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(continuação)

O MANIQUEISMO CONTINUA A SER A CAPITAL E CORTE DO IMPÉRIO DE SATANÁS

aqueles que resistem. Porque já se levou sobre este assunto o resultado de dois concílios à Sé Apostólica, de onde vêm os rescritos. A causa se acha encerrada; possa enfim o erro também acabar" (2).

Já ao tempo do Bispo de Hipona existia aquilo a que mais tarde se daria o nome de Igreja da caridade, através do sincretismo religioso que procurava unir em um mesmo corpo monstruoso o conglomerado de todas as seitas saídas do politeísmo, do judaísmo e de todas as mensagens mais ou menos fracas destacadas do Cristianismo. Daí se sentir impelido a escrever um livro sob o ¡título: "Da Verdadeira Religião". Nele mostra que não se deve procurá-la junto aos filósofos pagãos, que aprovam por suas ações o culto popular que condenam por seus discursos. Não se deve também procurá-la na confusão do paganismo, nem na impureza da heresia, nem no langor do cisma, nem na cegueira do judaísmo; ela se acha apenas na Igreja Católica, difundida por toda a terra, e que é chamada católica não somente pelos seus filhos, mas por todos os seus inimigos.

"Ela (a Igreja), convida os pagãos, expulsa os hereges, abandona os cismáticos, passa e se eleva acima dos judeus, abrindo a todos eles a entrada dos mistérios e a porta da graça, seja formando à Fé os primeiros, corrigindo o erro dos segundos, recebendo os outros em seu seio, ou admitindo os últimos à sociedade de seus filhos". E em suas "Retratações" observa que a verdadeira Religião, denominada cristã depois do advento de Cristo, existiu desde a origem do gênero humano. Eis por que já dizia Santo Epifânio que "o começo de todas as coisas é a Santa Igreja Católica".

A rebeldia contra a autoridade da Igreja não é própria das seitas protestantes de nossos dias, mas se acha bem caracterizada nessa origem gnóstica de todas as heresias. A revolta de Lúcifer encontra eco em todos esses movimentos heterodoxos: "Vós sabeis, escrevia Santo Agostinho a Honorato, que se caímos nas malhas dos maniqueus, é que eles prometiam nos introduzir até Deus e nos livrar de todo erro pelas luzes simples e evidentes da razão, sem que tivéssemos que humilhar nosso espírito sob uma autoridade qualquer".

CASTIGO DA CRISTANDADE AFRICANA

FOI por sua adesão à autoridade da Santa Igreja de Deus e à sua doutrina, foi pelo seu apelo às definições dogmáticas da Santa Sé Apostólica, foi pelo seu zelo inquebrantável pela causa da Cidade de Deus, que um Santo Agostinho, que um Santo Ambrósio, que um Santo Atanásio salvaram o mundo cristão do abismo que o queria tragar. Temos nos Padres da Igreja os grandes destruidores dessa anti-Igreja do demônio, ao mesmo tempo que os arquitetos da civilização católica então nascente.

Mas não presenciou Agostinho aqui na terra o florescer dessa civilização para a qual tanto contribuiu. Pelo contrário, morreu amargurado durante o assédio de sua cidade episcopal pelos vândalos. E nenhuma invasão de bárbaros superou em brutalidade, em destruição, em devastação à que sofreu o norte da África.

Tem-se dificuldade em compreender que a Providência punisse tão severamente uma região em que havia tantas e tão ativas Igrejas, com uma numerosa Hierarquia, tantas vezes congregada em solenes e doutos concílios para decidir sobre a vida espiritual dessas comunidades. Os autores católicos do tempo nos explicam por que isso aconteceu. Todos eles encaram essa desolação como um castigo merecido. Os próprios vândalos diziam que não era de seu próprio movimento que usavam de tanta crueldade, mas que sentiam uma força interior que os arrastava apesar de sua disposição. Com efeito, nos diz a história, jamais os bárbaros apareceram mais sensivelmente como ministros da vingança divina. Excetuado um pequeno número de servidores de Deus, a Cristandade africana inteira era uma sentina comum de todos os vícios e de todas as capitulações diante da impiedade. Muitos, posto que cristãos no exterior, eram pagãos na alma. Em pleno domínio do sincretismo religioso, adoravam a deusa Celeste, ou a antiga Astarté, e ao sair dos sacrifícios pagãos iam à igreja e se aproximavam da Sagrada Mesa. Em geral votava o povo uma aversão extrema aos Sacerdotes, por santos que fossem. Em todas as cidades da África e particularmente em Cartago, quando se via alguém vestido de hábito monacal, prorrompia a populaça em injúrias e maldições. Se um monge do Egito ou de Jerusalém vinha a Cartago, para alguma obra de piedade, logo que aparecia em público estouravam as chacotas, as vaias, cobriam-no de doestos (3). Imperava a imoralidade e a futilidade. Assim, ao entrarem os bárbaros invasores em Hipona, depois de vários dias de assédio, grande parte da população se achava entregue à sua principal preocupação, que eram os espetáculos de circo...

Com Santo Agostinho deixou de viver, de certo modo, a África cristã e civilizada. Porque, depois dessa época e até expirar sob o ferro dos muçulmanos, sua existência não foi senão uma longa agonia.

A semente da boa nova, que Santo Agostinho tanto ajudou a conservar, iria germinar em outras plagas, onde o terreno lhe seria propicio. E não foi por simples acaso que a "Cidade de Deus" constituiria, três séculos mais tarde, a leitura preferida de Carlos Magno, espada e escudo da Igreja e fundador do Sacro Império Romano do Ocidente.

A AÇÃO DA GNOSE ATRAVÉS DOS TEMPOS

MAS continuou a luta entre as duas Cidades, como há de continuar até o fim dos tempos.

E se a civilização católica pôde desenvolver-se e atingir as culminâncias do século XIII, deve-o ao zelo com que eram combatidos em seu seio e extirpados os erros religiosos que minaram e devastaram nas primeiras centúrias da era cristã praticamente toda a Igreja do Oriente, bem como extensas porções da Igreja latina.

Não se julgue, com efeito, que o gnosticismo, o maniqueísmo e suas variadas seitas sejam um fenômeno exclusivo da quadra histórica em que viveu Santo Agostinho. Do mesmo modo que os maniqueus foram meros continuadores dos gnósticos, assim, estes eram os descendentes, dos primeiros sectários contra os quais os Apóstolos e especialmente São Pedro se haviam levantado com grande força. O mistério de iniquidade, segundo a expressão de São Paulo, havia começado a se desenvolver desde o nascimento da própria Igreja: Satanás havia concebido desde então e dado ao mundo a doutrina anticristã e anti-social de que os gnósticos e os maniqueus seriam os primeiros propagadores, e que deveria ser mais tarde recolhida pelos paulicianos, pelos albigenses, pelos cátaros e por outros grupos heréticos da Idade Média, os quais, por sua vez, apesar de combatidos e exteriormente aniquilados, a transmitiriam às seitas secretas do Renascimento, para chegar até os nossos dias através das seitas maçônicas, e se tornar (quem sabe?) na grande heresia dos últimos tempos, quando o homem do pecado dirigir a luta final da Cidade do demônio contra a Cidade de Deus. Com efeito, as seitas maçônicas, as seitas maniqueias e as seitas gnósticas, apesar de sua multiplicidade e de sua diversidade aparente, professam no fundo os mesmos princípios e se encaminham para o mesmo alvo.

O gnosticismo ou o maniqueísmo foi canal pelo qual o conjunto das práticas infames do politeísmo tentou passar do paganismo ao Cristianismo. A gnose ou o maniqueismo ou atualmente as seitas maçônicas, são o centro oculto de convergência de todas as heresias, ou a heresia por excelência. Eis porque dizia São Leão Magno: "O demônio domina sobre todas as seitas, como sobre as províncias diversas de seu império; mas faz sua capital na heresia maniqueia. Ali, como em uma vasta corte, campeia sua pompa e magnificências de seu reino: porque nela juntou todos os gêneros de imposturas e de impiedades. Tudo o que há de corrupção no paganismo, e de cegueira entre os judeus carnais, tudo o que há de infame nos segredos da magia, tudo o que jamais existiu de sacrílego e de blasfemo em todas as heresias, se reuniu nessa seita abominável como em uma cloaca universal de todas as imundícies. Assim não é possível relatar todas as suas infâmias: a multidão dos crimes condena a palavra à impotência" (4).

E foi nesse trecho de São Leão Magno alusivo ao maniqueísmo que Gregório XVI, em pleno século XIX, iria se inspirar para apontar a origem maçônica das calamidades contemporâneas: "Devemos buscar a origem de tantas calamidades na ação simultânea daquelas sociedades às quais, como em imensa cloaca, tem vindo parar quanto de sacrílego, subversivo e blasfemo acumularam a heresia e a impiedade em todos os tempos" (5).

"Reencontramos mais tarde o maniqueismo nos albigenses, nos templários, e até nos franco-maçons de nossos dias, ao menos pelos formas e cerimonial de suas iniciações e sinais secretos de reconhecimento, literalmente descritos por Santo Agostinho, que, em sua mocidade, se deixara envolver pela seita dos maniqueus" (6), esclarece Augusta Nicolas em seu documentado estudo sobre "O Protestantismo e todas as heresias em sua relação com o Socialismo".

A LUTA ENTRE AS DUAS CIDADES EM NOSSOS DIAS

O mundo moderno vem sendo invadido de modo avassalador pela gnose. Já nos temos ocupado do assunto não somente em suas linhas gerais (7), mas em alguns de seus aspectos particulares, como por exemplo no setor artístico (8). De fundo gnóstico foi, como vimos, a Revolução Francesa, inspirada e promovida pelos sectários do maniqueismo moderno. De fundo gnóstico foi o positivismo com sua lei dos três estados ou otimismo evolucionista de base racionalista. Do mesmo fundo gnóstico, vindo por outra vertente, é o evolucionismo vertical e espiritualista de Maritain. Gnóstico é o ideal de uma sociedade sem classes do marxismo, como reconhece o próprio Maritain ao afirmar que "o humanismo de Marx é por excelência um humanismo desse tipo maniqueu de que já falamos em precedente estudo" (9). Gnóstico é o socialismo hodierno. "Manes, diz Santo Agostinho, reprovava toda posse de casas, de terras, de dinheiro" (10). Gnóstica é essa religião personalista ou autonomista do mundo moderno. A religião seria qualquer coisa de puramente interior e pessoal: nada de dogmas ou de regras exteriores para a vida, o que se rejeita como um atentado à dignidade da pessoa humana. Essa tendência fundamental do protestantismo, ditada pelo livre exame, vai alargando sua esfera de influência mesmo nos meios católicos. E é esse liberalismo religioso uma das marcas características do modernismo, heresia a que São Pio X chamava reunião de todas as heresias e a que o Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, atribui "esta catástrofe espiritual do mundo moderno" (11).

Gnóstica é essa tendenciosa (mo-posado?) pelos partidários modernos de um falso espiritualismo que coloca a Igreja nas nuvens e desarma os cristãos contra os seus piores inimigos: "Manes, escreve Santo Agostinho, reprovava a guerra, mesmo feita por justos motivos, se levantava contra as magistraturas públicas e aniquilava toda a ordem política" (12).

Gnóstica é essa tendência moderna ao sincretismo religioso. Com efeito, punham os antigos gnósticos no mesmo nível Cristianismo e paganismo, como se ambos fossem manifestações da mesma inteligência, que tenderia sem cessar a se desprender dos credos particulares, para se elevar à razão pura. Evolucionismo espiritual, culminância do evolucionismo da matéria, que também tenderia a se sublimar, a se libertar das formas brutas primitivas.

O neo-platonismo, também gnóstico, procurava do mesmo modo se valer de empréstimos feitos a várias correntes filosóficas e credos religiosos, amalgamando-as em sistema, o sistema do ecletismo e do sincretismo, que agora ressurge no teosofismo, no espiritismo, na "Igreja da caridade".

Tanto nos primeiros séculos como hoje, tal tolerância e fusão, "além de ser atentatória do Cristianismo dogmático, que não pode sofrer essas assimilações sacrílegas, não é senão uma tática para bater em brecha o Cristianismo prático e sua ação civilizadora sobre o mundo. O panteísmo, sob esse aspecto, não é somente o termo inevitável de todas as concepções humanas fora da Fé, é ao mesmo tempo o terreno mais favorável para essa grande conjuração. Fazendo tudo proceder de um mesmo princípio, tudo emanar de uma mesma inteligência, ele consagrava todos os erros, e autorizava sua coalização e sua liga contra a verdade que os excluía" (13).

Gnóstica, insistimos, é essa Igreja da caridade, à qual recentemente se referia o "Osservatore Romano" a propósito do caso dos Padres-operários: "Alguns apelam para a caridade contra a Igreja; ou melhor, para uma Igreja da caridade, contra a Igreja Hierárquica que estaria em oposição com ela. A Igreja da caridade seria a comunidade da salvação, da qual todos formam parte e na qual se afirma a consciência pessoal, enquanto que a Igreja Hierárquica estaria constituiria de estruturas exteriores, especialmente romanas, sustentadas por homens que nem sempre teriam a compreensão de seu tempo, cegos e fechados às exigências vivas, que se manifestam nele. A Igreja Hierárquica é a que condenou os comunistas e é amiga dos burgueses: a Igreja da caridade busca a libertação da classe operaria e abraça os comunistas.

"Esta distinção das duas Igrejas, conclui o órgão oficioso do Vaticano, é uma história velha e se repete sempre nos pseudo-espirituais de todos os tempos e de todos os tipos" (14).

Somemos a essas falsas místicas o materialismo do mundo moderno, a cupidez e a licenciosidade da sociedade de nossos dias, meditemos sobre a imensidão da messe fechada à Igreja de Deus pela cortina de ferro, e não teremos dificuldade em admitir que povos inteiros já se acham em uma barbárie pior do que aquela em que jazia a maior parte do mundo ao aparecer o Redentor, barbárie científica, que extermina os homens em câmaras de gazes ou pela bomba de cobalto e transforma a criatura humana em simples autômato, mas que tem de comum com os bárbaros das hordas de Alarico o desconhecimento ou desprezo da verdadeira Igreja, guardiã da lei natural e das normas jurídicas que desta decorrem para a constituirão de uma autentica civilização.

Eis, portanto, como é oportuna a visão que nos oferece o gênio de Santo Agostinho: a linhagem humana dividida em dois exércitos que se combatem, um sob o estandarte de Deus, outro sob o de Lúcifer. Que o mundo moderno, a exemplo do grande Bispo de Hipona, saia vitorioso dessa luta contra as trevas do maniqueísmo e abrace decididamente, em uma sincera conversão, Aquele que é o único para quem podemos ir, pois que tem palavras de Vida Eterna.

(1) Encíclica "Divini Redemptoris".

(2) Serm. 131, n. 10.

(3) Ver. por exemplo. Rohrbacher, "Histoire Universelle de l'Église Catholique". tomo 3. Pag. 447 a 449.

(4) São Leão Magno, Serra. V, "De jejun."..

(5) Encíclica "Mirari Vos" de 15 de agosto de 1832.

(6) A. Nicolas. "Du protestantisme et de tutes les hérésies dans leur rapport avec le socialisme". 2o vol., pag. 389.

(7) CATOLICISMO, no 28, abril de 1953, artigo: "...Et tu me suspendisti in patibulo crucis".

(8) Ver, por exemplo. CATOLICISMO, no 35, novembro de 1953. artigo: "Arte abestrata ou charlatanice teosófica?".

(9) "Humanisme integral". Pág. 101.

(10) "Contr. Faust.", liv. XXII, apud Rohrbacher.

(11) Alocução na canonização de São Pio X, 29 de maio de 1954.

(12) "Contr. Faust.", loc. cit.

(13) A. Nicolas, obra cit., 2o vol., pag. 394.

(14) “Osservatore Romano”, 24 de fevereiro de 1954.

EPISCOPUS, CONFESSOR ET DOCTOR


TOLERAR O MAL

EM VISTA DE UM BEM SUPERIOR E MAIS ALTO

Plinio Corrêa de Oliveira

Fazemos hoje os últimos comentários sobre o importante discurso do Santo Padre Pio XII aos participantes do V Congresso Nacional da União de Juristas Católicos Italianos (*).

Nesse documento, o Soberano Pontífice formula o seguinte problema:

"Conforme a confissão da grande maioria dos cidadãos, ou com base numa declaração explícita de seus Estatutos, os povos e os Estados-membros da Comunidade se dividirão em cristãos, não cristãos, religiosamente indiferentes ou conscientemente laicizados, ou ainda abertamente ateus. Os interesses religiosos e morais exigirão para toda a extensão da comunidade um regulamento bem definido, que valha para todo o território de cada um dos Estados soberanos membros de tal Comunidade das nações. Segundo as probabilidades e circunstâncias, é previsível que esta regulamentação de Direito positivo será enunciada assim: No interior de seu território e para os seus cidadãos cada Estado regulará os assuntos religiosos e morais com lei própria; sem embargo, em todo o território da Comunidade dos Estados será permitido aos cidadãos de cada Estado-membro o exercício das próprias crenças e práticas éticas e religiosas, sempre que estas não violem as leis penais do Estado em que eles residem. Para o jurista, o homem político e o Estado católico surge aqui a questão: podem eles dar consentimento a tal regulamentação, quando se trata de entrar na Comunidade dos povos e de permanecer nela?"

Como vimos em artigo anterior, o Soberano Pontífice responde afirmativamente à questão.

Assim pois, pode prever-se no futuro o estabelecimento no mundo de uma sociedade de nações soberanas, cristãs, pagãs, quiçá atéias, que inclua em seu estatuto a obrigação - livremente contraída pelos Estados-membros - de tolerar no território de cada uma a prática dos respectivos cultos aos súditos estrangeiros.

UMA RESTRIÇÃO

Esta tolerância terá um limite.

Sempre que a prática de uma religião implique em atos considerados criminosos pela lei nacional, não será obrigatório tolerar esses atos.

Bem entendido, esta restrição precisa ser interpretada com muito boa fé pelos Estados-membros. Qualquer chicana neste ponto destruiria pela raiz o delicado sistema. Assim, espera-se que só qualifiquem como criminosas ações que realmente o são segundo a ordem natural. Um Estado-membro poderá a este título proibir, por exemplo, e em qualquer caso, o culto imoral dos mórmons. Mas se, com fundamento na restrição indicada, os comunistas ou protestantes quiserem impedir a prática da Religião Católica mediante a alegação de que suas leis privadas consideram um crime a celebração da Santa Missa, estarão falseando o sistema e tornando-o inexequível para os católicos.

Como se vê, uma certa noção de moral natural, e uma certa retidão de propósitos são a base de toda a estrutura prevista na alocução pontifícia.

MERA TOLERÂNCIA

Note-se que não se trata de aprovação, mas de mera tolerância. A este respeito, a alocução não deixa margem à menor dúvida. Pois nenhum Estado católico pode propriamente autorizar a prática do erro: "Antes de tudo, cumpre afirmar claramente que nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma Comunidade de Estados, seja qual for o seu caráter religioso, pode dar um mandato positivo ou uma autorização positiva para ensinar ou fazer o que seria contrário à verdade religiosa ou ao bem moral. Um mandato ou uma autorização desse gênero não teriam força obrigatória e permaneceriam ineficazes. Nenhuma autoridade poderia dá-los, pois é contra a natureza obrigar o espírito e a vontade do homem ao erro e ao mal ou a considerar um e outro como indiferentes. Nem Deus sequer poderia dar tal mandado positivo ou tal autorização positiva, porque estariam em contradição com sua absoluta veracidade e santidade". E mais adiante acrescenta: "Com isto se esclarecem os dois princípios dos quais se deve deduzir nos casos concretos a resposta para a gravíssima questão referente à atitude do jurista, do homem político e do Estado soberano católico ante uma fórmula de tolerância religiosa e moral do conteúdo supra indicado, fórmula esta a tomar-se em consideração para a Comunidade dos Estados. Primeiro: o que não corresponde à verdade e à norma moral não tem objetivamente direito algum, nem à existência, nem à propaganda, nem à ação. Segundo: o não impedi-lo por meio de leis estatais e disposições coercitivas pode, não obstante, ser justificado no interesse de um bem superior e mais vasto".

A EXTENSÃO DA TOLERÂNCIA RELIGIOSA

A Alocução pontifícia fala de "exercício das próprias crenças e práticas éticas e religiosas". É óbvio que essas palavras se referem ao exercício individual da religião e da moral. Elas incluem o proselitismo? A pergunta pode formular-se. Pois, se de um lado a prática individual de uma religião não é a mesma coisa que a propaganda dessa religião, de outro lado quase todos os sistemas de moral com base religiosa incluem o proselitismo entre seus mais graves princípios.

A tolerância religiosa se referirá só aos súditos estrangeiros, ou também aos nacionais? A primeira hipótese nos parece mais consentânea com os termos da alocução. Mas a segunda não nos parece indefensável.

A tolerância se referirá também ao proselitismo ateu? Um Estado católico será obrigado, por exemplo, a tolerar propaganda atéia desenvolvida em seu território por súditos russos? A questão nasceria do fato de que a alocução prevê expressamente a participação de Estados ateus na sociedade internacional constituída, o que faria prever que esses Estados não concederiam liberdade à propaganda católica em seus territórios sem que reciprocamente se tolerasse a propaganda atéia nos Estados católicos. Questão delicada, por certo, a cuja solução não pode ser indiferente a seguinte observação: o Santo Padre fala, em sua alocução, acerca de tolerância de religiões falsas, mas não se refere uma só vez à tolerância do ateísmo.

UMA COMUNIDADE INTERNACIONAL DE RELIGIÕES

À vista da alocução pontifícia, poderia quiçá algum inter-confessionalista imaginar que uma liga das diversas religiões completaria harmoniosamente a Comunidade dos Estados, máxime se esta vier a abranger todos os povos da terra. A paz entre os povos, e sua concatenação em uma só entidade internacional, acentua muito o anseio de uma concórdia religiosa geral, e da concatenação de todas as Religiões num grande modus vivendi que elimine todas as disputas entre elas. Pois a unidade política se completa harmoniosamente com a unidade religiosa. Tal modus vivendi poderia basear-se num acordo. Cada religião renuncia a fazer proselitismo nos países em que está em minoria. As maiorias religiosas de cada país se absterão de uma ação ideológica militante em relação às minorias dissidentes.

É preciso dizer que esta hipótese não é compatível, nem com a doutrina católica genericamente considerada, nem com o texto da alocução. A Igreja recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo seu Divino Fundador, a missão de ensinar a todos os povos, em todos os tempos. Nunca aceitará Ela uma combinação que implique na renúncia definitiva ao direito de evangelizar este ou aquele povo, ou de combater heresias neste ou naquele lugar. Aliás, quando a alocução lembra que "nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma Comunidade de Estados, seja qual for o seu caráter religioso, pode dar um mandado positivo ou uma autorização positiva para ensinar ou fazer o que seria contrário à verdade religiosa ou ao bem moral", afirma implicitamente a nulidade de qualquer tratado, acordo, convênio, decreto ou edito que tivesse como consequência impedir a Igreja - na pessoa de seus Hierarcas ou de seus auxiliares no apostolado, os simples fiéis - de trabalhar pela salvação das almas, "a fim de que haja um só rebanho e um só Pastor". Ninguém deseja, mais do que a Igreja, a paz e a unidade religiosa do mundo. Mas sobre a pedra angular, que é Jesus Cristo, que são os Papas.

NEUTRALIDADE RELIGIOSA

A comunidade das nações nascerá assim sob o signo da neutralidade religiosa. Vimos que o Sumo Pontífice considera preferível a existência de uma Comunidade religiosamente neutra, ao prolongamento do regime de caos internacional em que vivemos.

Quer isto dizer que um coração católico deva considerar sem pesar e sem apreensão - sem um pesar muito profundo e uma apreensão muito viva - os efeitos que tal neutralidade religiosa exercerá no novel organismo internacional?

Para entender bem a posição católica neste assunto, é preciso apelar para os princípios, e especialmente para a Encíclica "Quas primas", de Pio XI, sobre o Reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo, Encíclica esta que tem tido nos documentos de Pio XII tão luminosos desenvolvimentos.

O Reinado de Jesus Cristo é para todas as sociedades humanas desde a família, passando pelos grupos intermediários, e até o Estado, a única situação inteiramente normal. Este reinado se realiza pela profissão pública e oficial da Fé católica pelas nações, e pela conformidade das leis e dos atos das coletividades humanas com a Lei de Deus.

Como a Lei de Deus está nos Mandamentos, é mister que as famílias, as corporações, os Estados cumpram estes Mandamentos quanto em si esteja. E como faz parte das obrigações do católico defender a verdade e o bem, e combater o erro e o mal, o Estado em que Nosso Senhor Jesus Cristo seja Rei se entregará - dentro de sua esfera - à nobre tarefa de auxiliar a Igreja na dilatação da Fé e extirpação das heresias, no fomento da virtude e na repressão do vício.

Assim procedendo, as nações católicas chegarão ao ápice de seu bem-estar, de sua dignidade, de sua glória. E isto por dois motivos. A Providência protege necessariamente os povos que lhe são fiéis. A observância da Lei de Deus traz necessariamente ao seio das sociedades humanas a ordem e a paz.

Este último ponto merece uma explanação. Os Mandamentos contém em si toda a ordem natural. Ora, um ente se desenvolve tanto mais, e tanto melhor, quanto mais as suas ações sejam conformes à sua própria natureza. Desde que todos os homens procedam de acordo com os Mandamentos, reinará na sociedade a ordem natural, e por isto mesmo a sociedade chegará a seu fastígio. Eis a razão por que Santo Agostinho proclamou que a Igreja Católica, fundada para levar os homens ao Céu, entretanto influência de modo tão profundo, tão forte, tão suave, tão benéfico a sociedade humana, que parece ter sido constituída só para o bem da vida terrena.

Pois bem. Esta ordem natural que a Igreja ensina, fora dela não pode ser inteiramente conhecida nem praticada. Com efeito, em consequência do pecado original a tendência para o erro e para o mal impede que as sociedades pelos meros recursos naturais conheçam em toda a sua extensão, e pratiquem em sua integridade, os princípios da lei natural. É preciso para tal o auxílio da Revelação e da graça. Revelação que só a Igreja tem missão de ensinar, graça que Deus não nega a homem algum, mas só nela se encontra na abundância torrencial que conhecemos. De sorte que, fora da Igreja, as sociedades humanas não podem viver segundo as suas próprias leis naturais constitutivas.

Vimos o que decorreu no passado, para as nações pagãs do fato de não conhecerem a Jesus Cristo. Muitas delas foram dotadas de um engenho que ainda hoje nos assombra. Formaram impérios que encheram o mundo de terror. Legaram obras de cultura e arte admiráveis. Mas se desfizeram em pó. É que traziam em si o germe da morte: não conheciam Jesus Cristo.

Vimos depois a que fastígio se elevaram as nações cristãs. Sua derrocada começou quando romperam com a Igreja de Jesus Cristo. E hoje estão a dois passos da catástrofe. Sua salvação, é claro, só pode provir de uma volta ao Divino Rei.

Se assim é, o que se poderia esperar da conjunção desses Estados, enquanto não se operar seu feliz retorno ao reino de Nosso Senhor Jesus Cristo?

* * *

Entretanto, cumpre não simplificar. Alguns rudimentos da lei natural, o homem os pode conhecer e praticar ainda quando caminhe fora das Veredas da Igreja. A Teologia o ensina, e a História o confirma. A grandeza de Roma veio-lhe exatamente deste fato.

Ora, um Papa não pode ser indiferente a que, num momento de bom senso, os povos extraviados se reúnam a fim de concertar esforços para praticar nas suas mútuas relações os rudimentos da lei natural. Nem pode ser indiferente ao bem que daí pode provir.

Ainda que, nas terríveis dificuldades de nossos dias, esse bem signifique apenas um hiato ou uma pausa no processo de desagregação do mundo hodierno, será o caso de alongar este hiato, de dilatar esta pausa.

E será apenas esse o bem? Quem conhece o dia de amanhã? Um hiato destes não será o momento escolhido pela Providência para operar alguma grande maravilha, e tocar os corações dos homens?

É neste pensamento, que não comporta ilusões mas também não se fecha a toda a esperança, que devem ser vistas as perspectivas de futuro que o eventual organismo internacional pode abrir.

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(*) O texto da alocução foi publicado em “CATOLICISMO”, nº 42, de junho último. Os artigos anteriores desta série saíram nos nºs 42 - “Desfazendo explorações maritainistas” e 43 - “A Comunidade dos Estados segundo as normas de Pio XII”.