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SANTO AGOSTINHO, FULMINADOR DAS HERESIAS E ORÁCULO DOS SÉCULOS

Cunha Alvarenga

TRANSCORRE neste ano mariano de 1954 o 16o centenário do nascimento de Santo Agostinho, cuja festa litúrgica é celebrada a 28 do corrente mês de agosto. Constitui tarefa que escapa aos limites de um simples artigo de jornal falar sobre todos os aspectos da personalidade e da ação omnímoda desse gigante da ortodoxia, desse inefável apóstolo da graça e fulminador das heresias, trono da ciência, oráculo dos séculos, síntese dos antigos Doutores e fonte inesgotável onde se têm abeberado todos os que vieram depois. Queremos apenas focalizar alguns ângulos da quadra histórica em que surgiu na arena esse imenso atleta da Fé, em uma tentativa de estabelecer confrontos com o que se passa em nossos dias, para demonstrar que a lição ministrada pela vida e pela obra de Santo Agostinho ainda é de flagrante e palpitante atualidade.

Dizia o Santo Padre Pio XI que "povos inteiros estão em perigo de cair de novo em uma barbárie pior que aquela em que jazia a maior parte do mundo ao aparecer o Redentor" (1).

Ora, ao tempo de Santo Agostinho vemos os últimos estertores daquele mundo pagão e demoníaco, senil e decadente, e o lançamento das bases da estrutura religiosa, política e social que haveria de constituir a Cristandade ou civilização cristã. Assistiu Santo Agostinho ao choque das duas civilizações e nele tomou parte ativa, dos dois lados até, pois, bem conhecemos seus desvarios e sua participação nas abominações do maniqueísmo antes de sua total conversão à Santa Igreja de Deus.

A medida do Santo é a eternidade. Não anda à procura dos aplausos e dos êxitos efêmeros do mundo, mas da maior gloria de Deus e de sua Igreja. É comum um certo gênero de hagiografia que mostra a vida dos Bem-aventurados como uma trajetória de conversões irresistíveis e de vitorias espetaculares sobre os inimigos de nossa Fé. Ora, não é o discípulo maior do que o Mestre, e se o Verbo Eterno veio ao que era seu e os seus não O receberam, se previu o Nosso Divino Redentor que o mundo perseguiria aos seus apóstolos e discípulos por haver antes perseguido a Ele, veremos em Santo Agostinho igualmente essa marca dos verdadeiros eleitos: também ele foi um sinal de contradição.

Viveu naquele mundo crepuscular em que Satanás porfiava por conservar em suas garras o gênero humano remido pelo Sangue do Crucificado. Como acontece com todos os grandes espíritos, não conhecia o grande Doutor, uma vez abraçada a Verdade, essa zona cinzenta que assinala o compromisso entre o bem e o mal, a luz e as trevas. Seus olhos se fixam no azul puríssimo da doutrina da Igreja e se afastam, horrorizados, do vórtice tenebroso do inferno.

Sua vida foi uma constante luta em favor dessa "Cidade de Deus" que ele haveria de celebrar em seu livro famoso, "epitáfio do mundo pagão greco-romano e marco inicial do mundo cristão".

Se houve época em que se pudesse pregar o pluralismo religioso foi essa em que viveu o Bispo de Hipona. Não somente perduravam os cultos idolátricos dos pagãos, mas a sinagoga se achava bem ativa e o mundo cristão jazia mergulhado no gnosticismo em suas variadas seitas. Entretanto, logo depois de convertido, vemos o filho de Santa Mônica combatendo o maniqueísmo não somente em debates públicos, mas em seus escritos e por sua ação persuasiva e pessoal junto às vítimas e aos veiculadores desse amontoado de iniqüidades. Preocupava-se sobretudo em refutar e em converter os donatistas. Tal seita era tão poderosa na África, quando da conversão de Agostinho, que seu concilio de Bagale reuniu trezentos bispos, afora cem outros que seguiam denominações diversas, como hoje se diria. Em Hipona, os católicos eram em tão pequeno número, e os donatistas dominavam de modo tão absoluto, que, pouco antes do pontificado de Santo Agostinho, Faustino, bispo e chefe da seita, havia chegado ao cúmulo de proibir o fabrico de pão para os católicos. Foi no meio de uma pequena cristandade assim oprimida e espezinhada, e não em uma época sacral, que a ação do grande Santo começou a se desenvolver.

Compunha, quando ainda simples Sacerdote, não somente livros mas também cânticos populares para refutar o erro dos donatistas e dos maniqueus. Tornado Bispo, escreveu o "Combate Cristão", em estilo fácil e simples, ao alcance de todos, no qual exorta os fiéis a combater e vencer o demônio. Para conservar a Fé pura, é necessário ouvir a Igreja Católica, espalhada por toda a terra, e repelir todos os erros que Ela condena.

Com o mesmo ardor vemos Santo Agostinho terçar armas contra o pelagianismo, que exagerava o papel do livre arbítrio até o ponto de nada deixar para a graça de Deus. Pelágio disseminava seus erros em colóquios secretos e sem publicar coisa alguma por escrito. São Jerônimo comparava a nova heresia ao orgulho de Lúcifer, que quis colocar seu trono ao lado de Deus. E, de fato, como São Tomaz nos ensina, o pecado do caudilho dos anjos rebeldes foi a presunção de chegar à felicidade sobrenatural e soberana, à visão intuitiva da Divindade, pelas únicas forças de sua natureza, como o faz o próprio Deus. De modo que foi Satanás o primeiro pelagiano, como foi o primeiro gnóstico ao tentar atingir a sabedoria sem a ajuda divina.

NÃO aguardou Agostinho que a Santa Sé se pronunciasse para atacar tão terrível inimigo. E depois de condenado o erro de Pelágio por Roma, prosseguiu sem esmorecimentos em seu combate. Acobertar semelhante falta doutrinária em um irmão na Fé fora misericórdia perversa, fora uma perversão da caridade. Pregando em Cartago sobre os pelagianos, dizia: "Ignorando a justiça de Deus e querendo estabelecer a sua própria, eles se esquivam da justiça de Deus. Meus irmãos, compadecei-vos comigo. Quando encontrardes desses tais, não os escondais, não tenhais por eles uma misericórdia pervernhais para com eles uma misericórdia perversa; ainda uma vez, quando os encontrardes, não os oculteis. Repreendei aqueles que se contradizem, trazei-nos

(continua)