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ARTE E NEOMANIQUEÍSMO (conclusão)

«A arte deve refletir a luz de Deus, e não as trevas do demônio»

Nosso pensamento não consegue afastar-se da ansiosa consideração do mundo presente em que vivemos, tão diferente daquele descrito nestas admiráveis telas, onde se encontram, seladas com arte delicadíssima, as mais altas e mais verdadeiras aspirações do homem.

"Façamos, pois, votos ardentes de que o sopro da bondade cristã, da serenidade e harmonia de vida, que se evola da obra do Angélico, penetre 'no coração de todos".

Arte católica por artistas não católicos

É, possível que artistas acatólicos engendrem uma arte católica? O problema tem sido muito discutido. Sobre ele se exprime nestes termos o ilustre Príncipe da Igreja:

"Animalis homo — disse São Paulo — non percipit ea quae sunt spiritus (I Cor. 15, 44). Por isso, não se pode ler sem grande dor quanto L. Montano escreve no Corriere d'Informazione (aliás Corriere della Sera) de 21-22 de fevereiro de 1955: A mais célebre igreja moderna foi feita por um homem que não acreditava em Deus.

"Frei Couturier, um Dominicano morto, ele também, no ano passado, e que lutou com fervor contra a decadência da arte religiosa, sustentava que onde a tradição é ainda viva, para as necessidades da Igreja podem bastar artistas menores: onde pelo contrário ela está morta, mais vale, para ressuscitá-la, confiar em um gênio sem fé do que na mediocridade com fé. Diz-se que foi este Padre que encorajou Matisse a fazer a capela do Rosário: esta é a tradução, em ato, daquela sua proposição...

"Com efeito, Matisse absolutamente não era crente, e fazia questão de demonstrar que sua oferta não indicava qualquer mudança em suas convicções, que ele conservou até o fim. Não compareceu nem à inauguração, nem à sagração daquela sua obra.

"Quero esperar que a luz da verdade tenha iluminado no último momento a mente do pintor, e que sua alma se tenha voltado para a infinita misericórdia de Deus. Mas, depois, faço todas as reservas sobre a célebre capela e sobre o espírito do pintor, do qual falarei mais extensamente no capítulo seguinte.

"Não nego que também incrédulos possam compreender o fascínio da idéia religiosa; mas permanecerão sempre intérpretes simplesmente técnicos e externos, sem aquele acento, sem aquele fogo que só o sentimento e a sinceridade podem dar. Assemelham-se àquele que ouve a melodia de um canto, mas não entende suas palavras.

"A arte cristã é antes de tudo arte de pensamento; os incrédulos podem possuir admiravelmente o métier, mas são constitucionalmente incapazes de exprimir com sinceridade o pensamento da Igreja. Não basta conhecer o vocabulário para escrever uma página eloquente: necessário o pensamento e aquela vis intima que acende a eloquência.

"Ocorre também por vezes, em matéria de arte, o fato estranho do adivinho pagão Balaão, chamado pelo Rei de Moab para amaldiçoar Israel, e que pelo contrário por três vezes foi obrigado a abençoá-lo.

"Na história de Balaão, a Bíblia conta também de uma jumenta que falou (Num. 22, 23)".

Purificar de influencias comerciais a arte sacra

Continua o egrégio Autor: "Estou de acordo com o Pe. Regamey e com L. Venturi sobre alguns princípios gerais - não sobre todos. Deseja-se o ressurgimento da arte sacra e a depuração das igrejas de toda quinquilharia industrial, e um mais consciente e cordial entendimento e colaboração entre artistas e Clero. Muito bem, todos o desejamos. Mas seja-me permitido recordar que, em fins de 1913, fundei a revista Arte Cristiana (que hoje é publicada pela Escola Beato Angélico de Milão) e a Sociedade dos Amigos da Arte Cristã precisamente para realçar o decoro da arte e do culto e para pôr em melhor contacto o Clero e os artistas, bem como para estabelecer uma melhor comunhão entre o Pároco e os fiéis. Mas, agora, considero não as boas intenções e os propósitos louváveis, mas as tentativas hodiernas, as novas experiências da arte sacra, que não podem de modo nenhum convencer-me, porque faltam absolutamente ao próprio fim.

"Este altíssimo fim foi consagrado por uma história quase bimilenar e foi admiravelmente bem definido nos citados discursos do Santo Padre Pio XII.

"H. Leclerq, referindo-se aos primeiros séculos, escreve: Se, no curso de três séculos de lutas, de misérias e de perseguições, o Cristianismo teve tanto cuidado de embelezar e decorar as abóbadas sepulcrais, isto prova que está na sua essência ter em conta a beleza; demonstra que entre Cristianismo e arte a aliança é, não só legitima, mas natural, intima, quase necessária" (H. Leclerq, Dict. d'Arch. Chr. et de Liturgie: Images).

"Causa alegria também, recordar que Urbano VIII no ano de 1642, depois do Concilio de Trento, escreveu a conhecida carta sobre os fins da arte sagrada: O que é apresentado aos fiéis não deve aparecer desordenado e singular, mas deve contribuir para reavivar a devoção e a piedade: quae oculis fidelium subiiciuntur non inordinata, nec insolita appareant, sed devotionem pariant et pietatem".

Um Cristo com rosto de gorila

Conclui assim o Emmo. Cardial: "A arte e especialmente a arte sacra deve refletir a luz de Deus, não as trevas do demônio, um raio de beleza que Deus, speciei generator (Sap. 13, 3), difundiu no universo e especialmente no homem, feito à sua imagem (imaginem Dei circumferimus, disse São Clemente de Alexandria) — não os sacrílegos atentados daqueles que mutaverunt gloriam incorruptibilis Dei, in similitudinem imaginis corruptibilis homnis, et volucrum, et serpentium (Rom. 1, 23).

"Escreve-me um senhor, indignado por ter visto, em uma exposição de arte sacra moderna, um Cristo representado com uma cabeça de gorila...

"De resto, parece que o próprio Pe. Regamey, na prática, se manteve fiel à boa tradição. Com efeito, seu belo livro Les plus beaux textes sur la Vierge Marie é ilustrado com reproduções de obras de nossos grandes mestres".

A arquitetura religiosa

Depois de assinalar que ultimamente a arquitetura profana tem tido, em seus elementos fundamentais, e considerada cum grano salis, uma evolução favorável, mostra o artigo que as exigências da arquitetura religiosa são maiores:

"Mas para a arquitetura eclesiástica ocorre qualquer coisa a mais do que a funcionalidade edonística da vida. O templo é a misteriosa morada de Deus, o refúgio das almas; a estrutura arquitetônica, a luz e as sombras devem, como nas catedrais antigas, envolver o fiel na sugestão do mistério, que o eleva até Deus: ascensiones in corde suo disposuit (Ps. 83, 6).

"A igreja não é uma máquina para rezar, como pensa Le Corbusier. É uma ponte lançada entre o finito e o infinito; é a nave mística que embarca os homens nas orlas do tempo para conduzi-los ao desembarcadouro da eternidade.

"Não aceitamos para as igrejas o efeito da série das casas modernas, nem o nudismo das salas protestantes. Tudo é vivo e funcional na igreja, o drama litúrgico, a oratória, o canto, a arte figurativa e também o decoro ornamental.

"A Instrução do Santo Oficio sobre a Arte Sacra diz claramente: A arquitetura sacra, ainda quando assume novas formas, deve preencher sempre o seu fim, que consiste em construir a casa de Deus, casa de oração, que jamais pode ser assimilada a um edifício profano.

Atente pois, sem embargo, à comodidade dos fiéis, tornando-lhes fácil seguir, com a mente e os olhos, o desenvolvimento das cerimônias sagradas: considere também a elegância das linhas, mas não despreze a simplicidade para deleitar-se em artifícios vazios, e sobretudo evite com empenho tudo quanto possa manifestar negligência na obra de arte".

Com vistas ao Brasil

Em seguida, Sua Eminência faz uma referência oportuna, a nosso país:

"Há infelizmente engenheiros e arquitetos que ignoram ostensivamente a Instrução do Santo Ofício, inserindo e desenvolvendo nos esquemas arquitetônicos das igrejas as mais arbitrarias extravagâncias de construção, de maneira que ditas igrejas podem parecer pavilhões de feiras de amostras, abrigos de praia de banho ou qualquer outro edifício, exceto igreja.

"Recebo agora o no 33 da revista Arquitetura e Engenharia do Brasil, com extravagantes projetos para diversas igrejas. Um arquiteto indignado escreve-me: Desde que um baixo materialismo invadiu o campo da arte neste pais„ especialmente nos setores da arquitetura, estou travando uma batalha sem tréguas contra esta manifestação existencialista nas artes plásticas, chamada "arte moderna", a qual, por meio de uma poderosa organização de caráter internacional, está prejudicando enormemente a formação artística da juventude de todo o mundo".

O direito da Hierarquia

O artigo termina logo depois essas considerações gerais sobre a arte sacra com as seguintes palavras:

"Oportunamente a Instrução do Santo Oficio recorda que, de conformidade com o Canon 1162 do Código Canônico, não se pode erigir uma igreja sem a permissão por escrito do Ordinário. A Instrução é precisamente dirigida aos Bispos, os quais têm o direito e o dever de fazer valer o próprio juízo também sobre as igrejas confiadas aos Religiosos, quando abertas ao público".

Concluiremos no próximo número esta visão de conjunto do importantíssimo trabalho elaborado por Sua Eminência o Cardial Celso Constantini.


NOTA INTERNACIONAL

A Paz de GENEBRA

Adolpho Lindenberg

QUANDO a guerra fria entre o Ocidente e a Rússia atingia seu auge, nunca perdemos oportunidade de alertar nossos leitores contra a assim chamada "terceira força". Sempre a denunciamos corno quinta-coluna por se opor a uma reação enérgica contra o expansionismo soviético e pelo fato de hipocritamente se apresentar como anticomunista enquanto defendia constantemente leis, "reformas", "planejamentos", "ofensivas de paz", etc., de sabor tipicamente esquerdista.

Eis, no entanto, que a presente ofensiva de paz da Rússia, que se iniciou com a libertação da Áustria e atingiu seu auge com a Conferência de Genebra, vem proporcionar aos porta-vozes da "terceira força" esplêndidos slogans de propaganda e proselitismo, de que eles se apressam a fazer largo uso.

Diante dessa ofensiva provocadora da propaganda esquerdista, é oportuno definir a distinção entre a "paz" de Genebra e a verdadeira paz, no sentido cristão da palavra:

1 — Segundo o Santo Padre Pio XII, a verdadeira paz só será alcançada no dia em que os homens, obedecendo à lei de Cristo, decidirem alijar de seu espírito o ódio, o ressentimento, a inveja e a ambição, e substituí-los pelo amor e respeito recíprocos. A "paz" comunista não é proposta em nome de Deus ou de qualquer outro conceito transcendental. É uma paz que oficialmente visa vantagens políticas e por isso mesmo repousa em bases frágeis e transitórias.

II — Uma paz que possa ser levada a sério supõe que os países interessados estejam firmemente dispostos a respeitar mutuamente sua soberania e independência. Ora, o comunismo, por sua própria essência, é expansionista e sua doutrina prega a revolução em todas as nações do mundo. Portanto, ou a Rússia abandona seu credo comunista, o que está longe de desejar, ou uma paz durável será impossível. Em Genebra mesmo, não se cogitou nem de modificar o comunismo, nem de extinguir o Cominform.

III — Muitos dirão que ao menos uma paz transitória seria possível. Concordamos com isso, mas perguntamos: em que condições? Uma paz baseada num desarmamento geral, fiscalizado por nações insuspeitas, que obrigasse os países opressores a libertar seus "satélites", seria realmente desejável. Mas é exatamente com isso que a Rússia não concorda.

Permitir que fiscais internacionais penetrem livremente em seu território e descubram seu formidável espaço de preparação para uma futura guerra?

Libertar a Hungria, a Polônia, a Bielo-Rússia, a Rumânia e os Estados bálticos para que os americanos os transformem em futuros inimigos dela?

Isso nunca! Quaisquer tentativas de negociação nesse sentido seriam denunciadas como manobras de provocadores capitalistas.

Para a Rússia, um desarmamento universal sem fiscalização seria muitíssimo vantajoso, pois os orçamentos militares do Ocidente são discutidos publicamente e por isso mesmo são passíveis de serem controlados, enquanto que nos regimes totalitários, em que a imprensa não é livre, não existe oposição, poderão por acaso tais orçamentos ser conhecidos e denunciados?

IV — A questão da paz ou da guerra, como todas as questões sérias, deve ser resolvida em nome de princípios e não fazendo apelo a motivos emocionais ou sentimentais. Ora, a ofensiva de paz comunista veio acompanhada de uma campanha geral da imprensa ocidental de tendência esquerdista, contra a utilização de armas atômicas em uma eventual guerra. Subitamente, numerosos jornais, revistas e livros iniciaram uma série de publicações sobre as devastações causadas pelas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Porque lembrar agora, com essa insistência, fatos já remotos, e que decerto não constituem as únicas nem as mais cruéis atrocidades desses últimos dez anos?

Será que daqui a algum tempo, se a Rússia chegar a dispor de superioridade em armas nucleares, a imprensa da "terceira força" se mostrará tão pressurosa em criar um movimento de opinião pública que impeça qualquer país de empregar esses engenhos bélicos?

Essa manobra da imprensa esquerdista permite entrever a verdadeira razão de ser da ofensiva de paz bolchevista. Enquanto a Rússia não conseguir supremacia no terreno das armas nucleares, convém lhe impedir a formação no Ocidente de uma opinião pública favorável a uma política de firmeza em relação ao expansionismo soviético.

Mais tarde, quando os comunistas tiverem ganho às eleições de 1956 na Indochina, estendido seu poderio por todo o Sudeste asiático, equipado poderosamente o exército chinês, alcançado o primeiro lugar no que diz respeito às armas termo-nucleares, e os americanos tiverem se despojado de seu poderio bélico, então o mundo irá conhecer o verdadeiro sentido da campanha pró-paz do bloco soviético.


AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

VIDA NATURAL E ORGÂNICA,

EXISTÊNCIA ARTIFICIAL E MECÂNICA

Plinio Corrêa de Oliveira

Uma sala que se percebe ter proporções inteligentemente calculadas: bastante alta e bastante larga para dar a um tempo as impressões harmonicamente contrárias de aconchego e desafogo. Nela cabem folgadamente os móveis, os quadros, o lustre, as pessoas, com espaços largamente suficientes para que estas se movam despreocupadamente, sem a todo momento esbarrar em alguma coisa ou em alguém. Os móveis não são de luxo. Sólidos, decentes, cômodos, aprazíveis ao olhar, prestam-se eles também folgadamente ao uso humano. Boa mesa espaçosa junto à qual pode sentar-se uma família numerosa, e sobre a qual podem acumular-se sem transtorno as iguarias sadias e modestas servidas num almoço de aniversário, de uma família situada entre a pequena e a média burguesia. Cadeiras bem torneadas, de linhas amenas, suficientemente fortes para durar indefinidamente. Grande tapete - sem luxo, e de fabricação comercial, vê-se - que dá certo calor à sala. As roupas estão em exata coerência com o ambiente. De bom tecido, confortáveis, e com um talhe ao qual não falta certa distinção burguesa. A criada, de apresentação mais modesta embora, traja-se com decência e conforto. Pela janela, protegida por stores e cortina, entra uma luz amena, largamente suficiente para a sala toda, mas graduada de maneira a não ferir os olhos, e a conservar uma claridade calma e temperada no ambiente.

Calma, temperança, amenidade, eis bem as notas dominantes do quadro. Os trajes sumamente recatados dão um aspecto de pureza a esta vida de família, que explica por sua ver a amenidade de seu convívio. Numa família em que tenha entrado o verme roedor da impureza, as almas não têm saúde nem frescor paro se deleitar em afetos castos como os do lar. Todos se sentem felizes e distendidos nesse ambiente em que cada qual se sabe estimado, apoiado e considerado segundo merece.

Falamos muito intencionalmente em consideração. Note-se a situação do velho casal. O que a família tem de mais afetivo volta-se para ele. As duas filhas ladeiam a mãe cheias de respeitoso afeto. A menina sente-se feliz e honrada em apresentar uma bebida ao avô, sob o olhar atento e simpático do homem de idade madura.

Para a alegria das crianças há também um lugar, nesta reunião. Os dois meninos conversam risonhos, uma outra criança está sendo carinhosamente servida por sua mãe. Mais além, outra ainda, de índole tranquila, goza em paz o seu sossego. E enquanto isto a pequena aniversariante, feliz e grave como uma rainha sob seu arco de flores, acaba de saborear uma iguaria, e seu olhar vagueia pela sala, a um tempo despreocupado e atento. Mas se é larga a parte das crianças, não são elas que dominam a sala...

Ambiente confortável, sadio, plácido, casto, que mereceria até ser comparado ao dos "Buissonnets" de Lisieux, se na sala se notasse alguma imagem, e uma nota sobrenatural que transcendesse, iluminasse e desse mais elevação a este interior doméstico tão rico em valores tradicionais de autentica civilização cristã. Em suma, ambiente favorável à saúde da alma e do corpo, que dispõe admiravelmente os espíritos para a virtude sólida, seria, equilibrada e estável.

* * *

Anonimato, burburinho, aperto, pressa, preocupação. Enquanto uns comem rapidamente uma comida feita em série, outros esperam sua vez. Ninguém sorri. Uma ou outra pessoa diz alguma coisa, mas não há conversa. Todos pensam no trabalho que fizeram ou no trabalho que irão fazer. Muitos homens estão de chapéu, como se estivessem numa estação ou num ônibus. Note-se entretanto como se vestem os personagens: são todos de uma camada equivalente à média ou pequeno burguesia. Precisamente o nível da família do quadro acima. É' o interior de um restaurante-relâmpago numa grande cidade moderna. E assim almoçam em quase todos os dias do ano milhões de pessoas, e muitas além de almoçar também jantam.

E poderio ser de outro modo? As grandes aglomerações, a consequente concentração dos negócios, a celeridade do ritmo de vida que daí decorre, acentuada ainda pela vertiginosa facilidade que o rádio, o telégrafo e o telefone trazem à rápida circulação do dinheiro, tudo enfim concorre para dar ao homem moderno condições de vida muito trepidantes.

Sim. Mas a que preço para sua saúde, seus nervos, seu equilíbrio, sua virtude, sua vida de família? Não há nisto uma expressão da mecanização perigosa da vida, contra a qual o Santo Padre alertou o mundo?