Nuno Álvares Pereira, guerreiro e santo
"NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A ESPADA"
Carlos Alberto de Sá Moreira
É voz corrente entre certo gênero de católicos de hoje em dia que a carreira militar, com suas virtudes características de coragem, sangue-frio, energia, senso de hierarquia, amor à luta, com seu símbolo, a espada, e com seu objetivo imediato, esmagar o inimigo, não é compatível com o espírito evangélico, todo ele doçura, mansidão, perdão, paz. Entretanto, a história da Igreja registra numerosos grandes Santos que foram grandes guerreiros, como S. Luiz, rei de França, comandando os exércitos da 7ª e 8ª Cruzadas, S. Fernando, rei de Castela, combatendo os mouros e conquistando-lhes Sevilha e Córdoba, Sta. Joana d'Arc, expulsando os ingleses pela força das armas, ou S. João de Capistrano, frade franciscano, comandando a ala esquerda do exército de Hunyade na batalha de Belgrado. A tradição católica representa S. Miguel Arcanjo revestido de armadura e brandindo a espada, como príncipe da milícia celeste.
Não menos impressionante nesse sentido, e mais próximo de nós pelos laços históricos, é a figura formidável de Nuno Álvares Pereira, Condestável do reino de Portugal e guerreiro invencível, cujo culto foi reconhecido por Bento XV em 1918, o que lhe confere o título de Bem-aventurado. Por ter salvo a independência de Portugal quando este se preparava para lançar-se aos mares em busca de novas terras para a Coroa e novas almas para a Fé, pode-se dizer que sua vida e seus feitos tiveram repercussão decisiva nos rumos da história do Brasil, que em breve iria se iniciar.
"PARA ISTO RECEBI A ESPADA?"
NASCIDO em 1360, no Castelo de Sernache de Bonjardim, filho de um dos mais ilustres senhores do reino, D. Álvaro Gonçalves Pereira, Prior da Ordem Militar dos Hospitalários, teve D. Nuno a educação militar dos nobres, que o preparou para sua missão providencial.
Aos 16 anos casou-se com D. Leonor de Alvim, muito virtuosa e tida como a mais rica herdeira do reino. Foram morar em Pedrassa, solar da noiva, onde os esperava a vida bucólica e patriarcal de senhores rurais. Tiveram três filhos, dois meninos que morreram cedo, e uma menina, D. Beatriz, que foi tronco da Casa de Bragança. D. Nuno porém não se satisfazia com ser pacato castelão. Lembrava-se do dia em que fora armado cavaleiro, dos juramentos solenes que fizera, e se perguntava a si mesmo: "Passarei toda a vida assim? para isto recebi tão solenemente a espada, sobre a qual fiz tão serias promessas?"
A Providência, que lhe reservava uma missão gloriosa, comprazia-se em fazê-lo esperar, para que ao ardor juvenil, impetuoso e por vezes imprudente, se substituísse a coragem madura e refletida do homem feito. E D. Nuno viveu seis anos no solar de Pedrassa. Até 1382, quando foi chamado paro manter a independência da "terra de Santa Maria".
". . . LHE DAREI DELES MUITO MÁ CONTA"
ERA trágica então a situação de Portugal. El-Rei D. Fernando, o Formoso, entregara grande parte do reino ao invasor castelhano, sem qualquer resistência; homem apático, mole, desfibrado, mereceu de Camões o severo juízo: "um fraco rei faz fraca a forte gente". E havia também o "grande desvaryo": Fernando ousara colocar no trono de Santa Izabel, como Rainha de Portugal, a legítima esposa de um fidalgo que exilara, D. Leonor Teles, "a aleivosa". As guerras tinham esgotado o tesouro real, levando o Rei a alterar o valor da moeda — espécie de inflação da época, que logo acarretou carestia, câmbio negro (passe o anacronismo) e fome.
Em 1373 a intervenção do Legado Pontifício levou o Rei Henrique de Castela a deter sua marcha invasora, sendo assinado o tratado de Vaiada. Depois de sua morte, porém, seu filho D. João rompe a trégua e recomeça a guerra: o exército castelhano invade o sul do país, a esquadra lusitana é fragorosamente derrotada em Saltes, Lisboa é cercada. D. Fernando não tem força moral para resistir, os fidalgos da fronteira se desinteressam da defesa, bandeiam-se; o reino agoniza.
D. Nuno, aos 22 anos de idade, participa da defesa de Lisboa. Uma incursão fora dos muros contra as tropas castelhanas que pilhavam os vinhedos o coloca subitamente, com seus 50 homens, face a 250 inimigos. Não conseguindo levantar o ânimo apavorado dos portugueses com exortações, atira-se sozinho contra os espanhóis, ataca-os, é cercado, derrubado, atacado a lançadas que entretanto resvalam pela armadura — até que os seus, arrebatados pela sua coragem, abrem caminho para salvá-lo, lançam-se sobre os inimigos, num ímpeto avassalador que só termina com a fuga destes a nado, pelo rio. De volta à cidade, cuja população assistira à luta do alto das muralhas, D. Nuno é recebido em triunfo. Sua popularidade começa a crescer, ele passa a ser visto como uma esperança no descalabro geral.
Nesta altura dos acontecimentos nova trégua é firmada: os de Castela receiam o auxílio que a Inglaterra vem trazer a Portugal, e retiram-se das terras do reino.
Mas em 1383 morre o Rei D. Fernando. Perguntado no leito de morte se cria na Igreja e em seus ensinamentos, foram suas últimas palavras: "Tudo isto creio, como bom cristão, e creio mais que Deus me deu estes reinos para os manter em direito e justiça; e eu, pelos meus pecados, o fiz de tal forma, que Lhe darei deles muito má conta".
Herdeira do trono seria sua filha, D. Beatriz, casada entretanto com o Rei D. João de Castela. Reconhecê-la como Rainha de Portugal seria abdicar da independência nacional, unindo as duas coroas numa mesma pessoa. Contra isto se levantam alguns nobres, entre os quais D. Nuno, que se colocam sob a liderança do mestre da Ordem Militar de Aviz, D. João, filho natural do Rei D. Pedro e, pois, irmão consanguíneo de D. Fernando.
Em Lisboa, no Mosteiro de S. Domingos, o Mestre de Aviz é aclamado Regente e Defensor do Reino. Imediatamente designa D. Nuno como chefe militar do movimento.
CAPITÃO CONSUMADO
ANO de 1384. Para sustentar as pretensões de D. Beatriz, Castela invade Portugal pelo Sul. D. Nuno acode com um exército mal formado e desesperançado. E começa por erguer o ânimo dos soldados, fazendo-os assistir à Missa em ordem militar, exortando-os a serem inflexíveis no lutar pela causa justa, dando ele próprio o exemplo ao afirmar que não reconhece como tais a dois irmãos seus que marcham na vanguarda do exército inimigo. Mais tarde se poderá dizer que os acampamentos de seus comandados mais pareciam mosteiros de Religiosos reformados, tal a ordem e a piedade que neles dominavam.
No campo de Atoleiros os dois exércitos se defrontam. D. Nuno forma os seus num quadrado cerrado, ponteado de lanças. Contra este se atira a cavalaria castelhana, e atrás dela a peonagem, sem conseguir varar a muralha que as lanças formam, enquanto de dentro chovem flechas e pedras. Aos poucos o ímpeto do invasor vai arrefecendo — e então o jovem capitão ordena o ataque: abre-se o quadrado e dispara a cavalaria portuguesa, animada por D. Nuno, que se atira sobre os castelhanos até desbaratá-los completamente.
Para agradecer à Mãe de Deus a vitória, Nuno vai em peregrinação ao santuário de Nossa Senhora de Assumar, e encontra-o profanado, transformado em estrebaria. Com suas próprias mãos ele o limpa e o entrega novamente ao culto.
A vitória de Atoleiros desanima os invasores, que levantam o cerco de Lisboa e se retiram de Portugal. As cortes se reúnem em Coimbra e aclamam Rei o Mestre de Aviz, com o nome de D. João I. Em agradecimento ao seu valoroso capitão, o novo soberano lhe confere o título de Condestável, isto é, chefe supremo dos exércitos portugueses, cargo que ele ocupará até seu ingresso no Carmo em 1422.
"DEIXAI-ME TERMINAR DE RESAR"
NOVAMENTE Castela invade Portugal, agora pelo Norte. São 30 mil homens, contra os 8 mil de que dispõe D. João I. O conselho real recomenda não dar combate — D. Nuno colérico abandona a corte, até obter do Rei a permissão de ir ao encontro do invasor.
Nos campos de Aljubarrota vai se travar a batalha decisiva para a soberania de Portugal. É o dia 14 de agosto, vigília da Assunção. O Bem-aventurado forma seus homens numa garganta estreita, oferecendo assim pequena frente ao ataque. Ao meio dia surge o exército inimigo, tendo à frente a flor da nobreza e o próprio Rei D. João. Olham, sondam, esperam, e acabam dando a volta no campo para atacar os portugueses pelas costas — mas D. Nuno igualmente inverte suas posições, e fica de novo de face para o adversário. Nova espera, passam-se as horas, a tarde vai caindo, os invasores não se decidem. É só às seis horas que os gritos de guerra cortam o ar e a cavalaria castelhana arremete em disparada contra a muralha formada pelos portugueses. Estes resistem firmes sob o comando do Condestável. Nova carga e a ala esquerda começa a ceder: D. Nuno voa para lá, reanima os soldados e recupera a posição. Entrechocam-se as lanças, saltam os cavalos, bradam os guerreiros, clamam os feridos, e no fragor da batalha os espanhóis começam a recuar. E neste momento novamente o Condestável ordena o ataque: abrem-se as fileiras e ele rompe à frente dos cavaleiros sobre o inimigo que não mais lhes resiste, e aos poucos o recuo vai se transformando em fuga desabalada, enquanto os portugueses gritam vitória pelos campos que o sol do crepúsculo ilumina docemente. Em menos de uma hora fora ganha a batalha decisiva.
Aproveitando o ímpeto vencedor, Nuno atravessa a fronteira e invade Castela, em busca do exército que ele quer desbaratar completamente. Conquista facilmente Parra, Zafra, Fuente del Maestre, Usagre e Vila Garcia. Por fim oferecem-lhe combate em Valverde: forma seu quadrado clássico, mas ao invés de esperar na defensiva, investe em bloco contra os outeiros em que se entrincheiram os inimigos. Ao contrário das anteriores, a batalha é longa, já dura dois dias. Dois dos outeiros são conquistados, o terceiro resiste firme — e neste momento o Condestável desaparece.
Desconcertados, seus cavaleiros o procuram. Teria morrido? Afinal Ruy Gonçalves encontra-o atrás de umas pedras, rezando. Pede, insiste que venha logo, que os portugueses vão ser dispersados. "Ainda não é o momento, responde D. Nuno, deixai-me terminar de orar". E permanece longo tempo ainda, em oração. Depois levanta-se, o rosto iluminado, os olhos brilhantes. Monta a cavalo e se atira como uma flecha no meio dos inimigos, abre caminho impetuosamente, e sem que o consigam deter atinge a bandeira do Mestre de Santiago, comandante castelhano. Atrás dele os portugueses, eletrizados pela sua audácia, irrompem igualmente por entre os adversários que, atônitos, debandam, sem esboçar mais qualquer resistência,
A vitória de Valverde consolidou definitivamente a independência de Portugal. Em 1388 firmam-se as primeiras tréguas; elas serão rompidas aqui e ali, mas o incêndio invasor não mais se reatará, até que em 1431 será assinado o tratado perpétuo de paz.
"NÃO QUERO OUTRO HABITO QUE O DOS SERVENTES"
NOS anos que se sucederam D. Nuno ocupou-se em reorganizar, de forma estável e definitiva, o exército português. Ao mesmo tempo, ia se preparando para realizar o grande desejo que de há muito alimentava. Tendo enviuvado, distribuiu entre seus cavaleiros e escudeiros todas as riquíssimas doações que recebera do Rei em recompensa de seus serviços, e com as heranças do pai e da esposa fez edificar várias igrejas em honra da Virgem — sendo a mais importante a de Nossa Senhora do Vencimento, em Lisboa, erguida em cumprimento a um voto que fizera durante a batalha de Valverde.
E foi nesta igreja, confiada aos Padres Carmelitas, que ele se apresentou em 1423 pedindo para ser admitido como irmão donato na Ordem. E como o Superior, Padre Afonso da Alfama, insistisse em recebê-lo ao menos como irmão leigo, numa posição um pouco menos desconforme à sua dignidade, respondeu: "Vim à Religião para me empregar nos humildes ministérios dos que professam a vida ativa, e não quero outro hábito que o dos serventes".
Aos 15 de agosto de 1423, 38° aniversário da batalha de Aljubarrota, D. Nuno Álvares Pereira, Condestável de Portugal, professou votos solenes perante a Comunidade dos frades, o Rei, a família real e toda a corte, e recebendo o hábito carmelita passou a se chamar simplesmente Frei Nuno de Santa Maria.
A COURAÇA SOB O HÁBITO
OS anos que passou no convento, habitando uma pobre cela com uma cama de tábuas, uma mesinha, um crucifixo, uma imagem de Nossa Senhora e instrumentos de penitência, Frei Nuno de Santa Maria acrescentou às virtudes próprias da vida militar a prática perfeita das virtudes da vida religiosa. Sua pureza imaculada, seu amor à oração, sua devoção ao Santíssimo Sacramento, a dureza com que mortificava seu corpo inocente, e sobretudo sua caridade, empenhada em servir aos pobres com a mesma dedicação com que antes combatia os inimigos, tornaram-no querido por toda a população de Lisboa.
A vida religiosa em nada abateu seu ânimo guerreiro. Visitado pelo embaixador castelhano, este perguntou-lhe se haveria alguma coisa que o levasse novamente a pegar em armas — ao que o Bem-aventurado respondeu: "Se o Rei de Castela outra vez mover guerra contra Portugal, enquanto não estiver sepultado servirei juntamente à Religião que professo e à Pátria que me deu o ser!" e afastando o escapulário, abriu a batina, mostrando por baixo desta a couraça de cavaleiro...
Quando se preparava nova expedição militar a Ceuta, que não chegou a se concretizar, Frei Nuno dispôs-se a participar desse que prometia ser um duro feito de armas. Alguns frades chamaram-lhe a atenção, de que aos 70 anos já não teria mais o vigor de um jovem cavaleiro. O venerável ancião tomou de uma lança e violentamente arremessou-a, do alto da colina em que estava, noutra em frente: a arma cravou-se a fundo numa árvore e ficou vibrando. E ante a surpresa dos assistentes, disse calmamente: "Em África a poderei meter, se for ainda necessário que eu exponha a vida em perigos, em honra da Pátria ou em defesa da Religião". Daí se originou o provérbio "Meter uma lança em África", significando praticar feito valoroso.
Oito anos viveu Frei Nuno no Carmo. Seu corpo ficara endurecido pelas penitencias, mas sua alma já antegozava a recompensa do céu. Dizia-se que Nossa Senhora o favorecia no fim da vida com muitas visões.
No dia em que se assinava a paz definitiva entre Castela e Portugal, paz que ele conquistara com seu rijo ânimo e sua rija espada, teve um ataque repentino de febre. Sentindo próximo o fim, comungou pela última vez, renovou os votos, renunciou novamente a todos os seus bens e pediu apenas como esmola "uma mortalha e uma cova para o corpo". Recebeu a visita do Rei, que chorando o abraçou afetuosamente.
No dia 1° de Novembro de 1431, festa de Todos os Santos, Nuno recebeu a Extrema Unção. Pediu, num último murmúrio, que lhe lessem a Paixão segundo S. João. Durante a leitura entrou em agonia. E no momento em que se pronunciavam as palavras de Nosso Senhor a Maria SSma. "Ecce filius tuus", cerrou docemente os olhos.
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D. Nuno Álvares Pereira, Condestável de Portugal, Mordomo-mór de El Rei, Conde de Ourem, de Arrayolos e de Barcelos, senhor donatário de dezenas de cidades e vilas, vencedor de Atoleiros, Aljubarrota e Valverde, aclamado em vida "o guerreiro, o herói nacional, o invencível, o santo condestável", apresentou-se diante da Rainha dos Céus para receber a palma de sua mais bela vitória, a da batalha pela conquista de sua própria alma.
Tendo sido armado cavaleiro aos 13 anos, e lembrando-se de que Nosso Senhor dissera que o "reino dos Céus é dos violentos, e só os que usam de violência o arrebatarão", ele soube empunhar a espada de ferro contra os inimigos, comandando um exército que tornou invencível, e a espada espiritual da guerra contra o demônio, o mundo e a carne, na gloriosa milícia carmelita de que foi humilde soldado. Modelo admirável de santo guerreiro, de militar penetrado de espírito católico, sua glória humana só é ofuscada pelo esplendor de sua santidade.
VIRTUDES ESQUECIDAS
AMOR À GLÓRIA
Antes da batalha de Atoleiros, em que devia enfrentar um inimigo descompassadamente superior em número e armamento; o Bem-aventurado Nuno Álvares Pereira dirigiu esta exortação a seus homens:
São muitos os castelhanos? Maior honra para nós. Vai, com eles meus irmãos? Já os não conheço por tais... Em verdade vos juro que ainda que aí viesse meu pai, seria contra ele!... À frente da minha bandeira, estarei o primeiro. Quem tiver medo, vá-se com Deus, que eu e esses poucos e bons portugueses lhes poremos a praça. Os que quiserem vir comigo passem aquém deste rego d'água: os outros fiquem além... ("A Vida de Nun'Alvares", J. P. Oliveira Martins, 3ª ed., p. 151).