(continuação)

DOUTOR, PROFETA E APÓSTOLO (conclusão)

os campos: a política se laicizara, a antiga sociedade orgânica e cristã fora semi-deglutida pelo absolutismo do Estado neo-cesáreo e neo-pagão, minguara a influência da Religião na vida de todas as classes sociais, principalmente nas elites, uma tendência geral para costumes mais frouxos, mais “livres”, mais fáceis ganhava todos os ambientes, a sede de prazer e de lucro crescia, o mundanismo pompeava até em certo número de casas religiosas, o mercantilismo estendia seus tentáculos para dominar toda a existência. Em linhas gerais, o quadro era bastante parecido com o de nossos dias.

DIFERENÇAS CONSIDERÁVEIS

Entretanto, se a analogia é profunda, evidente, indiscutível, seria impossível passar-se daí para uma equiparação absoluta. O corpo no qual os fermentos agiam nos séculos XV, XVI e mesmo XVII, era ainda o corpo robusto da velha Cristandade gerada pela Idade Média. Um sem número de instituições, de hábitos mentais, de tradições, de usos, de leis refletia ainda o espírito da sociedade orgânica e cristã de outrora. Se a monarquia absoluta pressagiava o socialismo hodierno, ela se personificava contudo nos Reis pela graça de Deus, que ainda se consideravam Pais de seus povos no bom e velho estilo de S. Luiz IX. Se a vida internacional fora secularizada com os tratados de Westphalia, ainda existiam tais ou quais vestígios da Cristandade, uma família de Reis e povos cristãos dotados da consciência de formar um todo à parte, face ao mundo gentílico. Se a sociedade era mundana, as disputas religiosas - como as que se travaram entre Jesuítas e jansenistas - encontravam nela uma ressonância que jamais teriam em nossos dias. Se os costumes eram frouxos na corte e nas cidades, havia a isto numerosas e retumbantes exceções. Nos degraus do trono, no próprio trono o escândalo de um Luiz XIV, por exemplo, era de algum modo reparado por sua emenda e sua vida modelar depois do casamento com Mme. de Maintenon e a queda de Mlle. de La Vallière o era por sua penitência exemplar no Carmelo. Mme. de Montespan por sua vez morria cristãmente, o Duque de Borgonha, neto de Luiz XIV, se destacava por sua piedade, e a família real ainda teria no século XVIII ao lado da vergonha da vida de Luiz XV, a ilustração das virtudes pouco comuns do Delfim Luiz, da Carmelita Madame Louise de France, e da Princesa Clotilde de Saboya, ambas filhas do Rei, e falecidas em odor de santidade. Assim, por mais rigorosas que sejam as analogias entre o século XVI e o século XX, haveria manifesto exagero em afirmar que a vida política e social já se encontrava então inteira ou quase inteiramente laicizada e paganizada.

Entretanto, na história dos Tempos Modernos, isto é, nos séculos XVI, XVII e XVIII, é fora de dúvida que os fermentos nascidos do neo-paganismo renascentista se revelaram cada vez mais vigorosos, e isto trouxe a imensa explosão de 1789.

TEMPOS PRECURSORES DOS NOSSOS

Considerando-se estes fatos do ponto de vista do Santo Padre Leão XIII na Encíclica “Parvenu à la 25.ème Année”, a Revolução Francesa foi uma consequência do protestantismo. E por sua vez produziu o comunismo. Ao igualitarismo e liberalismo religioso do frade apóstata de Witemberg, sucedeu o igualitarismo e liberalismo político-social dos sonhadores, dos conspiradores e dos facínoras de 1789. E a este segue-se o igualitarismo totalitário, social e econômico, de Marx.

A revolução protestante foi uma forma ancestral da Revolução Francesa, como esta o foi do comunismo hodierno. E cada uma destas formas ancestrais já tinha em si todas as toxinas da que se lhe seguiu. São três moléstias, sucessivamente mais graves, provocadas pelo mesmo vírus. Ou são três fases sucessivamente mais graves da mesma moléstia. Ou três etapas de uma omnímoda e universal Revolução.

UM PROFETA APARECE NO CURSO DA REVOLUÇÃO

Ora, S. Luiz Grignion de Montfort foi, neste processus histórico, um verdadeiro profeta. No momento em que tantos espíritos ilustres se sentiam inteiramente tranquilos quanto à situação da Igreja, embalados num otimismo displicente, tíbio, sistemático, ele sondou com olhar de águia as profundezas do presente, e predisse uma crise religiosa futura, em termos que fazem pensar nas desgraças que a Igreja sofreu durante a Revolução, isto é, a implantação do laicismo de Estado, o estabelecimento da “Igreja Constitucional”, a proscrição do culto católico, a adoração da deusa razão, o cativeiro e morte do Papa Pio VI, os massacres ou deportações de Sacerdotes e Religiosas, a introdução do divórcio, o confisco dos bens eclesiásticos, etc. Mais ainda. Para alento e alegria nossa, o Santo profetizou uma grande e universal vitória da Religião Católica em dias vindouros.

MARTELO DA REVOLUÇÃO

Mas além de profeta, S. Luiz Grignion de Montfort foi missionário e guerreiro. Missionário, causticou ele implacavelmente o espírito neo-pagão, fazendo quanto podia para afastar o povo fiel do mundanismo e de tudo quanto constituía o mau espírito nascido da Renascença. A região evangelizada por ele foi tão profundamente imunizada contra o vírus da Revolução, que se levantou de armas na mão contra o governo republicano e anti-católico de Paris. Foi a Chouannerie. Se S. Luiz Grignion tivesse estendido sua ação missionária a toda a França, provavelmente teria sido outra a sua História, e a História do mundo.

Ora, porque não a evangelizou inteira?

Orador sacro eficientíssimo, pregava a palavra de Deus com um desassombro extraordinário. Isto lhe valeu o ódio, não só dos calvinistas, mas de uma das seitas mais detestáveis e mais influentes que até hoje tenham existido infiltradas na Igreja, isto é, os jansenistas. Seria longo enunciar as múltiplas e complexas razões por que o jansenismo, com suas aparências de austeridade embora, é legitimo produto da crise religiosa do século XVI. O certo é que esta seita, dispondo de deplorável influência sobre muitos fiéis, Sacerdotes e até Bispos, Arcebispos, Cardeais, seguia uma linha de pensamento e de ação nociva a toda restauração da vida religiosa, afastava as almas dos Sacramentos, e combatia vivamente a devoção a Nossa Senhora.

S. Luiz Grignion de Montfort, pelo contrário, tinha à SSma. Virgem a devoção mais ardente, e até compôs em louvor dela o “Tratado da Verdadeira Devoção”, que constitui hoje o fundamento mais forte de toda a piedade mariana profunda. De outro lado, por suas missões, aproximava o povo dos Sacramentos, afervorava-o no Rosário, em uma palavra fazia obra diametralmente oposta às intenções dos jansenistas.

Isto lhe trouxe, nos próprios meios católicos, uma perseguição aberta, que lhe valeu as maiores humilhações. Causa pasmo que, enquanto tantos Prelados, clérigos, e leigos, em nome da caridade se mostravam irritados ou apreensivos com a justa severidade da Santa Sé em relação aos jansenistas, não tivessem penalidades, atos de hostilidade, nem humilhações que bastassem contra S. Luiz Maria. Pode-se dizer que foi um dos Santos mais desprezados e humilhados que houve nestes vinte séculos de vida da Igreja. Por fim, só em duas Dioceses lhe foi permitido exercer seu ministério. Mas, novo Inácio de Loyola, sentindo com serenidade o ímpeto contra sua pessoa, dos vagalhões do ódio anti-católico disfarçado com ares de piedade, não se perturbou. E, humilhado até o fim, até o fim lutou.

Ora, este Santo extraordinário deixou uma prece admirável, contendo ensinamentos e luzes especiais para nossa época. É a que compôs pedindo Missionários para a sua Congregação. Neste mês de maio nos é útil lembrar a figura angélica deste sumo paladino da Virgem. No mês de junho, consagrado ao Coração de Jesus, pensamos expor e comentar sua admirável oração.

Nesta oração, como esperamos mostrar no próximo número, vê-se que para S. Luiz Maria seus tempos eram precursores de uma imensa crise que se estende até hoje, e irá até a instauração do Reino de Maria. E ele próprio se nos afigura como o modelo, a prefigura dos apóstolos suscitados para lutar nessa crise, e vencer a batalha por Maria Santíssima. É esta a sublime e profunda atualidade de S. Luiz Maria Grignion de Montfort para os apóstolos de nossos dias.

Tema de meditação fecundo neste mês em que a Santa Igreja celebrará pela primeira vez - no dia 31 - a festa tão grata às almas forte e profundamente piedosas, da Realeza de Maria.


Correspondência

Do Revmo. Pe. Bernardo Pani, S. O. Cist., Mosteiro Cisterciense de Santa Cruz, Itaporanga (Est. São Paulo): "Sou assíduo leitor do jornal mais intelectual e mais bem orientado do Brasil, o CATOLICISMO. O grande bem do jornal é descobrir e mostrar os erros mais capciosos do nosso tempo, e ao mesmo tempo aviar-lhes o remédio mais adequado e benéfico. Jornal inteiramente sadio, seguindo as normas da Igreja, constitui-se um destemido defensor da mesma. Nas suas páginas brilha o sentire cum Ecclesia de que muita gente se desvia, sem muitas vezes o perceber".

Do Revmo. Pe. Feliciano Castello Branco, Matriz de Vila Nova, Realengo (Dist. Federal): "Desejo continuar a ler e assimilar (em CATOLICISMO) as doutrinas substancias e cheias de vigor teológico, tão ao molde de seu inspirador que é o Sr. Bispo D. Antonio, meu ex-professor de Historia da Filosofia".

Do Revmo. Pe. Irio Dalla Costa, Vigário de Nossa Senhora do Rocio, Curitiba (Est. Paraná): "Fazendo votos de que se espalhe sempre mais esse belo e moderno veículo do pensamento sadiamente católico, como é o CATOLICISMO, prometo batalhar pela sua causa, que é a causa de Cristo e da Santa Madre Igreja".

Do Revmo. Pe. Dr. Everardo Molengraaff, SS. CC., Campos do Jordão (Est. S. Paulo): "Grande simpatia pela obra católica e apologética do CATOLICISMO".

Do Revmo. Pe. Brás Brugnara, SAC, Cruz Alta (Est. Rio Grande do Sul):" ... CATOLICISMO, mensário de cultura e de envergadura intelectual, bem próprio para arejar a mente e robustecer a inteligência de novos e sadios conhecimentos".

Do Revmo. Pe. Paulo Pedreira de Freitas, S. J., Colégio Maximo de San José, San Miguel (República Argentina): "... CATOLICISMO, jornal que muito aprecio e que não queria deixar de receber em meu novo endereço".

Do Sr. Antonio Brêtas Carmo, Rio de Janeiro (Dist. Federal): "Está sendo pontualmente recebido por nós o magnífico mensário. Logo lido, passamo-lo sempre a quem o saiba apreciar".

Do sr. Alvaro Tavares, Recife (Est. Pernambuco): "O CATOLICISMO é sem dúvida um grande paladino e se apresenta como lâmpada acesa em meio das trevas em que se debate a vida da nação, sob os mais diversos aspectos".


OS CATÓLICOS FRANCESES DO SÉCULO XIX

MONTALEMBERT CONDENADO PELA SANTA SÉ

Fernando Furquim de Almeida

Depois que o Santo Padre Pio IX distribuiu o projeto do "Syllabus" aos bispos presentes em Roma para a canonização dos mártires japoneses, não foi segredo para mais ninguém que a Santa Sé preparava um documento condenando o liberalismo católico. Os próprios governos tiveram conhecimento do projeto. Alarmados, procuraram impedir ou retardar a sua publicação, quer por via diplomática, quer auxiliando os movimentos que os católicos liberais multiplicaram, na esperança de colocar o Santo Padre diante do fato consumado.

O encontro no castelo de La Roche-en-Brény não foi um fato isolado, e nem só na França os chefes eclesiásticos e leigos da facção liberal se reuniram para estudar a situação e provocar um recrudescimento da expansão das suas idéias. Assim, a campanha católico-liberal chegou em 1863 a tomar aspecto internacional.

Na Inglaterra, onde o Cardeal Wiseman, Ward e o futuro Cardeal Manning tinham formado um movimento católico pujante e ultramontano, Lord John Acton punha todo o seu prestígio e fortuna a serviço do catolicismo liberal. Seu primeiro jornal, "The Rambler", não encontrava eco na opinião católica, apesar de contar com Montalembert, Mons. Dupanloup, o Pe. Gratry, Doellinger e de Rossi entre seus colaboradores. Nem a intervenção de Newman conseguia impedir que os ultramontanos pulverizassem com seus argumentos os sofismas da folha liberal. Em abril de 1862, o episcopado inglês condenou publicamente alguns de seus artigos. "The Rambler" desapareceu, mas Lord Acton, não se dando por vencido, lançou pouco depois um novo periódico, "The Home and Foreign Review".

Na Alemanha o catolicismo liberal se apresentava sob aspecto diferente. Não era nas grandes questões políticas que ele se chocava com os ultramontanos, mas sim nas nitidamente teológicas. Os teólogos liberais alemães tinham como chefe Ignaz von Doellinger, prodígio de erudição, cheio de todas as qualidades e todos os defeitos e vícios do cientificismo. Desesperado com o reflorescimento da Escolástica, que desprezava em nome da ciência, organizou ele um congresso de cientistas católicos com o fim de "fazer explodir entre os teólogos uma verdadeira guerra civil e concentrar suas forças vivas contra o inimigo comum": a Escolástica e a Santa Sé. Apesar da desaprovação do Núncio e de alguns bispos alemães, o congresso se realizou em Munich, em 1863, sob a presidência do próprio Doellinger.

Foi na Bélgica, porém, que teve lugar a maior manifestação de força e prestígio do catolicismo liberal. Um grupo de eclesiásticos e leigos belgas, entre os quais o Barão Gerlach e A. Dechamps, teve a idéia de reunir um grande congresso em Malines. O objetivo declarado era promover um encontro dos líderes católicos de todos os países, para apresentar ao mundo uma descrição bastante fiel do catolicismo da época. A orientação do conclave, no entanto, foi completamente liberal. Dechamps chegou mesmo a declarar a Montalembert, na carta em que o convidava a ser um de seus oradores: "Uma tribuna da maior repercussão se abre para vós: um auditório composto de católicos, de bispos, de padres, de religiosos de todas as Ordens, de fiéis de todas as obras, se prepara para vos aplaudir. É necessário que ocupeis essa tribuna; é preciso que vos sirvais desse auditório em benefício de nossa causa comum. Importa no mais alto grau que o resultado seja liberal, e que o programa que dele sair seja o vosso: o catolicismo e a liberdade. Se faltardes, o fim não será atingido".

Montalembert, apesar de doente, aceitou o convite e preparou dois discursos na linha do que ficara resolvido na reunião de La Roche-en-Brény. Seu temperamento batalhador e ardente o levou tão longe, e a tal ponto explicitou as teses liberais, que seus próprios amigos desaprovaram os textos que ele lhes submeteu. O Príncipe de Broglie pediu-lhe que cancelasse ou refizesse algumas de suas partes. Montalembert recusou, alegando que era tempo de se dizer tudo, e que o estado de sua saúde não lhe permitia mais protelações.

Os liberais franceses chegaram a Malines dois dias depois de iniciado o congresso, e se dirigiram logo para o local das sessões. A entrada de Montalembert foi saudada por uma tempestade de aplausos. A assembléia, que se compunha de mil assistentes, o aclamou com as palavras: "Viva o filho dos cruzados! Viva o Conde de Montalembert!"

Nessa mesma reunião ele pronunciou o primeiro dos discursos que preparara, e no dia seguinte completou seu pensamento com o segundo. Defendia a célebre fórmula "a Igreja livre no Estado livre", que Cavour imediatamente adotou na luta contra a Santa Sé. O congresso acolheu entusiasticamente as palavras de Montalembert, exceção feita dos católicos ultramontanos presentes, que timbraram em demonstrar a sua desaprovação. Esses dois discursos alcançaram o objetivo visado por Dechamps: o congresso de Malines se definia nitidamente liberal e o movimento adquiria um caráter internacional.

A Santa Sé via com mágoa o desenvolvimento da política dos católicos liberais, e não podia permanecer calada diante do verdadeiro levante que a simples notícia da preparação do "Syllabus" provocara.

Em dezembro de 1863, Roma condenou o congresso dos cientistas católicos, proibindo mesmo novas realizações do gênero. Lord Acton, que o apoiara com entusiasmo no "The Home and Foreign Review", foi obrigado a suspender a publicação de seu periódico.

Mais grave era a questão de Malines. Montalembert prestara grandes serviços à Igreja e contava com o apoio de intelectuais franceses, ingleses, alemães e belgas. Mas os protestos contra o seu discurso chegavam a Roma sem cessar, e polêmicas violentas se levantavam a respeito em todo o mundo. Vendo a gravidade da situação, Mons. Dupanloup imediatamente foi a Roma, numa tentativa de defender o amigo e evitar a sua condenação. Mas Pio IX já resolvera intervir contra Montalembert, se bem que, em atenção a seu passado, se limitasse a mandar o Secretário de Estado, Cardeal Antonelli, escrever-lhe uma carta censurando os seus discursos.

Quando teve conhecimento do texto da carta, o Bispo de Orléans permitiu-se dizer ao Cardeal Antonelli: "Vós não enviareis isto. Quero ver o Papa, peço-o como amigo do Sr. de Montalembert. Peço-o sobretudo como bispo francês. Trata-se de uma questão que interessa à França no mais alto grau. Quais são os juízes? Quais os examinadores que deram essa sentença? Peço para vê-los, ouvi-los, discutir com eles".

Pio IX não recebeu Mons. Dupanloup, e a carta foi enviada a Montalembert. Nela, depois de elogiá-lo, o Secretário de Estado lembra as polêmicas provocadas pelos seus discursos e o número bastante grande de pessoas que lhes punham em dúvida a ortodoxia. Nessas condições, o Santo Padre ordenava um exame da questão. Continuava o Cardeal Antonelli: "Sinto comunicar que o resultado do exame provou que as acusações contra os discursos tinham fundamento. Eles são repreensíveis, pelo conflito em que se encontram com os ensinamentos da Igreja Católica e com os atos emanados de diversos Soberanos Pontífices, especialmente com as máximas ensinadas em diversos breves e alocuções de Pio VI, em um dos quais, com a data de 26 de setembro de 1791, ele caracteriza como plane exitiosum et pestilens esse edito de Nantes, exaltado com tantos elogios nos referidos discursos. Essas máximas são relembradas e confirmadas na carta de Pio VII a Mons. de Boulogne, Bispo de Troyes, em 1814; na encíclica de Gregório XVI, de 15 de agosto de 1832, que conheceis bem; e ainda mais, em diversos atos solenes do Soberano Pontífice reinante".


NOVA ET VETERA

Marginalismo Legislativo

J. de Azeredo Santos

AFIRMA Joseph de Maistre que "a constituição civil dos povos não foi jamais o resultado de uma deliberação" (Étude sur la Souveraineté, liv. 1, c. VII). Com efeito, até o fim do século XVIII em todos os países vigoravam instituições políticas costumeiras, ao invés do artificialismo introduzido após a Revolução Francesa, quando tais Instituições começaram a ser elaboradas por assembléias deliberativas.

ONDE ENTRA O MARGINALISMO

O papel dos legisladores até então era o de consagrar as instituições consuetudinárias compatíveis com a lei natural, respeitando na mais larga medida possível as boas tradições dos povos.

Hoje, pelo contrário, estamos em pleno regime do marginalismo intelectual e político, de legisladores e juristas que se dispõem a tratar dos mais graves problemas da organização social e política mantendo-se inteiramente alheios ao meio ambiente, com o qual porfiam em não afinar. Desse modo isolados da realidade que os cerca, cegos e surdos diante das necessidades do povo, obedecem entretanto a um marginalismo dirigido, se assim podemos dizer, pois se preferem agir arbitrariamente, fazem-no insuflados por forças ocultas que de há muito se entregam à criminosa tarefa da demolição das instituições tradicionais para sobre os seus escombros erigir a "nova ordem" revolucionária.

Radicando-se no Brasil, o elemento português para aqui transplantou a instituição do morgadio, que ainda perdura em certas regiões do alto sertão nordestino e goiano, conforme o testemunho de Oliveira Viana: "O costume da indivisibilidade do domínio assegura a permanência dos laços da solidariedade familiar: e assim foi no passado, ainda com mais generalidade e força. Tal como no período colonial, os bens moveis e imóveis, ali, ainda passam para o filho primogênito — como se ele fosse o próprio patriarca em pessoa: e toda a família tem assim, na indivisibilidade tradicional dos domínios, a impressão material da sua própria unidade, da sua permanência e continuidade no espaço e no tempo" (Instituições Políticas Brasileiras, vol. 1, p. 244).

Em várias outras regiões do Brasil, onde a força das tradições tem sido maior que a das leis arbitrariamente implantadas em nossa terra pelos servis copiadores do Código Napoleão, ainda se notam traços muito visíveis desse direito costumeiro familiar. E é curioso assinalar como se vinha processando entre nós a transformação do direito doméstico no sentido da organização familiar do tipo estirpe, com todas as suas vantagens sobre a forma patriarcal: o problema da multiplicação dos membros da família vinha sendo resolvido pela doação de novas propriedades para a descendência cadete da família tronco, do que é testemunho o costume das fazendas "anexas".

Nega Oliveira Viana que essa solidariedade familiar haja sido trazida ao Brasil pelo elemento luso. Tais costumes e instituições, diz ele, "são criações nossas, saídas das circunstâncias com que processamos a instalação dos nossos domínios e da pressão ecológica, a que fomos submetidos durante a fase da penetração e colonização do nosso interior sertanejo" (ibid., p. 262). De qualquer maneira, não se contesta o fato, mas apenas a sua origem.

Eis, portanto, onde podemos encontrar marcas bem nítidas do nosso direito consuetudinário. E uma eloqüente prova da sabedoria que ditou essa ordem de coisas, nós a temos nos efeitos nefastos da partilha forçada em todos os recantos do Brasil. Já nos ocupamos do assunto em crônica publicada em CATOLICISMO, número de agosto de 1953, sob o título de "Demagogia Agrária".

VERDADEIRA REFORMA DA FAMÍLIA

Retomando o fio inicial destas considerações, diremos que neste artigo não visamos debater a conveniência da restauração dessas instituições. Nosso objetivo é apontar o tremendo caos social e político que vem sendo implantado no mundo moderno pelas arbitrariedades do Estado, quer do ponto de vista legislativo, pela outorga de leis iníquas, quer do ponto de vista administrativo, por uma injusta tentativa de redistribuição de rendas, que empobrece a coletividade em favor da burocracia oficial.

E não há negar que a destruição do direito familiar pela lei de divisão sucessória forçada tenha sido um dos mais poderosos fatores da formação do proletariado moderno. O que também desejamos pôr em relevo é a clamorosa injustiça de, sob pretexto de um igualitarismo revolucionário, se atentar contra o direito de dispor do patrimônio familiar como melhor consulte os interesses daqueles que dele se devem beneficiar. Repetimos: não desejamos resolver um problema tão complexo, como é o da estabilidade do grupo familiar, através de medidas legislativas ou de reformas constitucionais. Muito pelo contrário, nosso desejo é que o Estado deixe às famílias a liberdade, que lhes pertence, de gerir os seus bem sem essa intervenção indébita do poder público.

VERDADES QUE O INIMIGO NÃO ESQUECE

E outra ressalva importantíssima que se impõe é a seguinte: a questão social, dentro da qual se situa o problema da família, não é meramente uma questão econômica, mas preponderantemente moral e portanto religiosa. Particularmente neste setor da restauração do grupo familiar em seus direitos e correspondentes deveres, muito pouco se fará sem a reforma dos corações, e esse pouco que se fizer será precário e incerto, como toda edificação que se erige sobre areia. Quando lembramos estes princípios fundamentais da lei natural em sua aplicação prática ao problema do patrimônio familiar, quando lembramos a voz da experiência histórica no que diz respeito às condições de estabilidade do grupo doméstico, temos sempre diante dos olhos a verdade fundamental de que a família, como todo e qualquer grupo social, é simples meio para facilitar ao homem o pleno desenvolvimento de sua personalidade e o ajudar a alcançar o seu último fim que é a bem-aventurança eterna.

Os católicos podem esquecer-se destas verdades, mas os inimigos da Igreja as trazem bem vivas em suas mentes. Assim é que não se limitam a minar a instituição da família pelos atentados contra o direito de testar, pela conseqüente pulverização do patrimônio familiar, pelo verdadeiro confisco representado por exações de toda ordem mas vão também contra a própria fonte e fundamento da sociedade familiar, que é o Sacramento do matrimônio. Se de todos os lados a família é ameaçada pela corrupção ambiente, pela decadência dos costumes, como esperar reformá-la e salva-la mediante simples modificação de sua estrutura externa ou de sua organização patrimonial?

Mas não será pela existência de um tão grande número de frentes de combate que vamos renunciar à luta. Pugnando pela reforma dos corações, bem sabemos a contribuição preciosa que para ela representa a existência de boas e sábias instituições. As duas coisas se acham entrelaçadas: ambas se completam e se ajudam reciprocamente.