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O SATANISMO SEGUNDO O DEPOIMENTO DA IMPRENSA CONTEMPORÂNEA

Paulo Corrêa de Brito Filho

Cena da macumba: a dança ritual

BEAUDELAIRE observou sagazmente que a "pior manha do demônio é fazer acreditar que não mais existe". Mas nem sempre o silêncio absoluto é o que mais convém ao Poder das Trevas. Daí tornar-se sua ação, ora mais, ora menos visível.

Na Idade Média, época em que floresceu admiravelmente a Civilização Cristã, o espírito maligno revelou-se muitas vezes em formas espantosas, procurando impressionar cidades inteiras. Era este o modo pelo qual podia fazer sentir sua presença no meio social de então, cujos costumes eram profundamente cristãos.

Hoje em dia, porém, vivemos em um mundo apóstata e paganizado. O espírito das trevas não tem vantagem em atemorizar a sociedade moderna com aparições extraordinárias, pois já domina em grande parte seus costumes, sua legislação e quase todas as suas manifestações de cultura. Tendo incutido no homem contemporâneo o racionalismo e o materialismo, conseguiu uma grande vitória : que a crença em sua existência seja negada e ridicularizada. Assim, seu poder vai se fortalecendo cada vez mais, camuflado por este hábil despistamento.

Entretanto, parece que, por outro lado, à medida que sua influência se aproxima do zenith, os véus da antiga discrição se vão tornando supérfluos, e Satanás começa a fazer ostentação do poder que tem. É o que explica, talvez, que as manifestações preternaturais se vão tornando sempre mais numerosas e a imprensa as vá registrando com crescente frequência.

O Satanismo na imprensa contemporânea

Numerosas revistas contemporâneas, em vários países, têm abordado a questão, denunciando a existência de tais fenômenos nas mais diversas regiões do globo, desde as altitudes inóspitas da Índia ou do Tibete, até o âmago das selvas africanas ou o recesso dos terreiros de macumba do Brasil.

"La Revue de Paris" publicou, em 1953, alguns artigos sobre a África que aduziam muitos fatos interessantes sobre fetichismo satanista no continente negro, Assim, em novembro do ano passado Alphonse Lipmann apresentou nessa revista um longo trabalho sobre dois povos selvagens da Somália Francesa, os Issas e os Danakil, cujos costumes sanguinários e práticas supersticiosas denotam acentuada influência diabólica. Já desde a cerimônia do batismo pagão pode-se observam o domínio que Satanás exerce sobre esses infelizes. A magia, através de amuletos presos ao pescoço das crianças e outras práticas estranhas, impregna toda esta cerimônia religiosa.

Há naquelas tribos um membro denominado "Djinellé", o que significa "possesso do demônio". Em determinadas noites, acompanhado de todo o povo ele se dirige a um lugar afastado da aldeia e ali, após alguns ritos preliminares, o demônio se apodera de seu corpo, e responde às questões formuladas pelo feiticeiro, revelando nessa ocasião uma ciência das coisas que supera de muito as possibilidades da razão humana.

Os feitiços lançados contra os inimigos, cujos efeitos maléficos puderam ser comprovados muitas vezes, constituem outro fenômeno digno de menção.

Christine Garnier escreveu na mesma revista, em setembro de 1953, curioso artigo sobre as iniciações efetuadas entre os africanos através das várias idades da vida. Trata também, em seu trabalho, de outro tema muito sugestivo, qual seja o das sociedades secretas do Cameron e do Togo, na África Equatorial Francesa.

Na revista inglesa "Illustrated", Pierre Gaisseau aborda igualmente o tema das iniciações, observadas em uma das tribos Toma, na Guiné Francesa. Todo jovem, por ocasião da puberdade, tem que se submeter a uma série de provas afim de ser admitido entre os adultos. Durante este período são-lhe ministrados conhecimentos de magia e de práticas diabólicas.

Várias revistas americanas e européias, tais como "Life", "Paris-Match", "Noir et Blanc", "Geographic Magazine", etc., publicaram reportagens sobre fatos impressionantes verificados na Índia, no Tibete, em várias ilhas do Pacifico e até mesmo nas Américas. Há certos ritos, como a dança do Bem e do Mal, que em substância são idênticos desde o Tibete até a Amazônia. O mesmo tipo de máscaras hediondas recobre o rosto dos selvagens que devem encarnar o mau espírito. O "Geographic Magazine", em seu número de maio de 1949, publica uma substanciosa reportagem sobre o Tibete, ilustrando com gravuras uma dessas cerimônias. 'O "Paris-Match" trouxe também curiosa descrição de uma cena análoga, ocorrida na ilha de Bali, no Pacifico, célebre em todo o mundo por seu fetichismo demoníaco.

Em janeiro deste ano, publicou o "Noir et Blanc" sugestivo trabalho sobre uma variedade desta dança, apresentada em Madras, na Índia. E mais próximo a nós, poderíamos invocar um artigo da revista "Réalités" sobre os silvícolas da Amazônia, entre os quais se encontram ritos dessa dança, muito semelhantes aos dos outros lugares. Aliás, este relato coincide com as descrições do conceituado etnólogo salesiano, Padre Colbachini, em seu profundo estudo sobre os bororós.

No Tibete aparece Yarna, o Rei dos Infernos

Em próximo artigo vamos nos ocupar com mais vagar do fetichismo africano. Aqui, abordaremos apenas algumas manifestações diabólicas ocorridas na Ásia e no Brasil. Assim, poderá o leitor constatar a presença visível e atual do Maligno, tanto entre nós quanto no Oriente.

Harrison Forman publicou na revista norte-americana "Harper's Magazine" um artigo intitulado "Eu vi o Rei dos Infernos", que foi condensado em "Seleções do Reader's Digest" em novembro de 1943. O autor viveu algum tempo na China, enquanto vendia aviões militares ao governo daquele país. Terminada sua missão, penetrou no Tibete, e conseguiu captar a confiança do velho Sherap, feiticeiro tibetano que o conduziu à Floresta Sagrada de Radia Gomba. Disfarçado em pagé da região, chegou o americano com seu guia a uma clareira, onde já se encontravam sentados em círculo uns dez feiticeiros. Pouco depois, surgiu um homem alto e de aspecto impressionante que se sentou sobre um grande bloco de pedra. Era Drukh Shim, o Grande Feiticeiro.

Quando a escuridão da noite já envolvia quase inteiramente a floresta, todos começaram a oscilar o corpo para frente e para traz, pronunciando três vezes, em tom profundo, uma mesma palavra: "Yamantaka! Yamantaka! Yamantaka! Dessa forma convidavam o Rei dos Infernos a aparecer pessoalmente.

Após o terceiro chamado, o Grande Feiticeiro tomou um fêmur de homem, levando-o até os lábios. Era uma trompa, cujas notas ecoaram lugubremente pela floresta. Em seguida, ergueu um recipiente de libação, que nada mais era do que uma calota de crânio humano. O conteúdo do vaso macabro, que foi sorvido pelo feiticeiro, era sangue também humano.

Drukh Shin repôs a calota no seu lugar e o coro repetiu a invocação a Yamantaka. Novamente a trompa soou e o Grande Feiticeiro bebeu segunda libação.

Recomeçaram os brados de "Yamantaka", agora em ritmo sempre mais acelerado, acompanhando as oscilações do corpo sempre mais rápidas.

Apesar de seus esforços, o americano cético aos poucos foi se sentindo dominado por um estranho poder espiritual.

E paulatinamente, diante de seus olhos atônitos, foi se delineando a figura de Yama — nome pelo qual é conhecido no Tibete, Lúcifer, o Rei dos Infernos. Os olhos esbugalhados e incandescentes foram o que primeiro se fez visível. Uma névoa encobria seu vulto, que logo se patenteou, surgindo então os trinta e quatro braços de Yama, sendo que cada mão segurava um instrumento de destruição. A cabeça principal foi se definindo em torno dos olhos. Apareceram depois mais oito cabeças, todas envoltas em chamas azuis, translúcidas, que palpitavam incessantemente. Dos ombros pendiam colares formados de crânios humanos. Os lábios grossos, lascivos e os dentes em forma de aguçadas presas tornaram-se também visíveis.

A dança macabra de Yama

Acompanhando Yama vieram os demônios menores. O da luxúria, denominado no Tibete Nguh Nukh, se contorcia em esgares impuros. O demônio da fome surgiu com as costelas aparecendo por baixo de pele. O da cólera se manifestou também, disforme, com a face contraída pela paixão, e com o corpo agitado por espasmos incontroláveis. Depois de outros maus espíritos terem mostrado suas horrendas figuras, o próprio Yama iniciou uma dança macabra, cujos movimentos procuravam ridicularizar as misérias da humanidade, ao som do chocalhar de seus colares de crânios.

O autor narra como ele próprio e os feiticeiros começaram a lutar espiritualmente com os demônios, a fim de impedir que estes se libertassem dos laços invisíveis que os retinham naquela clareira. Parecia-lhe que séculos inteiros de esforço haviam transcorrido quando Yama, pouco a pouco, começou a desaparecer. Depois dele, foram-se também os outros demônios, lentamente, deixando a sós na clareira aquela dezena de feiticeiros, com seu chefe Drukh Shin sentado no alto bloco de pedra. Estes por sua vez dispersaram-se pela floresta silenciosa. Termina o autor acentuando que, embora incrédulo, não podia deixar de reconhecer que seus olhos realmente tinham testemunhado aquelas cenas estranhas, para ele inexplicáveis.

A macumba no Brasil

Dirá alguém que cenas como esta só se verificam entre povos pagãos e primitivos e não em terras civilizadas do Ocidente. Contudo, se bem que realmente a ação diabólica seja muito mais intensa no seio de nações que ainda não tiveram a graça de conhecer a verdadeira Fé, é certo também que não só lá se nota o influxo externo do preternatural.

Infelizmente, em nosso próprio país encontramos até muitas manifestações sensíveis do demônio. Nas práticas espíritas, cuja proliferação está se tornando um verdadeiro flagelo nacional, observa-se, a par de muita charlatanice e histeria, inegáveis interferências do poder do mal. Além disso, temos ainda a "macumba", em fase de alarmante difusão por todo o Brasil, e a cujo respeito se pode dizer o mesmo que do espiritismo.

Henri George Clouzot, conhecido cineasta francês, tendo estudado na Bahia os ritos fetichistas da macumba, escreveu uma interessante obra sobre o assunto, intitulada "Le cheval des Dieux". E a revista "Paris-Match", em seu número de 12 de maio de 1951, publicou uma curiosa reportagem de Clouzot acerca de uma iniciação de "filhas do santo" a que assistiu em S. Salvador.

Convém lembrar que essa cidade, célebre em todo o país por suas nobres tradições e pelas 96 igrejas barrocas que possui, oferece um triste reverso de medalha: abriga o núcleo principal da "macumba" e "candomblé" brasileiros, contando 453 "terreiros" registrados na polícia, sem falar dos clandestinos. E o mais chocante é que não somente lá, mas também em outras regiões do Brasil, as autoridades muitas vezes patrocinam essas cerimônias de origem africana, utilizando-as como atração turística e apresentando-as como genuínas tradições brasileiras.

A iniciação das "filhas do santo"

Com muita dificuldade, conseguiu Clouzot autorização para assistir a iniciação de um grupo de jovens negras da Bahia, que deveriam se transformar em "filhas do santo", isto é, possessas de algum demônio. O feiticeiro exigiu do autor sete mil cruzeiros, além de sujeitá-lo, juntamente com a esposa, a alguns ritos fetichistas.

Primeiramente, narra a reportagem, as iniciandas são encerradas durante duas semanas num cômodo vazio, quase sem outra alimentação além de drogas misteriosas. Algumas vezes ao dia, o feiticeiro que dirige a iniciação, denominado "Pai do santo", penetra no aposento onde as jovens permanecem deitadas de bruços. Ele as injuria e ofende, a fim de provar sua submissão absoluta.

As candidatas tomam também banhos de ervas, cuja composição é secreta, bem como vaporizações de plantas entorpecentes. Assim ficam reduzidas, bem depressa, a um estado mental próximo da infância.

Depois dessa espécie de retiro, tem lugar a parte principal da iniciação. O "Pai do santo" com um golpe de faca degola um pombo, e antes que o sangue jorre, introduz a garganta do animal na boca da noviça. Então, o gosto de sangue "liberta o espírito", que transmite seu delírio ao corpo daquela que já se tornou sua possessa. A "filha do santo", segurando o pescoço da ave com os dentes, sacode-a frenéticamente. As jovens, que haviam raspado o cabelo e pintado todo o corpo, são depois aspergidas com sangue de frango. O "Pai do santo" faz-lhes algumas incisões com navalha, nos braços, no peito e na língua, como que para selar com seu próprio sangue o pacto estabelecido com os maus espíritos.

Com este horrendo ritual, as postulantes ficaram transformadas em "filhas do santo". Daí em diante, nos terreiros de macumba, ao som de uma toada monótona de tambores africanos, elas entram em transe, possuídas por algum demônio que as faz pronunciar palavras sem nexo e agitar-se em movimentos alucinados. Os pés parecem não mais tocar o solo e a cabeça balança doidamente em todas as direções, sobre um pescoço desarticulado. Dentro em pouco começam a executar as danças rituais. Algumas chegam a rodopiar 48 horas sem parar...

É interessante observar que, muitas vezes, um dos assistentes é possuído por algum espírito maligno que, sem que ele possa resistir, o arrasta para o meio do terreiro, agitando-o freneticamente em uma sarabanda infernal. Foi o que aconteceu com a jovem que se vê em nosso clichê, reproduzido de recente reportagem sobre a macumba.

É evidente que nem tudo quanto se passa nesses lugares é provocado sempre pelo Poder das Trevas. Repetimos que há muita histeria, muito fingimento, corno aliás se verifica também nas sessões espíritas. Entretanto, testemunhas das mais insuspeitas têm comprovado, inúmeras vezes, a ação visível do Príncipe das Trevas nessas cerimônias. De resto, a imprensa brasileira tem publicado farta documentação a respeito. Destacamos o artigo de C. Galvão Krebs na aliás censurável "Manchete", sobre a macumba no Rio, como também uma pormenorizada reportagem da "Revista do Globo", sobre o culto fetichista em Porto Alegre. Estes e outros trabalhos estampados aqui no Brasil confirmam inteiramente as descrições de Clouzot.


NOTA INTERNACIONAL

Reflexões à margem do acordo de Genebra

Adolpho Lindenberg

O acordo de Genebra constitui um autêntico "Munich". Com efeito, não só o delta tonkinês, a região mais rica da Indochina, passa a pertencer aos comunistas, como é certo que o mesmo acontecerá com o resto do Vietnam por meio das eleições previstas no tratado. Os franceses não souberam formar um movimento nativo fortemente anti-comunista, à semelhança do Cuomintang na China durante a última guerra e do partido de Synghman Rhee na Coréia, e por isso os nacionalistas do Vietmin podem estar seguros da vitória eleitoral. E diante do resultado das urnas, os americanos se calarão, reverentes.

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A gesta de Dien Bien Phu tinha reavivado aquela chama que nunca se extingue no espírito francês, de patriotismo, combatividade e galhardia. Mas o governo não participou deste nobre entusiasmo, e a Conferencia de Genebra lhe ofereceu a desejada possibilidade de se render ao inimigo sem irritar os brios dos verdadeiros patriotas. Em Genebra a derrota deixou de ser nacional para se tornar ocidental. Não foi um país que fez um armistício vergonhoso; o que houve foi um acordo internacional para salvaguardar a paz por meio do sacrifício da Indochina, aceito com "elogiável altruísmo" pela França... O pouco simpático gabinete de Mendès-France, pacifista "à outrance", conseguiu uma pseudo-vitória diplomática e possivelmente se eternizara no poder.

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A VERDADEIRA obsessão da Inglaterra de a todo o custo estabelecer relações com o mundo comunista, contribuiu poderosamente para a desorientação que dominou o bloco das nações democráticas na Conferência. Isto vem mostrar mais uma vez que a posição "terceira força" é mais nociva ao Ocidente do que a ação do adversário.

E a propósito da atitude da Inglaterra, não podemos deixar de lamentar a decadência de sir Winston Churchill. Sua viagem aos Estados Unidos com o único fito de enfraquecer a posição da ala do governo americano a que pertencem o senador Knowland, o Almirante Radford e o secretario Foster Dulles, ala esta que não queria transigir de modo algum com a expansão comunista no extremo oriente, foi talvez decisiva para o desastre diplomático de Genebra.

O gabinete britânico estava dividido em duas correntes: a de Eden, que pleiteava a admissão da China de Mao Tsé Tung na ONU, e a paz na Indochina a qualquer preço; e a do Marquez de Salesbury, Lord-Presidente do Conselho, que se inclinava por uma ação em comum com os americanos para impedir os progressos comunistas na Ásia. Churchill, desprezando a opinião de grande parte dos jornais conservadores, como o Daily Express, o Spectator, o Econornist, e os conselhos de Lord Vansittart e Lord Alexander, que apoiavam Salisbury, prestigiou Eden e encorajou os democráticos americanos; os trabalhistas ingleses, os franceses que chamam Mendès-France de "M. Espoir" e toda a espécie de ultra-pacifistas e esquerdistas.

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ENUMEREMOS algumas das consequências previsíveis do acordo de Genebra:

1. Os comunistas vencerão as próximas eleições na Indochina e acabarão por dominá-la completamente.

2. A propaganda esquerdista no seio das nações ocidentais se encarregará de apresentar Mendès-France e Churchill como dois grandes campeões da paz mundial, e Foster Dulles e o Senador Knowland como líderes belicistas.

3. Uma verdadeira onda de otimismo e de desejo de colaborar com os russos se estenderá por todo o continente europeu. Provavelmente serão planejados encontros de chanceleres e mesas redondas para discutir o problema alemão, o desarmamento geral, a paz, com a Áustria.

4. A expansão comunista no sudeste asiático prosseguirá sem maiores dificuldades. Tudo indica que a Índia se inclinará ainda mais para o bloco soviético.

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A IMPRENSA e os políticos ocidentais que não se conformaram com o Munich asiático devem tirar desse desastre o único partido possível: sirva ele para alertar ao máximo a opinião pública contra o primeiro movimento expansionista que for tentado por Moscou. Se a reação diante da próxima agressão for mais forte do que a suscitada pela invasão da Coréia e pela perda da Indochina, será possível unir as nações ocidentais contra o inimigo comum. Caso contrário, tudo estará perdido: Lembremo-nos de que o pacto de Munich foi uma vitória da diplomacia alemã, mas a invasão da Polônia foi o início do fim do regime nazista.


AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

A Altivez é harmonioso complemento

da humildade

Plinio Corrêa de Oliveira

Vulto varonil, de uma força cheia de harmonia e proporção, em que o vigor do corpo é como que penetrado e embebido pela presença forte e luminosa de uma grande alma. Traços fisionômicos muito definidos, mas igualmente proporcionados. Belo? Sem dúvida. Mas, por assim dizer, quase não se tem tempo de analisar a beleza física, pois o olhar profundo, sério, sereno, pensativo, grave e suave a um tempo, retém toda a atenção. E isto a tal ponto que quase não se pode reparar no mais. É um olhar de pensador. e de homem de ação. Pensador que vê as coisas do mais alto dos cumes da Filosofia e da Teologia. Homem de ação que tem as vistas muito postas na realidade, que sabe ver a fundo as pessoas, as coisas, os fatos. Uma nota de melancolia no olhar, um que de firme e enérgico nos lábios, a atitude nobre e sobranceira de toda a sua pessoa, as mãos que parecem feitas para o comando, fazem ver neste homem extraordinário um lutador que não tem ilusões sobre o mundo, tomou definitivamente posição ante ele, e está pronto para todos os embates que a vida lhe apresentar. Tudo isto se apresenta como que iluminado por uma subtileza de expressão e uma aristocrática afabilidade que deixam entrever o fidalgo e o diplomata.

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Tal foi a riquíssima personalidade daquele que nesta vida se chamou Rafael Cardeal Merry del Val, Arcebispo titular de Nicéia, e que passou para a História como Secretário de Estado de S. Pio X.

Oriundo de estirpe aristocrática, pois era filho do Marquês Merry del Val e da Condessa de Zulueta, em suas veias corria sangue ilustre de vários países da Europa: Espanha, Inglaterra, Holanda. Consagrando-se ao serviço da Igreja, ao receber as Sagradas Ordens e a plenitude do Sacerdócio não perdeu nada de seus dotes naturais, antes os elevou. Pois o próprio da graça é não destruir a natureza, mas elevá-la e santificá-la. Sua sabedoria profunda brotava de uma fé ardente, de uma piedade admirável. Sua força era a expressão de uma temperança sobrenatural. Sua dignidade era fruto de uma alta consciência do respeito que devia a si próprio por tantas razões naturais e principalmente sobrenaturais.

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Numa época em que um vento de vileza sopra em tudo, e procura até mediocrizar o Sacerdócio, preconizando um tipo de Clérigo amesquinhado, vulgarizado, secularizado, ao sabor da demagogia reinante, a nobre figura do Cardeal Merry del Val se apresenta como um admirável modelo de dignidade sobrenatural, que nos faz entender bem a dignidade inefável do Sacerdote na Igreja de Deus. Dignidade esta que pode refulgir tanto em um Prelado como Rafael Merry del Val quanto no mais modesto Vigário de aldeia.

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A altivez cristã não é o contrário da humildade. Antes é seu complemento harmonioso.

O Secretário de Estado de S. Pio X era uma alma profundamente humilde e a ele se deve uma das mais belas paginas sobre a humildade cristã.

Nesta secção, em que confrontamos habitualmente duas imagens contrastantes, comparamos hoje uma fotografia com uma prece.

Verão assim nossos leitores como num coração verdadeira e sobrenaturalmente católico a mais alta dignidade coexiste com a mais profunda humildade: imitação daquele Coração Sagrado do qual a Igreja nos diz que, a um tempo, é Manso, Humilde, e de uma infinita Majestade.

Ó Jesus, manso e humilde de coração ouvi-me

Do desejo de ser estimado, livrai-me, ó Jesus.

Do desejo de ser amado, livrai-me, ó Jesus.

Do desejo de ser conhecido, livrai-me, ó Jesus.

Do desejo de ser honrado, livrai-me, ó Jesus.

Do desejo de ser louvado, livrai-me, ó Jesus.

Do desejo de ser preferido, livrai-me, ó Jesus.

Do desejo de ser consultado, livrai-me, ó Jesus.

Do desejo de ser aprovado, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de ser humilhado, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de ser desprezado, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de sofrer repulsas, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de ser caluniado, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de ser esquecido, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de ser ridicularizado, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de ser infamado, livrai-me, ó Jesus.

Do receio de ser objeto de suspeita, livrai-me, ó Jesus.

Que os outros sejam amados mais do que eu, Jesus, dai-me a graça de deseja-lo.

Que os outros sejam estimados mais do que eu, Jesus, dai-me a graça de deseja-lo.

Que os outros possam elevar-se na opinião do mundo, e que eu possa ser diminuído, Jesus, dai-me a graça de deseja-lo.

Que os outros possam ser escolhidos e eu posto de lado, Jesus, dai-me a graça de deseja-lo.

Que os outros possam ser louvados e eu desprezado, Jesus, dai-me a graça de deseja-lo.

Que os outros possam ser preferidos a mim em todas as coisas, Jesus, dai-me a graça de deseja-lo.

Que os outros possam ser mais santos do que eu embora me torne santo quanto me for possível, Jesus, dai-me a graça de deseja-lo.