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* QUIS UT DEUS? * NON SERVIAM

MEDITAÇÃO DAS DUAS BANDEIRAS

Cunha Alvarenga

Ó DEUS, que com ordem admirável determinais o ministério dos Anjos e dos homens, concedei-nos propício, que nossa vida na terra seja protegida pelos Anjos que sem cessar servem, no Céu, diante de vossa face". Eis como a Sagrada Liturgia nos propõe, na festa da Dedicação de São Miguel Arcanjo, o Príncipe dos exércitos celestes, a celebrar-se a 29 deste mês, o mistério da ação dos Anjos no governo do mundo.

A piedade cristã tinha desse papel um alto e lúcido conceito na Idade Média. É o que explica a grande devoção então existente ao glorioso Arcanjo, em cujo louvor se ergueram monumentos insignes. O mais ilustre deles foi a Abadia-fortaleza do Mont Saint Michel, que se vê em nosso clichê. É da maior importância restaurar em seu primitivo vigor o conhecimento dos princípios em que se baseia a devoção ao vencedor dos anjos rebeldes.

Que é a história da humanidade senão o relato das repercussões na terra daquele grande combate que se travou nos Céus? Desde o começo dos tempos tenta Lúcifer aqui estabelecer o seu império. E foi "para destruir as obras do demônio que o Filho de Deus veio ao mundo" (1 Jo. 3,8).

Qual, com efeito, a intenção de Lúcifer ao tentar "sobrepujar a altura das nuvens" e ser "semelhante ao Altíssimo" (Is. 14, 14)? Substituir-se a Deus, aniquilar o Criador? Não. Sua rebeldia se voltou contra a Encarnação do Verbo, contra o Homem-Deus que haveria de nascer da Santíssima Virgem. Primeiro maniqueu que jamais existiu, não pôde Lúcifer suportar o mistério da união hipostática das duas naturezas, divina e humana, em Jesus Cristo, verdadeiro Deus verdadeiro homem, consubstancial ao Padre segundo a divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade, em tudo semelhante a nós, menos no pecado. Eis porque São Tomaz chama ao orgulho de "príncipe dos pecados". Ao se rebelar contra a "injustiça" que lhe era feita, a ele, puro espírito que vê sentar-se à direita do Padre Aquele que assumiria, no tempo, a nossa condição de natureza carnal e menos perfeita na hierarquia da criação, lança Lúcifer as bases da gnose. O escândalo que precipitou os anjos maus e seu caudilho no abismo do inferno foi o fato de ser Nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto Homem, soberano do Céu, do mundo angélico, e da terra, do mundo físico, humano. E ele, Lúcifer, puro espírito, situado na culminância da hierarquia angélica, não teria mais direito a essa união hipostática da segunda Pessoa da Santíssima Trindade? Daí seu ódio à natureza humana e seu plano de perdê-la, por ela mesma, através do aviltamento do materialismo, de um lado, e do orgulho de um espiritualismo imanente, de outro.

Nesta luta em que porfia através dos séculos, procura o anjo das trevas levar os homens à tentação do pecado da imanência, do "sereis como deuses" por meio do misterioso fruto que conferia a ciência do bem e do mal. E se empenha em construir uma cidade que é a antítese da Cidade de Deus em seus princípios e em sua finalidade.

ACHAMO-NOS, assim, diante do drama das duas bandeiras, a que alude Santo Inácio de Loiola quando escreve: "Considero a arenga que (Lúcifer) faz aos demônios e como os exorta a lançarem redes e cadeias aos homens, tentando-os, primeiro, pela cobiça de riquezas, como ele mesmo, o mais das vezes, costuma fazer, para que mais facilmente cheguem às honras vãs do mundo e depois à grande soberba. Daí se segue que o primeiro são as riquezas, o segundo as honras e o terceiro a soberba. Por estes três degraus o demônio leva os homens a todos os mais vícios" ("Exercícios Espirituais", 4o dia, meditação das duas bandeiras).

Quais são, pelo contrário, os princípios diretores da Cidade de Deus, que nos movem a combater sob a bandeira de Cristo? — "Considero o sermão que Cristo Nosso Senhor dirige a todos os seus servos e amigos, que envia para tal expedição, recomendando-lhes que procurem induzir a todos, primeiro a abraçar a maior pobreza espiritual e — desde que sua Divina Majestade seja servido e os queira escolher — não menos a pobreza real; segundo, a que desejem opróbrios e desprezos, porque destas duas coisas, do amor à pobreza e ao desprezo, nasce a humildade. Três, são, portanto, os degraus: a pobreza que se opõe à riqueza; os opróbrios e desprezos, opostos às honras mundanas; a humildade, à soberba; e por estes três degraus os enviados de Cristo devem levar os homens a todas as outras virtudes" (ibid.).

Estas verdades fundamentais da nossa Santa Religião vão sendo apagadas da mente dos povos pelo sopro da Revolução que varre a face da terra nestes últimos séculos. Jesus Cristo é a Cabeça do Corpo Místico, a Santa Igreja Católica, sociedade sobrenatural que todos os homens, todos os povos, todas as nações são chamados a reconhecer, única via estabelecida por Deus para a redenção da humanidade. "Os homens que vivem em sociedade se acham sob o poder de Deus não menos que os indivíduos, e a sociedade, não menos que os indivíduos, deve gratidão a Deus, que lhe deu o ser e a mantém ... Visto, portanto, que a ninguém é permitido ser remisso no preito devido a Deus... estamos obrigados absolutamente a adorá-Lo do modo que Ele demonstrou ser de seu desejo" (Encíclica Immortale Dei).

"A justiça, portanto, e a própria razão proíbem ao Estado ser sem Deus; ou adotar uma linha de ação que acabaria no não reconhecimento de Deus — a saber, tratar as várias religiões (como eles as denominam) de modo igual, e lhes conferir promiscuamente iguais direitos e privilégios. Desde que, por conseguinte, a profissão de uma religião é necessária ao Estado, deve ser professada aquela que é a única verdadeira, e que pode ser reconhecida sem dificuldade, especialmente nos Estados católicos, porque as marcas da verdade se acham, por assim dizer, nela gravadas" (Encíclica Libertas).

Em sua luta contra a economia de salvação introduzida na terra pelo Redentor, agem Lúcifer e seus aliados segundo um plano de desordem que em primeiro lugar visa evitar o reconhecimento pelos Estados e nações, da Igreja Católica, com a qual se identifica o Corpo Místico de Cristo, único caminho estabelecido por Deus para a recondução da humanidade ao seu destino eterno. Quando o reconhecimento da Igreja se torna uma realidade apesar dos esforços do demônio em contrário, tudo ele faz para destruir os laços que unem Igreja e Estado e para induzir os governantes a perseguir a Esposa de Cristo. Assim se explica a anomalia de povos católicos dirigidos por governos que perseguem a Igreja. A gnose demoníaca procura, porém, atacar a Igreja do Verbo Encarnado de modo mais pérfido, através do igualitarismo levado ao campo religioso, pretendendo colocar a Esposa de Cristo no mesmo nível das religiões falsas, heréticas, cismáticas, pagãs. Esta equiparação de todas as religiões falsas com a Santa Igreja de Deus é, segundo o farisaísmo moderno, denominada "separação da Igreja e do Estado".

E que fizeram os mentores do gnosticismo para chegar ao divórcio que hoje presenciamos entre os Estados e a Santa Igreja de Deus?

EMPREGARAM inicialmente a arma do naturalismo, ou da imanentização da natureza humana, que se compraz em si mesma, procurando fazer vida aparte, independentemente dos planos e da Vontade do Criador. Insuflaram de inicio o anseio pelo bem estar neste mundo, suas honras e riquezas, numa primeira fase de enriquecimento e de progresso material a qualquer custo.

Depois, ao provocar o desequilíbrio na distribuição dos bens materiais, acenam com o mito da igualdade para as classes menos favorecidas, aturdindo-as com a obsessão do que haverão de comer e de vestir, como se isso não fosse coisa de pagãos, e como se Nosso Senhor não nos

(continua)