainda que todos Vos abandonem opressos pelo sono ou enlouquecidos pela concupiscência das coisas da terra. Ou então, meu Deus, levai-me desta vida. Pois uma coisa eu não quero: fugir.
Pela intercessão onipotente de vossa Mãe Santíssima, é esta graça da perseverança que Vos peço, Senhor Jesus.
OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX
PREJUDICADOS OS LIBERAIS POR SUA PRÓPRIA DESLEALDADE
Fernando Furquim de Almeida
À vista do artigo de "L’Ami de la réligion", Veuillot enviou ao Pe. Cognat, por intermédio de Melchior du Lac e Eugène Veuillot, a seguinte carta:
"Li em L’Ami de la réligion um artigo que me espanta. Tenho necessidade de saber positivamente, até hoje à tarde, se ele teve o seu assentimento. Queira, portanto, dizer-me se a interpretação de L’Ami é a que o Sr. mesmo dá às notas publicadas na Sexta-feira passada no Univers. Tenho necessidade de uma resposta por escrito, pois minha intenção é publicá-la".
O Pe. Cognat não respondeu, mas declarou a du Lac e Eugène Veuillot que concordava com o artigo de "L’Ami de la réligion".
Não era mais possível suspender o andamento do processo. No dia marcado, compareceram ao tribunal o "Univers", representado pelo seu gerente Barrier, tendo como advogado um jovem que se iniciava na profissão, Josseau; e o Pe. Cognat, para quem Mons. Sibour e Mons. Dupanloup tinham conseguido como defensor um antigo ministro de Luís Felipe e do Príncipe-Presidente, Dufaure. Uma multidão enchia a sala do julgamento, notando-se entre os assistentes o General de Cotte, ajudante-de-campo do Imperador, que muito provavelmente ali fora como observador de Napoleão III.
Apesar do renome, da inteligência e da habilidade de Dufaure, a causa do "Univers" era tão justa que, no correr da instrução, ficou patente a fraude do Pe. Cognat, e tudo fazia prever sua condenação.
Entretanto, a 3 de janeiro de 1857 o Arcebispo de Paris, Mons. Sibour, é assassinado durante um pontifical na Igreja de Saint-Etienne du Mont, por um sacerdote, o Padre Verger. Diante desse escândalo enorme, o Núncio e vários bispos amigos do "Univers" pediram a Veuillot que não prosseguisse com a ação, que deveria trazer a lume novos motivos de desedificação e consternação para os fiéis.
Veuillot sabia que o Pe. Cognat não deixaria de invocar, como último recurso de defesa, a proteção que lhe dispensava Mons. Sibour, bem como a aprovação deste ao "L’Univers jugé par lui-même", de modo que a condenação do Pe. Cognat seria também, pelo menos moralmente, a condenação do Arcebispo assassinado. Por outro lado, a desistência do processo poderia ser interpretada — como o vinha fazendo "L’Ami de la réligion" em relação a toda e qualquer negociação — como um recuo e uma confissão de Veuillot em face da "esmagadora argumentação" do folheto em questão. Daí sua indecisão em seguir os conselhos que recebera.
Essa indecisão cessou quando os vigários capitulares de Paris, Padres Buquet, Surat e Darboy, enviaram ao redator-chefe do "Univers" uma carta em que diziam:
"O Pe. Cognat se compromete a não reimprimir sua brochura e a não responder aos documentos que tendes a intenção de publicar. Mas esse compromisso não será publicado, porque nós somos sua garantia".
Relembremos que Veuillot exigia, como base para qualquer acordo, que o Pe. Cognat não reimprimisse o livro e que o "Univers" pudesse publicar um folheto constituído exclusivamente de documentos. Diante da carta dos vigários capitulares, em virtude da intervenção de prelados amigos, Veuillot cedeu em tudo, renunciando inclusive à publicação do folheto. Ficou estabelecido que na primeira audiência do tribunal o advogado do "Univers" leria uma nota combinada previamente e Dufaure não tomaria a palavra, encerrando-se desse modo o processo.
No dia 13 de janeiro, compareceram as duas partes perante o juiz, e Josseau leu a seguinte declaração, assinada pelo Pe. Cognat e pelo gerente do "Univers", Barrier:
"O Pe. Cognat e os redatores do Univers, tomando em consideração os conselhos benevolentes que lhes foram dados, e cedendo aos sentimentos que inspira a horrorosa catástrofe que consternou todas as almas cristãs, renunciam: o Pe. Cognat, a reimprimir a brochura intitulada L’Univers jugé par lui-même; e os redatores do Univers, ao processo por difamação que instauraram contra o autor dessa brochura, bem como à impressão dos documentos por eles preparados para a causa".
Com espanto geral, inclusive do juiz, Dufaure logo a seguir pede a palavra e lê esta carta:
"Sr. Padre, a circunstância dolorosa em que nos encontramos, e razões superiores, impõem-nos o dever de pedir-vos positivamente, como vossos chefes eclesiásticos, que aceiteis a transação inclusa [a declaração que transcrevemos acima], que porá termo ao processo entre vós e os redatores do Univers.
"Queira aceitar, Revmo. Padre, a expressão de meus devotados sentimentos, em nome de meus colegas. Buquet, Vigário Geral Capitular".
E Dufaure acrescentou:
"Em virtude desta carta, o Pe. Cognat julga dever aceitar a desistência do Univers".
Violação flagrante de todos os acordos, a carta do Vigário Geral Capitular dava ganho de causa ao Pe. Cognat. Apesar de tudo, quando o juiz, que estava a par das negociações, perguntou ao gerente do "Univers": "Sr. Barrier, o Sr. mantém a sua desistência?", Veuillot fez-lhe sinal de que consentisse.
Ficaram tão mal para "L’Ami de la réligion" e seus partidários todas essas deslealdades, que a questão, que deveria se encerrar nessa sessão do tribunal, foi durante muito tempo vivamente comentada, e o Pe. Cognat acabou completamente desmoralizado.
NOVA ET VETERA
Superação da luta de classes
J. de Azeredo Santos
A chamada legislação trabalhista, máxime aquela outorgada durante o Estado Novo e lamentavelmente ainda em pleno vigor, se acha nitidamente orientada no sentido da luta de classes. Visa ela aquilo que na prática se pode esperar de uma árvore má. Com efeito, os frutos dessas famigeradas leis sociais aí estão bem visíveis: exacerbação das questões entre capital e trabalho, diminuição e mesmo sabotagem da produção e seu consequente encarecimento.
Junte-se a isso a intervenção estatal em outros setores da vida econômica, tal como no dos preços, com a criação artificial do câmbio negro, e veremos que o fim colimado pelos mentores dessas reformas sociais aparentemente desordenadas não são em primeiro lugar as encenações demagógicas que sempre acompanham tais atuações. Têm elas um efeito convergente que vem a ser o preparo do terreno para a chamada "democracia econômica", eufemismo com que se costuma ocultar a hidra socialista.
IGUALITARISMO SINDICALISTA
Uma certa política sindical também se filia a essa "linha justa" da subversão coletivista. Seria o sindicato o instrumento para a implantação da igualdade política e da igualdade econômica. Quanto a esta, não tinha em mira outra coisa o movimento que chegou a atingir certos ambientes católicos no sentido de se considerar a co-gestão e a participação nos lucros como um direito natural do trabalhador a ser exercido através dos sindicatos operários, que passariam assim a possuir poderes verdadeiramente ditatoriais no campo econômico. Do ponto de vista político, o sindicalismo seria o instrumento desejado para a chamada reforma de estrutura. Os dirigentes dessas enormes massas eleitorais passariam a deter em suas mãos também poderes políticos discricionários.
Substitui-se, assim, o verdadeiro bem comum pelos interesses de um grupo. Tal ordem de coisas seria radicalmente injusta mesmo que o poder econômico e político passasse de fato às mãos da classe proletária, o que na realidade não acontece, pois as massas inconscientes são simples joguetes à mercê de aventureiros que trazem o santo e a senha para essa subversão social.
Ora, para justificar essa apregoada e farisaica ascensão do proletariado, é comum apelar-se para a doutrina social da Igreja, nela trocando o principal pelo acessório e deturpando esse mesmo acessório, como na questão da co-gestão e da participação nos lucros das empresas. E esse principal diz respeito justamente ao princípio diretor da organização da vida econômica.
Ao verberar tais deturpações do pensamento de Pio XI disse o Papa reinante em alocução de 31 de janeiro de 1952: "Não podemos ignorar as alterações com que se mascaram as palavras de alta sabedoria de Nosso glorioso Predecessor Pio XI, atribuindo o peso e a importância do programa social da Igreja em nosso tempo, a uma observação de todo acessória acerca das eventuais modificações jurídicas nas relações entre os operários sujeitos à avença de trabalho e o outro contratante; e passando, por outro lado, mais ou menos em silêncio a parte principal da Encíclica "Quadragesimo Armo", que contem na realidade aquele programa, vale dizer, a idéia da ordem corporativa profissional de toda a economia". Nada mais alheio ao pensamento de Pio XI, acrescenta o Santo Padre, do que o encorajamento a prosseguir no caminho que conduz para as formas de uma responsabilidade anônima coletiva, como seria a co-gestão econômica imposta coercitivamente através dos sindicatos operários.
Há um outro documento que também mostra de modo claro qual o verdadeiro pensamento de Pio XI sobre a organização da vida econômica: é a Encíclica "Divini Redemptoris" contra o comunismo. Diz ali o inolvidável Pontífice: "Nessa mesma Encíclica (a "Quadragesimo Anno") havíamos mostrado que os meios para salvar o mundo atual da triste ruína na qual o liberalismo amoral o lançou, não consistem na luta de classes e no terror, nem no abuso autocrático do poder estatal, mas na penetração da justiça social e do sentimento de amor cristão na ordem econômica e social. Havíamos mostrado como uma sã prosperidade deve ser reconstruída segundo os verdadeiros princípios de um sadio corporativismo que respeite a devida hierarquia social, e como todas as corporações devem ligar-se em harmônica unidade, inspirando-se no princípio do bem comum da sociedade. E a missão mais genuína e principal do poder público e civil consiste sobretudo em promover eficazmente esta harmonia e coordenação de todas as forças sociais".
ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA DA VIDA ECONÔMICA
A vida econômica é um todo orgânico. E a natureza, diz Pio XI, "inclina os membros de um mesmo oficio ou de uma mesma profissão, qualquer que ela seja, a criar agrupamentos corporativos, a ponto de muitos considerarem tais agrupamentos como órgãos, senão essenciais, pelo menos naturais" ("Quadragesimo Anno").
Esta, portanto, seria a ordem natural das coisas: unirem-se os membros de uma mesma profissão ou atividade econômica, não apenas horizontalmente, como participantes de determinada classe, para pugnar por seus interesses, mas também e sobretudo no sentido vertical, segundo a hierarquia existente em determinado setor econômico. "Que esta solidariedade se estenda a todos os ramos da produção, que se torne o fundamento de uma melhor ordem econômica, de uma sã e justa autonomia, e abra às classes trabalhadoras o caminho para conquistar honestamente sua parte de responsabilidade na condução da economia nacional! Desse modo, graças a essa harmoniosa coordenação e cooperação, a esta mais íntima união do trabalho com os outros fatores da vida econômica, o trabalhador chegará a encontrar em sua atividade um ganho tranquilo e suficiente para o sustento próprio e de sua família, uma verdadeira satisfação do seu espírito e um poderoso estímulo no sentido de seu aperfeiçoamento" (Pio XII, alocução sobre o sindicalismo cristão, de 11 de março de 1945).
Como se vê, nada de mais oposto à totalitária república sindicalista e outros movimentos cripto-coletivistas caudatários da luta de classes. Nem se deve alimentar a ilusão, convém acrescentar, de que a própria organização corporativa seja uma panacéia que resolva todos os nossos problemas. Seu âmbito se acha bem circunscrito e está longe de abranger toda a riqueza, toda a complexidade, todos os diferentes aspectos da realidade social.