Para a Roma Imperial convergiram influências culturais e expressões artísticas de todo o orbe, que se expandiram livremente sob a égide do classicismo greco-romano triunfante. As invasões bárbaras reduziram a ruínas estas grandezas de porte universal. Logo que a Igreja pôde respirar, depois do ciclone, pôs-se a conservar o que restava, a proteger o que ainda vivia, e circundada destas recordações preciosas caminhou de novo para a frente. Aguardava-A o grande esplendor cristão da Idade Média. Também durante este período, Roma se abriu largamente para as influências culturais e artísticas do mundo inteiro, desde que fossem compatíveis com a doutrina evangélica e por ela influenciáveis. E o mesmo se deu ao longo dos outros séculos, de sorte que a Cidade Eterna é hoje um relicário em que todas as formas autênticas de beleza estão representadas, desde os mais remotos vestígios da Realeza romana, até as mais recentes criações da arte cristã nos países onde o esforço missionário vai fazendo nascer a Fé. Não é pois por uma incompreensão de autênticas expressões de beleza surgidas quiçá em nossos dias, que vozes autorizadas como a do Emmo. Cardeal Celso Costantini se levantam contra delírios artísticos modernos de alucinado paganismo. É contra expressões "artísticas" que chocam o bom senso e a arte, e servem de adequada expressão ao neo-maniqueismo de hoje, que se voltam as palavras profundas e ardentes de zelo, do artigo que começamos a publicar neste número.
A IGREJA PROTEGE A ARTE CONTRA O MANIQUEÍSMO
O Emmo. Revmo. Sr. Cardeal Celso Costantini publicou em fevereiro de 1954 sobre a arte moderna um artigo intitulado "Senhor, amei o decoro de tua Casa", que teve repercussão mundial nos meios artísticos e religiosos. Deveu-se esta repercussão antes de tudo à grande autoridade daquele Purpurado em assuntos artísticos, especialmente no que concerne à arte sacra. Outrossim, o artigo era dos mais importantes por seu grande equilíbrio, sua alta lucidez, e a flagrante oportunidade do tema abordado. Por fim, era veiculado por uma revista de grande prestigio, "Fede e Arte", editada pela Pontifícia Comissão Central para a Arte Sacra na Itália, e dirigida pelo Exmo. Revmo. Mons. Giovanni Costantini, Arcebispo titular de Colosse e Presidente da mesma Comissão. A sede desse organismo está no Palácio da Chancelaria Apostólica, e a revista é impressa na Tipografia Poliglota Vaticana.
O ilustre Príncipe da Igreja escrevera anteriormente uma serie de comentários referentes à Instrução do Santo Oficio sobre arte sacra, de 30 de junho de 1952 (reproduzida em CATOLICISMO, no 21, setembro de 1952), que chamaram a atenção dos teólogos e dos especialistas e foram divulgados pela imprensa de quase todos os países. CATOLICISMO estampou dois desses artigos em seus nos 22 e 23, de outubro e novembro daquele ano.
Parece-nos entretanto ainda muito maior a repercussão que está tendo o artigo que Sua Eminência publicou na mesma revista "Fede e Arte" em maio pp.. Trata-se de um grande e riquíssimo trabalho, que vem ilustrado por farta documentação, e ocupa as 31 páginas do fascículo. Gostaríamos de o reproduzir na integra. Mas como a natureza e o porte material de nossa folha não o permitem, desejamos pelo menos proporcionar a nossos leitores, não só uma visão de conjunto desse monumental trabalho, como também o conhecimento dos seus trechos mais oportunos para o Brasil.
"A nova heresia iconográfica"
A revista "Fede e Arte" condensou nos seguintes termos o artigo, cujo título é "A nova heresia iconográfica":
"O Emmo. Autor trata da heresia iconográfica, documentando-a com a reprodução, ao menos parcial e sumaria, dos horrores iconográficos de uma certa e assim chamada arte modernista, que quereria se impor a todo preço, a despeito da atitude categórica que o Magistério da Igreja sempre teve a este respeito. Nada se deve encontrar no templo - escreveu S. Pio X no motu proprio "Tra le sollecitudine", de 23 de novembro de 1903 - que perturbe ou diminua a piedade e devoção dos fiéis, nada que constitua motivo razoável de enfado ou escândalo, nada sobretudo que seja indigno da casa de oração e da majestade de Deus.
"Ora, alguns artistas, em lugar de se elevar até Deus, fonte do bem e da beleza, para dessa altura projetar um facho luminoso de formosura e virtude sobre as criaturas, depravam a natureza, e particularmente a figura humana, tornando-a vil e odiosa: pior ainda, esses novos maniqueus atiram a lama de sua heresia satânica sobre as imagens adoráveis de Cristo, da Virgem e dos Santos. Diversos artistas agem provavelmente sem um conhecimento consciente da heresia maniqueia, mas de fato eles são atenazados dentro de suas espirais. É pois necessário, insiste ainda o Príncipe da Igreja, que seja derrotada a tese da feiúra, que se respeite a iconografia litúrgica, que a função e o caráter da arte sacra sejam por toda a parte conhecidos e acatados, que se evitem escândalos nessa matéria obviando-se a influência exercida sobre os artistas por certa critica movida por intuitos blasfemos ou comerciais.
"Uma análise precisa das causas desta epidemia leprosa da arte moderna é apresentada no artigo com provas documentais irrecusáveis, e os artistas são convidados a não se servirem de uma linguagem ridiculamente arcaica, infantil, ou bárbara: pode-se, com efeito, ser filho de seu tempo utilizando uma linguagem viva, fresca, correta, e sobretudo compreensível. Só assim a tempestade que transtornou e submergiu os princípios da arte poderá passar, e a Igreja, herdeira de cultura universal, não cessará de apreciar a verdadeira arte, auxiliando os artistas e orientando-os para a beleza e harmonia de Deus".
Um aspecto de importância capital
Antes de reproduzir alguns trechos mais palpitantes do artigo, devemos pôr em realce que seu egrégio Autor timbrou em excluir dele qualquer nota de hostilidade sistemática e indiscriminada contra toda a arte contemporânea.
Ao invés de ser contrário a tudo quanto é hodierno só por ser hodierno, o Emmo. Cardeal Costantini insiste na afirmação de que também hoje há autênticos artistas, e lamenta apenas que estejam na penumbra, enquanto a falsa arte está nos galarins da gloria.
Mostra ele que a Igreja não tem preconceitos ou prevenções contra qualquer época. Pelo contrário, abre largamente os braços e o coração para receber o fruto do talento dos artistas católicos de todos os tempos, todos os povos, e todos os lugares. Para isto, põe Ela só uma condição: que sejam verdadeiramente católicos e verdadeiramente artistas. O que Ela não pode é aceitar e aprovar obras que não são católicas nem artísticas, como se fossem obras de arte católica, expressões genuínas do espírito cristão.
No ambiente brasileiro, não há o menor risco de que a opinião pública se deixe levar por uma hostilidade sistemática em relação ao que é moderno. Nosso mal está precisamente no extremo oposto. Somos movidos sempre pela tendência a adorar ingenuamente tudo quanto é moderno, só por ser moderno. Há muito mais de cem anos, este mal nos atacou. Dizem os historiadores que um dos fatores que precipitaram a queda de D. Pedro I foi a noticia de que os franceses acabavam de derrubar o Rei Carlos X. Se no foco da modernidade se derrubava um Rei, cumpria que aqui não ficassem atrás, e derrubássemos um Imperador. E de lá
(continua)