(continuação)
CLUNY, ALMA DA IDADE MÉDIA
continuava sendo que a direção das Abadias reformadas coubesse a Santo Odon a título exclusivamente pessoal. Entretanto, algumas já estavam postas a título definitivo sob a jurisdição do Abade de Cluny, enquanto outras haviam sido dadas à Casa-mãe para que esta nomeasse um Prior para dirigi-las. Era um mero esboço de organização. Mas por ora isso era o suficiente, visto que a grande autoridade moral de Cluny lhe permitia impor-se sem mais, ao mundo monástico.
Curioso é saber que Odon, todo entregue à sua ação reformadora, desenvolveu, como tantos outros Santos beneditinos da Idade Media, uma atividade política importante. Assim, interveio no restabelecimento da paz entre o Rei dos Lombardos e o Príncipe dos romanos, Alberico, junto aos quais era igualmente influente. Os Papas mesmo o incitaram ao cumprimento dessa difícil missão. Não se sabe exatamente se o santo Abade foi bem sucedido, mas o importante é que isso preludiava a tarefa providencial de seus sucessores no terreno temporal; estava traçado o programa de atividade política e diplomática que os Abades de Cluny haviam de desenvolver, e no qual ia se distinguir aquele que haveria de canonizar Odon: São Gregório VII.
AIMAR: UM SANTO ADMINISTRADOR
Governando Cluny de 942 a 954, o Bem-aventurado Aimar, constantemente doente e quase cego, não realizou obra semelhante à de seu antecessor. Enquanto este se havia empenhado em constituir para a Abadia uma armadura moral considerável, dando-lhe grande importância religiosa e política, Aimar se esforçou sobretudo por ser um bom administrador. Todos os que sobre ele escreveram louvam os seus dotes superiores de homem de negócios e de intendente. Perto de trezentas cartas atestam que soube obter para a Comunidade preciosos privilégios e ricas dotações. Em 948 conseguiu do Papa Agapito II uma salvaguarda para todos os bens e a confirmação de todos os direitos de Cluny. Transformou a Abadia em uma potência econômica.
Se os historiadores costumam não considerar em toda a sua medida a importância deste Abade, é que ele foi o de menos renome dentro de uma constelação de grandes Santos. "Humilis quidern genere, sed celsus humilitatis culmine", de origem humilde, mas de uma humildade que fazia sua grandeza, foi o que escreveu dele um comentador contemporâneo. Não se dê à primeira parte da frase importância maior do que a uma figura de retórica. Todos os grandes Abades de Cluny nasceram de casas, senão tituladas, pelo menos ricas e poderosas. Bernon pertencia a uma família condal da região de Besançon; o pai de Odon era familiar do Conde angevino Foulque, e Aimar pertencia à família dos Condes de Angoulême. Não é sem importância notar que foram muito frequentemente elementos provenientes de famílias nobres que criaram e dirigiram o mais importante movimento religioso da Idade Média.
MODELO DE ELEGÂNCIA, SIMPLICIDADE E BOM SENSO
Coadjutor do Beato Aimar, São Maieul substituiu-o no trono abacial. Filho de nobre família de Avinhão, dirigiu a Abadia de Cluny durante quarenta anos. Era chamado "o príncipe da vida" pelo fato de que sua pessoa unia a suprema elegância a perfeita simplicidade na realização de seu ideal beneditino.
Seguindo o método inaugurado por Santo Odon, fez inúmeras viagens com o objetivo de alargar as fronteiras da reforma. Soube interessar nesta o Imperador Oton o Grande e seu filho Oton II, assim como Hugo Capeto e o Rei da Borgonha.
Foi um santo Religioso, cheio de sabedoria. Um dos principais traços de seu caráter era o bom senso. Trouxe a justa medida às mortificações e jejuns monásticos: bebia vinho; mas, de outro lado, não tolerava nenhum luxo no trajar, se bem que velasse por que todos os monges andassem sempre vestidos decentemente.
Fino, letrado, revelou-se desde cedo excelente orador, não somente agradável de ouvir por causa de sua voz clara e bem timbrada, mas capaz ainda de dominar o auditório pela gravidade de sua eloquência firme e concisa. Sua bela aparência realçava a força de sua oratória.
Viajou muito pela França, Itália, Suíça, Borgonha, Provença, e Alemanha, a fim de estender a reforma monástica. Em uma de suas viagens foi preso pelos sarracenos, que exigiram forte resgate por sua libertação. A emoção causada no mundo católico por tal fato é apontada como uma das causas do fim da dominação árabe no sul da França (972).
São Maieul ocupou uma posição de primeira plana na política européia da segunda metade do século X. Foi conselheiro de Santa Adelaide da Borgonha. Esta filha do Rei da Borgonha teve o seu primeiro marido, Lotário III, Rei da Lombardia, assassinado pelo Marquez de Ivrée, Berengário II, que lhe usurpou o reino. Recorrendo a Oton I, Rei e depois Imperador da Alemanha, este a tomou por esposa e lhe devolveu o seu reino lombardo. Após a morte de seu segundo marido, Santa Adelaide ocupou a regência do Sacro Império romano alemão em nome de seu filho, Oton II. A santa Imperatriz tentou nessa ocasião convencer São Maieul a aceitar a tiara pontifícia, ao vagar-se a Sé Romana; mas o venerável Abade recusou, preferindo consagrar-se aos seus monges. Isso não o afastou de Santa Adelaide, tanto assim que, quando ela teve uma desavença com seu filho, foi Maieul, quem restabeleceu a boa harmonia que as intrigas da jovem Imperatriz Teofania haviam quebrado. Com excelentes relações na casa da Saxônia, Maieul foi também amigo de Henrique o Grande, Duque de Borgonha, assim como de seu irmão Hugo Capeto, antes ainda de ascender este ao trono da França. Quando São Maieul morreu, a 11 de maio de 994, o Rei da França lhe prestou uma manifestação pública de veneração e estima, fazendo realizar a suas expensas os funerais de seu santo amigo, e parece mesmo que foi a Cluny para rezar sobre seu tumulo. O culto de São Maieul propagou-se através dos séculos como um dos mais populares da França.
Antes de morrer, o quarto abade de Cluny designou seu sucessor na pessoa de seu discípulo predileto: Santo Odilon.
OLHOS QUE INSPIRAVAM RESPEITO, OBEDIÊNCIA E TERNURA
De antiga nobreza galo-romana, Odilon de Mercoeur nascera em 962. Com 29 anos entrara para Cluny. Seu zelo pela observância monástica fez com que ao cabo de dois anos o Abade o tomasse como ajudante. Indicado por seu protetor para lhe suceder, Odilon foi eleito sem oposição. Achille Luchaire escreveu sobre ele: "No dizer de seus contemporâneos, os olhos de Odilon, iluminando-se fortemente com a chama interior que o devorava, sabiam inspirar respeito e obediência; mas frequentemente eles se enchiam de lágrimas: o que tornava a disciplina menos dura aos seus súditos".
Como Odon e Maieul, é ele um político de brande tino é um chefe de grande energia, a mais, que ascende ao trono de Cluny. A Abadia se havia transformado numa tal potência que requeria mesmo um homem de grande personalidade para dirigi-la. Excelente diplomata, retomou Odilon junto aos Papas, Imperadores, Reis e senhores feudais, o papel de árbitro, conselheiro e amigo desinteressado que anteriormente haviam desempenhado os Prelados cluniacenses.
Na Itália, Pavia se revoltara contra o Imperador Conrado; tendo-a este subjugado, foi Santo Odilon quem conseguiu o perdão para a cidade. O Imperador Santo Henrique, de volta de Roma, visitou Cluny a convite de Santo Odilon. Estalando uma guerra de sucessão na Borgonha, a posição de inteira isenção e independência da Abadia permitiu ao seu santo Chefe, em 1016, servir de árbitro entre as partes contendoras. Tendo o Papa Bento VIII anatematizado todos os agressores de Cluny e de suas filiais, o Rei francês, Roberto o Piedoso tomou a seu cargo a manutenção da independência de Cluny em relação aos poderes temporais. Ao mesmo tempo, o monarca se felicitava pela reforma que Santo Odilon realizava nas casas religiosas do reino. A ação pessoal de Odilon se fez sentir na França, na Itália e na Suíça. Mensageiros o punham em relações com o Rei Santo Estevão da Hungria, recém-convertido, e com Sancho o Grande da Navarra. Curioso é que Santo Henrique, Imperador do Sacro Império, embora demonstrasse por várias formas a amizade que o ligava a Odilon, sempre conservou para si a direção pessoal dos mosteiros alemães. Apesar dessa restrição, durante o abaciato de Santo Odilon aumentou de 37 para 65 o número de grandes cenóbios que dependiam de Cluny, sem falar nas numerosas casas menores, que eram denominadas celas.
CLUNY E A TREGUA DE DEUS
A vida de Odilon está toda banhada dessa atmosfera de poesia que habitualmente cerca certo tipo de Santos. Os fatos pitorescos se sucedem em sua biografia. Não seria alheia a esta narrativa a citação de alguns deles.
Certa noite um infeliz tentou furtar-lhe o cavalo enquanto o Santo dormia. Força irresistível prendeu montaria e ladrão ao solo, e, ao acordar, o nosso santo Abade deparou-se com o culpado imóvel e aterrorizado. "Meu amigo, disse-lhe, não seria justo que você perdesse toda a noite a guardar o meu cavalo". E, a sorrir, lhe deu algumas moedas. Esse ato de generosidade retrata com cores vivas o caráter de Odilon. Dizia: "O ouro da Igreja não foi feito para ser entesourado, mas para ser distribuído". Segundo seu biógrafo Jotsaud, Odilon "alienou em proveito dos pobres muitos vasos e jóias de sua igreja, inclusive a coroa de Henrique I, julgando indigno recusar esses objetos aos pobres de Cristo, já que seu Sangue havia corrido por eles". Um dia em que alguém criticava este Santo tão enérgico, por certos extremos de indulgência, respondeu: "Se devo ser censurado, prefiro que seja por excesso de doçura do que por dureza ou avareza". Tornou-se famosa naquela época a assistência que a Abadia de Cluny dava não só aos mendigos, mas a quantos, sobretudo peregrinos e cavaleiros lhe pediam acolhida. Houve um monge cronista que calculou que em certo ano foi de dezessete mil o número de indigentes atendidos pela Abadia metropolitana. Em 1018 vasos sagrados foram vendidos para que com o produto dos mesmos fosse socorrido grande número de pessoas que a fome havia surpreendido. Em 1033 paramentos de ouro do altar-mor da casa-mãe foram utilizados para o mesmo fim.
Uma glória que não se pode negar a este santo Abade é a de ter trabalhado com todas as suas forças para impedir as guerras e fazer reinar a paz entre os seus contemporâneos. Foi ele um dos promotores do admirável movimento que deveria culminar com a Paz de Deus e depois com a Trégua de Deus. Como é sabido, pela Paz de Deus restringia-se a guerra àqueles que se achavam em armas, sendo proibido maltratar os Clérigos, as mulheres, as crianças, e os camponeses; as casas dos agricultores eram invioláveis como as igrejas. A Trégua de Deus interditava o combate desde o primeiro domingo do Advento até a oitava da Epifânia, desde o primeiro dia da Quaresma até a oitava da Ascensão, e, no resto do ano, desde a noite de quarta-feira até a manhã de segunda-feira. Quem violava essas disposições estava sujeito às sanções da Igreja.
Santo Odilon rezava constantemente pela libertação do reino de Castela, por espírito de solidariedade cristã com os espanhóis que lutavam contra os muçulmanos, e esse exemplo não é sem importância numa época em que milhões de católicos gemem sob o jugo russo desde a Alemanha Oriental até a China Popular.
Santo Odilon morreu a 2 de janeiro de 1049, não sem ter preparado o "reinado" do grão-prior que o havia assistido, Santo Hugo de Semur, Hugo I o Grande, que levaria Cluny ao seu apogeu.
NOTA INTERNACIONAL
TENDÊNCIAS EXAGERADAS...
Adolpho Lindenberg
A Igreja através dos séculos tem enunciado e pregado os princípios sociais, políticos e econômicos que devem nortear os governos de todas as nações católicas. Cabe a estes a tarefa de aplicar estes princípios de acordo com a história, a mentalidade e a cultura de cada povo. São contingências locais que dão variedade e riqueza às estruturas sociais e políticas das nações da Cristandade, e nesse sentido a Idade Média nos dá esplendidos exemplos.
Não sendo licito a nós católicos discutir os ensinamentos políticos e sociais da Igreja, não raro aparecem divergências a respeito da aplicação destes princípios às várias circunstâncias concretas. O terreno sujeito a diversas apreciações é tanto mais vasto quanto maiores forem as modificações que um determinado partido deseje implantar em seu país.
E' nesse sentido que nos cabe o direito de fazer um comentário a respeito das tendências cada vez mais esquerdistas de alguns partidos democrata-cristãos da América Latina. De acordo com telegramas publicados pela imprensa diária, o I Congresso Internacional Democrata Cristão realizado no Chile, foi liderado por representantes sul-americanos, muitos dos quais defenderam com ardor a formação de uma sociedade inteiramente nova, revolucionária, e equidistante do capitalismo e do comunismo.
Para dar aos nossos leitores uma idéia das reformas ali preconizadas, vamos analisar algumas delas.
REFORMA AGRARIA
Conforme tem magnificamente demonstrado o Exmo. Revmo. Snr. D. Geraldo de Proença Sigaud, Bispo de Jacarezinho, em valiosos artigos e conferências, os países sul-americanos necessitam de uma política agrária a um tempo tradicional e nova. Esta política no entanto, nada tem a ver com a tão decantada reforma agrária que vem sendo anunciada, defendida e estimulada pelos comunistas e socialistas de todos os matizes. O ilustre Prelado, cuja opinião foi perfilhada pelos Srs. Bispos das Províncias Eclesiásticas do Rio e do Paraná, é favorável a uma política agrária que impeça o êxodo rural, que estimule o agricultor a cultivar terras virgens ou cansadas com métodos novos, que o leve a amar o solo por ele trabalhado como o lavrador europeu ama o seu quinhão, que impeça o desenvolvimento de uma industria artificial alimentada por uma legislação protecionista, etc.
Essa política agrária nada tem de comum com os preconceitos e slogans socialistas. A linguagem dos esquerdistas fala em "latifúndio", em "desapropriação pelo custo histórico", em "camponês explorado", em "sindicalização do trabalhador agrícola", em "leis trabalhistas para o homem do campo", etc., e conduz à luta de classes.
Preconizar, portanto, a reforma agrária sem defini-la claramente, é fazer o jogo dos socialistas. Vendo nela um dos meios de remodelar o mundo, certos representantes pedessistas estão fazendo coro com os srs. Nestor Duarte e Josué de Castro.
Será semelhança de tendências com o socialismo, ou chegará mesmo a haver um plano de ação comum?
EQUIDISTANCIA ENTRE O CAPITALISMO E O COMUNISMO
Uma terceira posição na guerra fria, equidistante dos EE. UU. e da Rússia, é uma das aspirações mais caras a certos elementos pedessistas sul-americanos que foram ao Chile.
É curioso que esta equidistância parece não passar de uma formula adotada muito provavelmente para não ferir a opinião católica conservadora: na realidade, a linguagem usada contra os capitalistas é virulenta. e implacável, ao passo que a condenação do comunismo é de uma serenidade toda teórica.
Convém, no entanto, lembrar uma diferença essencial entre o capitalismo e o comunismo. A Igreja condenou os abusos do primeiro mas não o considera mau em si, ao passo que, quanto ao segundo, todos os Papas o têm declarado intrinsecamente errado. Além disso, os comunistas têm perseguido a Igreja, pregado o ateísmo, enquanto que nos países capitalistas a situação dos católicos deixa a desejar, mas eles não sofrem perseguições.
Considerar, portanto, o capitalismo tão maléfico quanto o comunismo, a ponto de recomendar uma posição equidistante entre ambos, é um absurdo. É tão absurdo quanto equiparar a nocividade de um fruto verde à de um fruto venenoso.
OS CATÓLICOS FRANCESES DO SÉCULO XIX
PIO IX CONVOCA O CONCÍLIO UNIVERSAL
Fernando Furquim de Almeida
Combatido e atacado pelos liberais de toda a Europa, ameaçado de ser espoliado dos seus Estados, atraiçoado por Napoleão III, Pio IX aproveitou o décimo oitavo centenário do martírio dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, em 1867, para mostrar a universalidade da Igreja e a união do Episcopado à Santa Sé. Convocou para assistirem às comemorações os bispos e fiéis de todo o mundo, e conseguiu reunir em Roma cinquenta e três cardeais, perto de quinhentos bispos, dez mil padres e uma multidão de peregrinos de todos os países.
Numa das solenidades, o Santo Padre anunciou publicamente sua intenção de convocar em breve um concílio ecumênico. A notícia, colhendo a todos de surpresa, teve uma repercussão enorme. Havia já três séculos que se realizara o Concílio de Trento, e desde então parecia impossível reunir novamente os Padres da Igreja. É verdade que, logo depois da publicação da Encíclica "Quanta Cura" e do "Syllabus", Pio IX consultara secretamente alguns bispos sobre a oportunidade de uma tal iniciativa. Mas o segredo fora tão bem guardado, e a idéia da inviabilidade de um concílio universal estava de tal forma arraigada nos espíritos, que ninguém supunha que o Pontífice tivesse realmente a intenção de convocá-lo. Um ano depois das festas centenárias, no entanto, Pio IX publicava a bula de indicação, designando o dia 8 de dezembro de 1869 para a abertura dos trabalhos conciliares.
A primeira reação dos católicos foi uma alegria otimista. A Santa Sé, espezinhada e perseguida politicamente, combatida até por alguns de seus filhos, dava uma prova cabal de sua pujança e de sua força. Passado, porém, o primeiro momento de euforia, as dificuldades começaram a se fazer sentir.
A infalibilidade do Papa e o "Syllabus" seriam certamente as questões dominantes no Concílio, e as divergências que neste terreno dividiam os católicos iriam inevitavelmente se evidenciar. Sintomática foi a atitude dos fiéis que se achavam em Roma por ocasião das comemorações do martírio dos Santos Apóstolos. Louis Veuillot e Mons. Dupanloup recebiam visitas procedentes de todas as latitudes. Todos queriam conhecer a opinião dos dois chefes incontestáveis do ultramontanismo e do catolicismo liberal, respectivamente. Conta-se que quando o Padre Sanchez, diretor do jornal católico espanhol "Lealtad", foi apresentado a Mons. Dupanloup, e este, na sua febre característica de arregimentar adeptos, foi logo lhe perguntando qual era a sua orientação, ouviu-se esta precisa e enérgica resposta: "De nenhum modo Dupanloup; sou todo Veuillot".
De início, os católicos liberais, apreensivos, quiseram evitar que o Concílio se transformasse em um julgamento de suas idéias. Para esse efeito procuraram a todo custo abafar as polêmicas sobre o "Syllabus" e a infalibilidade, na esperança de que, deixando de ser questões discutidas, elas não fossem objeto de deliberação dos padres conciliares. Montalembert, porém, não compreendeu o silêncio de seus amigos. Doente, e tendo sofrido um desastre de carruagem, que o retinha no leito com dezoito ferimentos, aproveitava os intervalos entre os curativos para escrever a todos, e especialmente a Mons. Dupanloup, pedindo que o Bispo de Orléans interviesse para impor à Santa Sé o programa do Concílio. O Conde de Falloux, alarmado com a fogosidade de seu amigo, tentou sossegá-lo expondo claramente a tática dos liberais:
"A moderação nos trabalhos preparatórios do Concílio está na ordem do dia. O Papa mesmo teria dito recentemente: ‘O Syllabus, dizem, deve ser mantido na sombra, pois se fosse tratado seria o tempero do Bispo de Orléans que prevaleceria’. Esperemos portanto, caro amigo, que esta paciência que nos custa tanto e tão justamente, a vós mais do que a ninguém, nos terá valido o que ela nos terá custado, e que será logo recompensada por um desses golpes de luz e de graça que iluminam toda a história da Igreja.
"Um concílio não pode proclamar (a infalibilidade) sem defini-la, e não pode defini-la sem limitá-la. Se for dada uma definição solene, todos esses exageros pueris serão reduzidos a nada: a palavra ex cathedra será explicada, terá suas condições e suas leis".
Não foi só Montalembert que não compreendeu a atitude prudente dos católicos liberais franceses. Os teólogos alemães — que desprezavam os ensinamentos da Santa Sé a ponto de dizerem "Doctor romanus, asinus germanus" — julgavam também bastante fraca a cultura teológica francesa. Convencidos de que seriam eles os doutores ouvidos pelo Concílio, passaram a tratar a infalibilidade e o liberalismo com uma desenvoltura que fazia as delícias de Montalembert.
Mas em princípios de 1869 a "Civiltà Cattolica" publicou um artigo em que dizia:
"Ninguém ignora que os católicos da França estão infelizmente divididos em dois partidos: uns simplesmente católicos; outros que se dizem católicos liberais. Os católicos propriamente ditos crêem que o Concílio será bem curto. Esperam que ele proclame as doutrinas do Syllabus, enunciando por meio de fórmulas afirmativas, e com os desenvolvimentos necessários, as proposições que foram expressas sob a forma negativa. Eles acolherão com alegria a proclamação da infalibilidade dogmática do Soberano Pontífice. Ninguém se admira de que, por um sentimento de justa reserva, Pio IX não queira tomar a iniciativa de uma proposição que parece referir-se a ele diretamente. Mas espera-se que a manifestação unânime do Espírito Santo, pela boca dos Padres do Concílio Ecumênico, a definirá por aclamação".
O caráter oficioso da "Civiltà Cattolica" propiciou uma repercussão bem grande a esse artigo, e desde então não foi mais possível, apesar dos esforços de Mons. Dupanloup e seus amigos, evitar a discussão pública desses assuntos. Iniciava-se o grande debate que precedeu o Concílio do Vaticano.
NOVA ET VETERA.
A Lição de Lechfeld
J. de Azeredo Santos
No mundo contemporâneo, mais do que em qualquer outra época da história da humanidade, a força dos inimigos da Cristandade se acha multiplicada pela fraqueza dos próprios filhos da Igreja. A não-resistência ao inimigo vem sendo apresentada em nossos dias como um dever dos católicos, pregando-se essa teoria da inação diante do mal em nome de uma deturpação da mais alta das virtudes teologais, que é a Caridade.
Pois é em plena efervescência da propaganda dirigida pela subversão totalitária a favor da coexistência ativa do Oriente soviético com o Ocidente cristão, é no aceso da campanha derrotista no sentido de não se resistir aos avanços do imperialismo comunista, que nos vem uma impressionante palavra de ordem de Pio XII.
Conclama o Santo Padre o Ocidente a se unir diante da grande ameaça do Oriente pagão e materialista. Em carta ao Bispo de Augsburgo, de 27 de junho do ano findo, ao se comemorar o milênio da batalha de Lechfeld, em que as armas católicas repeliram a ameaça das hordas do Oriente pagão, mostra o Soberano Pontífice como "nestes dias em que a cultura ocidental se acha tão ameaçada", a recordação de tal feito "vem muito a propósito".
De Santo Ulrico, Bispo de Augsburgo, que comandou a defesa da cidade contra o assédio dos húngaros e foi a alma da vitória final de Oton o Grande sobre esses bárbaros no campo de Lech, faz Pio XII o seguinte elogio: "Em Ulrico, o santo e grande Bispo, estão personificadas de maneira impressionante a força interior do Ocidente cristão, a Fé católica, a oração, e a criação de valores religiosos e culturais dessa Fé".
E a esta altura relembra o Santo Padre quanto e Ocidente cristão deve àqueles que, no passado, o livraram da barbárie do Oriente: "A vitória do Rei, depois Imperador, Oton o Grande sobre os húngaros salvou o Ocidente cristão de um terrível perigo do Leste pagão. A batalha no campo de Lech está na mesma linha da batalha e da vitória de Carlos Martel entre Tours e Poitiers, no ano de 732, como também da brilhante vitória, sob os muros de Viena, no ano de 1683, de Carlos de Lorena e do Rei dos poloneses, Sobieski, nos tempos em que o Papa Inocêncio XI e o Imperador Leopoldo haviam conseguido formar um baluarte europeu de proteção contra o terrível perigo para o Ocidente cristão".
A IGREJA E A VERDADEIRA CULTURA
São Pio X já havia afirmado com toda a clareza que não há civilização verdadeira sem a verdadeira Religião. Pio XII relembra esta verdade ao mostrar que, sem confundir-se com cultura alguma, a Igreja fecunda e aglutina todas elas: "A Igreja Católica não se identifica com a cultura ocidental, não se identifica com nenhuma cultura em particular, mas está disposta a acolher todas as culturas: reconhece de bom grado tudo o que em cada uma não se opõe à obra do Criador, o que é compatível com a dignidade do homem e seus direitos e deveres naturais, mas nelas introduz, acima de tudo, a riqueza e a verdade da graça de Jesus Cristo, e logra com isso que as diversas culturas, por muito estranhas que pareçam entre si, se aproximem e cheguem a ser verdadeiras irmãs. A história da pregação e desenvolvimento do Cristianismo e da Igreja, desde a invasão dos bárbaros até hoje, é uma prova contundente da benção que da Igreja Católica dimana sobre as culturas. Neste sentido também se empenha a Igreja na renovação e fortalecimento da cultura ocidental".
Não se identifica e Santa Igreja com nenhuma cultura em particular, como reiterou o Pontífice em sua tão importante alocução aos membros do X Congresso Internacional de Ciências Históricas (7 de setembro de 1955), mas para que haja a plenitude da cultura no seio de um povo é preciso que esse povo confesse a Jesus Crucificado, a Luz do mundo. Eis, prossegue a carta ao Bispo de Augsburgo, a condição indispensável para a renovação da cultural ocidental: "Com isto fica formulado em que consiste a renovação da cultura ocidental: precisamente em que o homem ocidental volte a professar e reconhecer a verdade e a graça de Cristo, as acolha dentro de si, e as converta em fundamento de toda a sua existência. Ao contrário da nova forma de vida do Oriente materialista, o Ocidente declara defender a dignidade e os direitos do homem, em primeiro lugar, pela liberdade do indivíduo. Mas há de ter o cuidado de que a dignidade e os direitos do homem - especialmente sua liberdade pessoal - não se voltem contra ele próprio e até se destruam a si mesmos se não aceitos, em união com os direitos, os deveres com os quais a ordem da natureza e a graça os uniram indissoluvelmente e que se mostram ao homem nos Mandamentos de Deus e na lei de Cristo".
A MAIOR CALAMIDADE DO OCIDENTE
Para aqueles que vêm na fase dispersiva da moderna Cristandade o "céu recamado de estrelas" do pluralismo religioso, etapa superior por seu apregoado espírito de compreensão "à torre que se levanta no meio da planície", representativa da unidade religiosa medieval, recorda o Papa que em 1955 também se comemorava outro acontecimento de graves consequências, ocorrido dentro dos muros de Augsburgo: o tratado firmado a 25 de setembro de 1555 para promover a chamada "Paz Religiosa de Augsburgo", com que se selava a cisão religiosa da Alemanha. "O bem do reino e da Igreja, diz Pio XII, para a qual se tratava de existir ou não existir dentro das fronteiras alemãs, justificava a assinatura dos príncipes católicos no tratado de paz. Mas não nos hão de levar a mal que consideremos a cisão da unidade religiosa da Alemanha e da Europa como a maior calamidade que pôde acontecer ao Ocidente cristão e à sua cultura. Ser-Nos-á permitido, em recordação desse dia, expressar a esperança de que o caminho que a Divina Providencia assinala ao Ocidente volte a conduzir mais e mais para a unidade perdida? Pois não podemos deixar de repetir para o Ocidente o que há precisamente três anos explicávamos da cultura européia (carta de 17 de julho de 1952 à Associação Católica de Mulheres): que haverá de ser cristã e católica sem falsidade, ou será devorada pelo incêndio daquela outra cultura materialista para a qual só têm valor a massa e a força puramente física".
CO-EXISTÊNCIA DO OCIDENTE E DO ORIENTE
Volta o Santo Padre à batalha de Lech para acentuar que a vitória das armas católicas não significou a destruição dos húngaros pagãos, mas sua conversão à Fé católica. "Seja este acontecimento um augúrio para nossos dias! O autêntico ocidental cristão há de ter para com os povos orientais que vivem oprimidos por um conceito materialista do mundo, convertido em ditadura, pensamentos de paz e de amor. Enquanto o problema da coexistência preocupa incessantemente os espíritos, Nós podemos afirmar sem reserva um tipo de coexistência: os ocidentais crentes oram em comum com os de além da cortina de ferro que porfiam em elevar as mãos a Deus - e não são poucos - pedindo que todos sejamos um só na plena liberdade de realizar a vida pessoal, ao mesmo tempo que a vida pública, segundo a vontade de Deus, e que aqueles que se propuseram construir um mundo sem Deus e sem Cristo possam voltar da noite e do frio de seu afastamento de Deus ao sol da verdade, justiça e amor: a Jesus Cristo que é sobre todas as coisas Deus bendito por todos os séculos".
Um Ocidente cristão unido pela verdadeira Fé e que resiste ao embate do Oriente totalitário e pagão - eis o ardente desejo do Vigário de Cristo. E a coexistência, não com o comunismo intrinsecamente perverso, mas, através do dogma da comunhão dos santos, dos fiés do Ocidente com os encarcerados pela cortina de ferro: a coexistência por meio da oração para que Deus liberte a humanidade do flagelo bolchevista, eis outra diretriz que nos dá o Santo Padre, e eis como um Ocidente autenticamente cristão poderá enfrentar o grande perigo que do Oriente pagão ameaça a Cristandade em nossos dias.