P.02-03

(continuação)

O ANTI-COMUNISMO

In-dissolubilidade, In-dependência, In-falibilidade: atributos negativos?

escandaloso, em que não nasceu qualquer surto de anticlericalismo.

Do mesmo modo, a indiferença de tantos burgueses à miséria do povo certamente favoreceu o alastramento do comunismo. Mas seria ridículo ver nisto a causa principal ou única de tal fato. Este resulta de todo um clima espiritual, cultural e moral. Se o comunismo fosse mero produto da fome, não poderia surgir em ambientes ricos. Ora, é notório que ele se desenvolve vigorosamente em certos círculos burgueses onde não há fome: professores, estudantes de universidade, escritores. E, mais ainda, em certos círculos “ultraburgueses” onde a fartura atinge seu máximo: pessoas de sociedade, altos financistas, políticos de grande projeção, etc.

E, pois, é falso que abrir escolas e instituições de assistência, melhorar salários, etc. baste para eliminar o comunismo. Confinar a reação anticomunista a este campo meritório embora, mas pacífico, e flagrantemente insuficiente, é quase o mesmo que cruzar os braços ante o adversário.

* * *

O mesmo se diga, mutatis mutandis, no plano internacional. Há entre nós quem espere que a inauguração de um regime de encontros internacionais, acompanhados de banquetes, de “toasts”, de sorrisos, e de muitas concessões ao Oriente, produza atrás das cortinas de ferro e de bambu uma distensão psíquica, um clima de tepidez, bonomia e cordura, que salve a paz. De onde a luta contra o comunismo se resumiria em sorrir, banquetear-se e ceder.

Que haja utilidade para a causa da paz, em tratar os problemas com o Oriente num ambiente polido, e até cortês, ninguém o pode negar. Que algumas pequenas concessões possam ser necessárias para alimentar este ambiente, é óbvio. Mas pensar que as vantagens dessa política possam ir além, e que nossos sorrisos tenham o dom dos acordes maviosos da lira de Orfeu, tornando mansas e meigas as feras, fazendo dos dirigentes comunistas políticos paternais, e até bonachões, é o que só pela ingenuidade mais extrema, ou pela mais funda vontade de não lutar, se pode explicar.

Não desejamos ser contundentes. Mas para tratar do presente assunto inteira e honestamente, é preciso que digamos ser de todo em todo primária tal concepção. Pois ela revela uma ignorância total do que seja o mal, seu fascínio sobre as paixões desregradas do homem decaído, o poder do erro e do demônio, etc. Só assim se compreende que se imagine destruir só com sorrisinhos, com banquetórios diplomáticos, com pequenas amenidades de salão, a fortaleza do anti-Cristo marxista.

Falando em Fátima aos Pastorinhos, Nossa Senhora recomendou outros remédios, bem mais profundos, entre os quais a regeneração moral e a penitência. E o Santo Padre Pio XII, aliás tão cioso de apresentar a todos os homens bons e maus, um semblante paternal e um coração aberto, parecendo fazer eco à mensagem de Fátima, e considerando o assunto “sub specie aeternitatis”, deitou o melhor de sua esperança de solução do problema comunista, na consagração da Rússia ao Coração Imaculado de Maria.

* * *

Assim, não há meio de destruir o comunismo só por uma ação extramilitante. É preciso tomar claramente posição contra ele. À propaganda comunista, é preciso opor uma reação nitidamente anticomunista.

Mas o espírito liberal, hostil a qualquer luta, ainda aqui levanta uma dificuldade. “Sou absolutamente contrária a qualquer ação anticomunista, disse-me certa pessoa. Pois toda ação anti é negativa. E todos os ideais que se apresentam sob forma negativa não são senão negação e, portanto, não passam de falsos ideais!”

Pobre subterfúgio, que parece não atender às limitações naturais da linguagem humana, a qual, pela insuficiência que lhe vem da queda original, exprime conceitos dos mais altos e positivos, dignos de constituírem ideais de vida, sob forma negativa.

A menos negativa das coisas é a in-falibilidade do Papa. Não se poderia chamar de negativo o estado de in-dependência de um povo, a in-nocência de uma donzela, a in-abalabilidade de um católico em sua fé, a honra in-acusável de uma esposa, a glória in-alienável de um varão, a in-amovibilidade de um mestre em sua cátedra, o valor in-apreciável de uma jóia, a riqueza in-calculável de um financista, a bondade in-comensurável de um coração, a constância in-defectível de um amigo, o serviço in-dispensável de um cooperador, o direito in-disputável do trabalhador ao seu salário, o vínculo in-dissolúvel do matrimônio, a palavra in-dubitável do homem de bem, a indulgência in-esgotável da mãe, a beleza in-efável de um panorama, a duração in-finita da felicidade eterna, a vida in-mortal da alma, a alvura im-maculada de uma veste, a sabedoria in-sondável de um teólogo, o veredicto in-suspeito de um juiz, a solidez in-vulnerável de um raciocínio, a segurança de alma in-quebrantável de um missionário, etc.

Dizer, portanto, que a ação anticomunista é negativa só porque se delineia em termos negativos, é falso.

Muito melhor se prova entretanto o caráter positivo de uma tal ação, quando bem compreendida, analisando-a em seu próprio conteúdo.

É tarefa de que nos desincumbiremos, Deo volente, em outro artigo (Ver Catolicismo Nº 66 de Junho de 1956).

* * *

Desde já, entretanto, podemos dizer que a mais positiva das obras que existem sobre a terra é a implantação do reino de Maria. Ora, a ação anticomunista, na medida em que tende a destruir o mais encarniçado dos adversários desse reino, é uma ação intrinsecamente positiva, se bem que seu aspecto seja meramente negativo.


A GLORIA DE NOSSOS DIAS

Quando se escrever a história da Igreja no século XX, nossos dias aparecerão refulgentes de glória aos olhos da posteridade. Não porque a história verdadeira e imparcial aceitará como autênticos alguns "triunfos" apostólicos ilusórios, decorrentes de uma temerária cooperação com o comunismo, o laicismo e outros erros da época. Mas porque se patentearão resistências admiráveis, dignas dos primeiros séculos do Cristianismo.

A imprensa profana, e a própria imprensa católica, não têm ressaltado suficientemente a epopéia de fidelidade ao Sumo Pontífice, em lugares longínquos do Oriente. Uma propaganda infernal procura instituir ali - como aliás na Polônia, na Checoslováquia, na Hungria - igrejas nacionais. Mas, essa tentativa sacrílega tem sido repelida com impressionante denodo.

Do alto teor espiritual que anima toda essa admirável reação, nos dá uma idéia palpitante esta bela carta dirigida ao Santo Padre Pio XII por um Sacerdote e 1.600 fieis vietnamitas.

As pessoas dotadas de senso católico saberão discernir nela um acento de sinceridade e fervor que, por certo, as impressionará profundamente.

Traduzimo-la do no 5 da revista francesa "L'avenir d'outre mer". É o seguinte o seu texto:

"Santo Padre

Um Sacerdote do Vietnam e 1.600 cristãos de sua paróquia que vêm de deixar a zona comunista e se refugiaram na zona nacional oferecem a Vossa Santidade, com veneração e fervor, seus sentimentos de obediência, de fidelidade e de afeição filial.

Nossa situação sob o jugo comunista era verdadeiramente dolorosa e mísera, porque não nos podíamos comunicar com a Santa Sé, nem com Vossa Santidade. Mais ainda, pela mentira e pela violência, os comunistas procuravam nos separar da Santa Sé, e quebrar os sentimentos de adesão filial que temos para com o Santo Padre.

Lutamos com coragem para preservar nossa Fé e nossa fidelidade à Sé Apostólica. É por isso que numerosos Padres e cristãos foram perseguidos, aprisionados ou mortos.

Agora que atravessamos a cortina de ferro comunista, é com alegria e emoção que vimos Vos oferecer, Santíssimo Padre, a homenagem de nossa afeição, de nossa fidelidade e de nossa veneração. Rogamos a Vossa Santidade que Se digne aceitar esta homenagem de seus filhos longínquos que sofrem e estão na miséria por sua Fé, e rogamos que nos abençoeis, a nós, a nossa Pátria e a nossa Missão".


O campanário da Água Benta, remanescente da Basílica monumental edificada por S. Hugo

CLUNY,

ALMA DA IDADE MEDIA - II

«Um fraco Rei faz fraca a forte gente»

Celso da Costa Carvalho Vidigal

No fim do abaciato de Odilon e no princípio do de S. Hugo, a Ordem de Cluny terminou o seu período de formação. O princípio do mosteiro beneditino autônomo e independente se modificou, passando pelo sistema do vínculo pessoal, a uma organização em que uma única Abadia, a de Cluny, gozava não somente da plenitude dos direitos atribuídos por S. Bento a toda casa regular, mas ainda de um certo número de privilégios de hegemonia ou de supremacia sobre toda uma série de mosteiros. Os direitos próprios a cada um destes últimos são mais ou menos diminuídos, todos estes mosteiros particulares participam da vida de um corpo do qual a Abadia de Cluny é ao mesmo tempo a cabeça e o coração, e de que eles não são mais do que uma emanação sem existência verdadeiramente autônoma" (1). Em outras palavras, no momento em que morreu Santo Odilon, após cinquenta e cinco anos de abaciato, quase toda a vida monástica do Ocidente convergia em torno de Cluny.

Nascido para a grande política

Filho da nobre família dos Condes de Semur, que possuíam vastas propriedades no Brionnais, no Mâconnais e no Autunois, S. Hugo descendia pelo lado paterno de um companheiro de armas de Guilherme, o Piedoso, e, pelo lado materno, estava ligado à ilustre casa dos Robertianos, da qual saíram as dinastias capetíngias dos Reis da França e dos Duques da Borgonha. Tinha apenas vinte e cinco anos quando recebeu a cruz abacial no dia 15 de janeiro de 1049.

De porte elevado, feições nobres, excelente orador, diplomata delicado e persuasivo, realmente nascido para a grande política, Hugo de Semur exerceu desde logo ação influente nos mais variados pontos da Europa. Já antes de sua elevação ao abaciato assistiu à dieta de Worms, e foi no decorrer dessa assembléia que recebeu a notícia da morte de Santo Odilon. Poucos meses mais tarde, por ocasião da eleição canônica (2) de Bruno de Toul, futuro S. Leão IX, para o trono pontifício, estava em Roma. A 31 de março de 1051 levava às fontes batismais o futuro Imperador Henrique IV. Enviado em missão à Hungria, conseguiu evitar uma guerra entre o Sacro Império e o Rei André; o ouro que então lhe foi oferecido pelos húngaros serviu para confeccionar um grande turíbulo que foi por muitos anos conservado na Abadia de Cluny. Em Florença, em 1058, recebeu o último suspiro do Papa Estevão IX, seu grande amigo. Em muitas ocasiões foi nomeado Legado Pontifício por Nicolau II e por Gregório VII. Tomou parte em numerosos Concílios na França, em Roma e na Alemanha, e acompanhou o Bem-aventurado Urbano II, antigo monge da família cluniacense, ao Concílio de Clermont, em 1095. É importante notar que todos esses Papas com que teve relações foram Pontífices reformadores, que pertenceram ao grupo de que S. Gregório VII foi o grande articulador.

Dotado de uma dessas francas humildades que resistem à atração das honras, mesmo quando apresentadas sob o aspecto de dever a cumprir, Hugo recusou a tiara que várias vezes lhe foi oferecida. Por outro lado, aceitou privilégios honoríficos que não eram puramente pessoais mas visavam também ao chefe da Ordem, e dos quais seus sucessores também usariam: assim é que, em 1088, lhe foi concedido o uso da mitra nas procissões e nas missas solenes; da dalmática, das luvas e das sandálias episcopais nas cinco grandes festas litúrgicas e mais na Epifania, na Ascensão e no aniversário da consagração da igreja abacial.

Durante o seu longo governo, Hugo teve a consolação de ver dois de seus monges elevados ao trono pontifício: em 1088, sob o nome de Urbano II, Odon de Lagery, antigo Arcediago de Reims, depois Prior de Cluny, e por fim Bispo de Ostia, um santo, e um hábil político; e em 1099, Pascoal II, que fora monge da Abadia metropolitana e depois Abade de São Paulo fora dos muros, em Roma. Longe de se sentir envaidecido por essas sucessivas exaltações, Hugo se contentou em ser sempre o melhor auxiliar do Papado na luta que este levava a efeito contra os abusos do poder civil, contra a decadência dos mosteiros e contra o relaxamento dos costumes do Clero secular, devorado pela lepra da simonia: na luta, enfim, para fazer triunfar por toda a parte a autoridade soberana da Igreja, a integridade da doutrina católica e o esplendor da perfeição cristã. Entretanto, o santo Abade teve sempre o cuidado de não se afastar de sua missão fundamental, de reformador monástico.

S. Hugo e S. Gregório VII

Em janeiro de 1075, S. Gregório VII, o infatigável batalhador que deu de si mesmo o testemunho de ter "amado a justiça e odiado a iniquidade", escrevia a Hugo: "Quero que conheças todas as angústias que assediam minha alma. Teu amor fraterno te fará então pedir a Deus que Jesus queira me estender a mão, a mim miserável, e me livrar de minhas penas. Parece-me que a chama de tua afeição vai decrescendo, pois que não posso obter de ti a consolação, tantas vezes reclamada, de tua visita. Convido agora, do mais profundo de meu coração, tua amizade a vir me assistir, o mais prontamente possível, no meio das grandes dificuldades em que me encontro".

Muito se tem escrito acerca da atitude de mediador que o santo Abade teria assumido junto a S. Gregório VII em Canossa, quando, como sabemos, o Imperador Henrique IV, excomungado pelo Papa, ali se apresentou com os pés nus sobre a neve e o hábito de penitente, para pedir perdão de suas faltas. Conta-se que foi S. Hugo, padrinho do monarca, um dos que intercederam junto ao Sumo Pontífice a fim de que este usasse de misericórdia para com o pecador que manifestava arrependimento. Não se conhecem entretanto as circunstâncias exatas em que isso se deu: de

(continua)