Episódio da guerra contra os albigenses: a rendição de Avignon.

MANIQUEÍSMO:

MARCO INICIAL DO MUNDO MODERNO

Cunha Alvarenga

“AGORA achei o argumento contra a heresia dos maniqueus!" — exclamou São Tomaz de Aquino, dando um golpe sobre a mesa do banquete em que era comensal de São Luiz, Rei de França.

Estaria o Santo Doutor simplesmente dominado pelo apregoado espírito polêmico medieval ao assim se expandir em lugar tão impróprio, ou seria o argumento contra o maniqueísmo de tal importância que justificasse esse procedimento da parte de quem normalmente se mostrava tão calmo e sóbrio em suas manifestações?

Um sábio e um santo do porte de Tomaz não se engolfaria no estudo do maniqueísmo em tais circunstâncias, se não se tratasse da heresia por excelência, daquela de que já se ocupava o Apóstolo São Paulo ao dizer: "Oh Timóteo, guarda o bem que recebeste; foge do mundano e vão palavreado e das questões sobre o que falsamente chamam conhecimento (gnose)" (I Tim. 6,20).

Gnosticismo, heresia de nossos dias

O MANIQUEÍSMO ou gnosticismo é a heresia de nossos dias, o verdadeiro marco de separação entre os nossos tempos e a quadra em que viveu São Tomaz de Aquino.

Com efeito, podemos distinguir duas épocas na história do gnosticismo. A primeira, sua fase oculta, se inicia nos tempos apostólicos e se estende até o apogeu da Idade Média. Sempre reprimida, não consegue a heresia se impor entre os povos cristãos a não ser em áreas bem restritas, apesar de tentativas violentas, como a dos albigenses, que produziu verdadeiras devastações em algumas regiões do sul da França e do norte da Itália. Na segunda fase, que é a que queremos focalizar de modo especial, vemos a invasão gradual de todo o Ocidente cristão por essa terrível lepra.

Embora os compêndios de História em geral fujam do assunto, a verdade é que a difusão cada vez mais acentuada das idéias gnósticas foi o principal entre os fatores que contribuíram para a obliteração da concepção de vida dominante na Idade Média e para o advento da mentalidade humanista, iluminista, racionalista, liberal, socialista e mundana que caracteriza o Renascimento e as épocas que lhe são posteriores até os nossos dias.

Se a civilização católica pôde chegar às culminâncias que atingiu no século XIII, isto devemos não somente à ação benéfica exercida pela Santa Igreja sobre os povos que evangelizou, mas também, e paralelamente, à luta em que a sua Hierarquia se empenhou contra o espírito herético, sobretudo contra as várias manifestações da gnose, luta na qual a Esposa de Cristo teve o apoio dos seus filhos, dóceis às suas sábias advertências.

Evolução gnóstica da Historia

Mas ao lado dessa heresia declarada, implacavelmente exterminada quando se atrevia a deitar a cabeça para fora, surgem também correntes gnósticas de pensamento no próprio seio da Igreja, como a liderada pelo frade Joaquim de Flora. Nascido na Itália cerca do ano de 1130 e morto em 1202, difundiu ele sua doutrina gnóstica pelo menos vinte e cinco anos antes do nascimento de São Tomaz de Aquino.

E é curioso notar que Joaquim de Flora viveu sempre em paz aparente com a Santa Igreja, combatendo mesmo certas tendências heréticas de sua época. Só depois de sua morte é que as idéias expostas em seu livro "O Evangelho Eterno" foram condenadas.

Vamos achar em Joaquim de Flora os princípios que até hoje governam a sociedade política neste Ocidente cristão cada vez mais descristianizado.

Concebia ele a História como sequência de três períodos. No primeiro reinou o Pai, que governou os homens pelo temor. O segundo foi o reinado do Filho, que regeu o mundo pela sabedoria e pela disciplina. O terceiro período seria o da fraternidade das pessoas autônomas, ou reinado do Espírito Santo. Em virtude da descida do Paráclito, seriam os homens transformados em membros desse novo reino sem a mediação sacramental da graça. A Igreja deixaria de existir, já que os dons carismáticos necessários para a vida perfeita seriam alcançados pelos homens sem necessidade de Sacramentos. Posto que Joaquim de Flora concebesse esse terceiro período como o reino dos monges pela expansão do espírito monástico, na realidade, entretanto, a idéia de uma comunidade espiritualmente perfeita ao ponto de dispensar a autoridade institucional foi por ele lançada como um germe de toda a revolta social e política que irrompeu no mundo a partir do crepúsculo da Idade Média.

Foi por inspiração do frade italiano, ou do pensamento gnóstico que ele herdou e transmitiu às gerações futuras, que os humanistas e enciclopedistas dividiram a História em antiga, medieval e moderna; que Comte lançou sua lei dos três estados, o teológico, o metafísico e o científico ou positivo; que a dialética de Marx criou os três estágios, do comunismo primitivo, da sociedade dividida em classes, e do comunismo integral; e que o nazismo criou o símbolo do Terceiro Reich, também de fundo quiliástico e gnóstico, por herança do panteísmo de Fichte, de Hegel, de Schelling.

Foi também Joaquim de Flora quem lançou nesta fase moderna do mundo o mito do chefe, ao predizer o aparecimento do Dux e Babylone como o condutor e líder do terceiro reino. Além disso, temos nele o criador de outro mito: o do profeta da Idade Nova. A gnose especulativa tem que possuir os seus profetas e oráculos para explicar ao vulgo aquilo que se acha oculto aos olhos profanos. Daí o profeta gnóstico, ou em épocas mais racionalistas como a nossa, o intelectual, o artista, o cientista, o poeta gnóstico, que são também peças indispensáveis na trama política do mundo contemporâneo.

As varias cabeças da hidra

Como explicar que tamanha variedade de ações no mundo social e político de hoje tenha uma mesma origem deletéria? A resposta nos é dada pelo professor Eric Voegelin, da Universidade de Viena, atualmente residindo na America do Norte, em seu livro "The New Science of Politics" (The University of Chicago Press, 1954). Diz o prof. Voegelin que a tentativa de tornar imanente o sentido da existência é fundamentalmente uma tentativa de trazer nosso conhecimento da transcendência para um ponto reputado mais firme do que aquilo que se acha em São Paulo: "A fé é a substancia das coisas que se esperam, a evidência das coisas que não se vêm" (Heb. 11, 1). As experiências gnósticas procuram oferecer este ponto de apoio mais firme quando tentam uma expansão da alma ao ponto de ser Deus trazido para dentro da existência do homem. Esta expansão empenhará as diversas faculdades humanas, e daí ser possível distinguir toda uma série de variedade gnósticas, de acordo com a faculdade que predomine na operação de conseguir essa maior fusão com Deus. Assim, a gnose pode ser primariamente intelectual e assumir a forma de penetração especulativa no mistério da criação e da existência, como, por exemplo, na gnose contemplativa de Hegel ou de Schelling. Ou ela pode primariamente ser emocional e tomar a forma de uma coabitação da divina substancia na alma humana: por exemplo, na falsa mística jansenista. Ou pode ainda ser primariamente volitiva e assumir a forma de redenção ativista da sociedade, como é o caso dos revolucionários como Comte, Marx, Hitler ou Stalin. — "Tais experiências gnósticas, diz Voegelin, na amplitude de sua variedade, são a medula da redivinização da sociedade, pois os homens que caem nessas experiências se divinizam a si próprios pela substituição da fé no sentido cristão, por modos maciços de participação na divindade" (op. cit., p. 124).

O laicismo ou a secularização da vida social e política tem na gnose o seu princípio, pela deificação da criatura humana. Como também é gnóstico o chamado néo-paganismo moderno, o que leva Voegelin a fazer a seguinte distinção: "O super-homem marca o fim da estrada em que achamos figuras tais como o homem endeusado (the godded man) dos místicos da reforma protestante inglesa. Estas considerações, ademais, explicarão e justificarão a advertência que já fizemos contra a caracterização dos movimentos políticos modernos como neo-pagãos. As experiências gnósticas determinam uma estrutura sui generis da realidade política. Uma linha de gradual transformação liga, o gnosticismo medieval com o contemporâneo. E a transformação é tão gradual, de fato, que seria difícil decidir se os fenômenos contemporâneos deveriam ser classificados como cristãos porque são visivelmente o resultado das heresias cristãs da Idade Média, ou se os fenômenos medievais deveriam ser classificados como anti-cristãos porque eles são visivelmente a origem do anti-Cristianismo moderno. O melhor caminho será abandonar tais questões e reconhecer a essência da modernidade como o crescimento do gnosticismo" (p. 126).

Oportunamente passaremos em revista a tática dos gnósticos modernos e seus esforços, como minoria audaciosa que são, no sentido de lançar a pobre humanidade em encruzilhadas fatais, mediante falsos dilemas ardilosamente arquitetados.


VERDADES ESQUECIDAS

A INQUISIÇÃO É CONFORME A DOUTRINA DA IGREJA

São Tomaz de Aquino

Da Suma Teológica (IIa. IIae., q. 11, a. 3, c)

É muito mais grave corromper a fé, pela qual a alma vive, do que falsificar o dinheiro, por meio do qual se conserva a vida temporal. De onde, se os falsários, ou outros malfeitores, são sem demora, e justamente, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito maior razão os heréticos, tão logo convencidos de heresia, podem não apenas ser excomungados, mas também, com justiça, mortos.

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Da parte da Igreja, porém, há misericórdia, para a conversão dos que erram. E por isso Ela não condena imediatamente, mas só após uma primeira e segunda correção, como ensina o Apóstolo (Tit. 3, 10). Depois, todavia, se o herege ainda se mostra pertinaz, a Igreja, já não tendo esperança de sua conversão, provê à salvação dos outros separando-o da Igreja por sentença de excomunhão, e em seguida abandona-o ao juiz secular para ser morto.