(continuação)
CLUNY
Na defesa de suas prerrogativas, S. Hugo resistiu valentemente às tropas do Bispo Drogo
qualquer maneira, claro está que seria um erro admitir o que certos historiadores pretendem, isto é, que a doçura de S. Hugo venceu ali a energia de S. Gregório VII, como se doçura e energia se opusessem uma à outra em vez de serem virtudes que se completam. É de todo inadmissível qualquer interpretação dos fatos que implique em qualquer censura à fortaleza apostólica de S. Gregório VII. Só certas tendências modernas que procuram confundir a santidade, e mais especialmente a caridade, com doçura almiscarada e com uma tolerância levada ao extremo mais pernicioso, é que podem levar alguém a criticar o grande reformador da Igreja. Afinal, se Gregório VII foi canonizado devemos admitir que seus atos têm a chancela da Igreja infalível.
Defendendo Cluny contra a força armada
Como seus antecessores, Hugo de Semur queria a prática sem reservas da caridade, dever primordial dos Religiosos. É melhor, dizia, "gastar o ouro e a prata do que guardá-los rutilantes nos cofres". Sob seu abaciato a hospitalidade em Cluny continuou magnífica. Entre outros visitantes ilustres, Santo Anselmo de Cantuária teve ocasião de se hospedar ali em 1097.
A propósito de visitas a Cluny é curioso recordar um episódio ocorrido durante uma estadia do Bem-aventurado Urbano II na Abadia mãe. Conduzido por S. Hugo ao Priorado de Montei, lá, em presença do senhor de Bourbon, Archambaud V, e enquanto se entoava o salmo Miserere, o Papa tocou com uma vara simbólica a pedra tumular de Archambaud IV, morto sob o peso da excomunhão. Em seguida o Pontífice declarou que em virtude de seu poder supremo herdado de São Pedro, o morto, que se arrependera in extremis, "era reintegrado na comunidade dos fiéis".
Mas as manifestações de bondade do Abade Hugo não devem criar ilusões acerca de sua firmeza. Soube defender com rara energia as prerrogativas de Cluny e de suas filiais. Os domínios da Abadia, dia a dia mais extensos em virtude das doações recebidas e principalmente dos dotes trazidos por monges pertencentes a famílias ricas, não podiam deixar de excitar a inveja e a cobiça dos vizinhos. Em muitas ocasiões foi necessário defendê-los contra as manobras dos senhores de Brancion, de Berzé, de Bussières, dos Condes de Chalon, dos Bispos de Mâcon.
Em 1063, um destes últimos, Drogo, tentou à mão armada submeter Cluny à sua autoridade. Apesar das bulas pontifícias que concediam privilégios de plena isenção à Abadia, e garantiam a independência de seus domínios, o belicoso Prelado quis se introduzir na Igreja de S. Maieul para ali exercer os seus pretensos direitos episcopais. S. Hugo fez fechar as portas da cidade, e nem Drogo nem os homens de armas que trazia consigo puderam fazer ceder a resistência que os homens de Cluny lhe opuseram. O Bispo se retirou exasperado, enquanto o Santo Abade recorria à proteção de Santa Sé. Pouco tempo depois um Sínodo provincial, realizado em Chalon-sur-Saône e presidido pelo Legado Pontifício Pedro Damião, o santo Cardeal-Bispo de Ostia, condenou severamente Drogo.
"Nenhum outro mosteiro o iguala"
A 7 de março de 1080, no Concílio de Roma, S. Gregório VII proclamava: "Sabei, irmão meus no sacerdócio, vós todos que tomais parte nesta santa assembléia, que entre todos os nobres mosteiros fundados além dos montes, para a glória de Deus Todo-Poderoso e dos Bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, um há que é propriedade de S. Pedro, que está unido à Igreja de Roma por um direito especial. Esse mosteiro é o de Cluny. Votado principalmente, desde a sua fundação, à honra e à defesa da Sé Apostólica, pela graça e a clemência divinas chegou, sob santos Abades, a uma tal grandeza e a uma tal santidade, que ultrapassa todos os mosteiros de além montes no serviço de Deus e no fervor espiritual. Nenhum outro o iguala".
O esplêndido elogio era bem merecido; pode-se dizer que Cluny cobria com sua sombra fecunda o mundo cristão. Da Hungria e da Polônia até a Espanha e a Inglaterra seu nome era respeitado e acatado; a Abadia metropolitana tinha mais de mil casas sob sua dependência. Várias fundações haviam sido feitas por monges da Congregação que aspiravam a uma vida ainda mais perfeita; entre elas se contam a Grande Cartuxa em 1084, e pouco depois o mosteiro de Citeaux, casa-mãe da Ordem dos Cistercienses que vinte anos depois teria a glória de contar entre os seus membros o grande S. Bernardo. Era tal o prestígio dos filhos do Beato Bernon que houve quem dissesse "não se poder pensar que a Igreja se sentisse em segurança senão graças à vigilância e ao devotamento dos monges de Cluny".
Seria deixar de lado um capítulo importante da história cluniacense não nos referirmos às glórias que foram colhidas pelos monges, também no terreno artístico. Entre elas cabe citar a belíssima igreja abacial que S. Hugo iniciou em 1088 e foi terminada pouco depois de sua morte. A abacial subsistiu por sete séculos e foi destruída pela Revolução Francesa, que na sua fúria anticristã não poderia deixar de pé o monumento que lembrava tantos fastos da história da Igreja. A última glória de Cluny foi o martírio de seu Prior Dom Courtin e de muitos outros monges, a 29 de março de 1794, vítima dos revolucionários.
Cister substitui Cluny
No dia 29 de abril de 1109, depois de sessenta anos de governo, entregava sua alma ao Senhor o sexto Abade de Cluny, S. Hugo de Semur, cuja vida foi uma constante demonstração de amor à Santa Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Durante duzentos anos a famosa Abadia da Borgonha havia sido o maior foco de santidade do mundo ocidental, esteio da Igreja e do Papado, a verdadeira alma da Idade Média. Os primeiros anseios de reforma haviam nascido ali, e de lá se haviam espalhado por todo o mundo. Agora a causa estava ganha: Gregório VII e Urbano II haviam consolidado os efeitos da ação reformadora. Em 1100, Pascoal II proclamou em carta aos Arcebispos e Bispos da França que os Papas sempre haviam considerado Cluny "como a pupila de seus olhos", o que é dizer muito a respeito da contribuição da Ordem para a causa da renovação espiritual da Igreja.
Mas, infelizmente, com a morte de S. Hugo terminava uma fase da história de Cluny. Seus sucessores não estiveram à altura do Santo. O primeiro deles, que governou de 1109 a 1122, morreu excomungado. A eleição de Pedro, o Venerável, para ocupar o trono abacial de 1122 a 1150 não pôde modificar profundamente os novos rumos que Cluny tomara, e que eram bem diferentes dos que haviam sido seguidos pelos seus grandes Abades. A Congregação cluniacense já não tinha mais o vigor de outrora, e já não era capaz de corresponder à missão que lhe cabia na Igreja. Assim é que, durante o próprio abaciato de Pedro, o Venerável, São Bernardo, filho da Ordem de Cister, aparece como a figura monástica de maior projeção dentro da Cristandade. Algo enfraquecera Cluny, e seu papel passara às mãos dos cistercienses na pessoa do grande Doutor Melífluo, Bernardo de Claraval.
Tanto é verdade que "um fraco Rei faz fraca a forte gente" (Lusíadas, canto III, estância 139).
(1) Guy de Valous, "Le monachisme clunisien des origines au XVème. siècle", t. II, p. 13.
(2) S. Leão IX, eleito Papa pelo Imperador Henrique III, a fim de salvaguardar o princípio da independência da Sé Apostólica declarou que só consideraria canonicamente válida a sua eleição se, como então se fazia, fosse aclamado Papa pelo Clero e pelo povo de Roma. E de fato o foi.
NOTA INTERNACIONAL
Tendências exageradas... II
Adolpho Lindenberg
Concluímos hoje as considerações que, em nossa última nota, começáramos a tecer a respeito das tendências cada vez mais esquerdistas de alguns partidos demo-cristãos da América latina.
Analisamos a reforma agrária, e a equidistância entre capitalismo e comunismo, preconizadas no Encontro Mundial Democrata Cristão recentemente realizado no Chile. Resta-nos focalizar outra grande aspiração defendida naquele congresso, bem como o que ali se deixou indevidamente de lado.
Reestruturação da empresa
O Santo Padre Pio XI em sua encíclica "Quadragesimo Anno" ensina que em determinadas circunstancias se recomenda a participação dos empregados nos lucros e na administração das empresas. A participação nos lucros deve ser encarada, segundo o Santo Padre, como uma melhor forma de proporcionar o ganho do trabalhador às variações naturais de sua produção. O salário, no entanto, é um sistema de remuneração perfeitamente justo, e adequado de um modo todo especial às empresas nas quais as variações de produção dos empregados sejam diminutas.
Pretender - como se pretendeu na reunião do Chile - modificar a estrutura de todas as empresas por meio de um ato do poder público que torne obrigatórias a participação nos lucros, implica na condenação do regime do salariado, o que é claramente contrário à encíclica de Pio XI. Além disso, é medida já várias vezes condenada pela prática e hoje em dia considerada como anacrônica.
Mais ainda, porém, do que o desacerto, a inoportunidade e a pobreza da idéia, lamentamos o seu caráter nitidamente socializante.
O mesmo sabor, ou melhor, o mesmo ranço esquerdista que se nota no fanatismo pela reforma agrária e no desejo de se manter equidistante entre o capitalismo e o comunismo, marca e caracteriza o movimento pela "reestruturação da empresa".
Omissões sensíveis
Analisamos com pesar aquilo que, segundo alguns delegados sul-americanos ao Congresso do Chile, seriam as três aspirações máximas a serem realizadas pelos partidos democratas-cristãos de todo o mundo. Infelizmente, ainda há mais: haveria também reparos a fazer sobre omissões. Realmente, nessa imensa e trágica Babel em que se transformou o mundo e que caminha a passos largos para a barbárie e o paganismo mais absolutos, quantas reivindicações não há, a serem feitas em favor da Igreja, quantas bandeiras de ideais católicos a serem desfraldadas, quantas injustiças a serem reparadas, por um verdadeiro partido cristão? E quantas não ficaram esquecidas no convenio pedecista do Chile?
Enumeremos algumas a título exemplificativo:
1. A civilização ocidental está ameaçada por dois perigos apocalípticos: a barbárie comunista e a destruição total. Essas duas ameaças procedem de um único país: a Rússia. Não há partido político, cristão ou não, que não tenha a obrigação de se declarar corajosamente anti-soviético. Um silêncio benevolente a respeito, ou distinções bizantinas entre ateísmo comunista e legislação social russa são posições falsas que acabam por beneficiar o comunismo mais ainda do que o fazem os próprios partidos esquerdistas.
2. Grande parte dos problemas políticos, econômicos e sociais que afligem o mundo ocidental seriam prontamente resolvidos se fosse debelada a crise moral e religiosa que há séculos vem minando os países católicos. Separar, portanto, como o desejam certos líderes democratas-cristãos, política de Religião, é abandonar o único meio de sanar inúmeros pontos de infecção aparentemente incuráveis.
Silenciar sobre a crise religiosa e moral que se estendeu por todo o mundo e nada fazer para a resolver, considerar as questões sociais como meras consequências de injustiças econômicas, pretender afastar a ameaça comunista sem denunciá-la alto e bom som, são atitudes negativas de consequências gravíssimas e que desmoralizariam qualquer partido político perante um público clarividente e observador. Quanto mais, um partido que se professa cristão?
* * *
Comprometemo-nos, no último número, a concluir na nota de hoje, os comentários concernentes à reunião dos vários PDC no Chile. E não queremos iniciar o ano faltando a uma promessa. Assim, ficam aqui consignadas as presentes reflexões.
Entretanto, não nos furtamos à tentação de dizer uma palavra, por mais rápida que seja, sobre a recente alocução de Natal do Santo Padre.
Não sabemos de um discurso de personalidade internacional que, nas últimas décadas, haja alcançado tamanha repercussão. E isto apesar dos esforços envidados por uma propaganda às vezes dotada de recursos ilimitados.
Chamamos a atenção de nossos leitores sobretudo para a magistral distinção que faz Sua Santidade entre um pacifismo baseado exclusivamente no desarmamento, e a verdadeira paz, que se assegura pela harmonia de pontos de vista, pelo respeito mútuo e pela proibição de armas de excessivo poder destruidor.
OS CATÓLICOS FRANCESES DO SÉCULO XIX
SURGE A CORRENTE OPORTUNISTA
Fernando Furquim de Almeida
O ultramontanismo estava praticamente vitorioso na França quando Pio IX publicou a bula "Aeterni Patris", convocando o Concílio do Vaticano. O movimento católico, que recebera um impulso vigoroso com o apostolado dos primeiros ultramontanos do século XIX, progredira e se mantivera sempre ortodoxo, apesar das tentativas de alguns de seus líderes de desviá-lo da pureza de seus princípios. Nas vésperas do Concílio, era uma força poderosa, absolutamente fiel à Santa Sé, combatendo enérgica e intransigentemente por todos os interesses da Igreja.
As velhas heresias, completamente derrotadas, não tinham mais nenhuma repercussão. Seus últimos adeptos se tinham refugiado nas fileiras do chamado catolicismo liberal, único reduto onde viam ainda possibilidades de êxito para a propaganda de suas idéias. Transformado assim num aglomerado de todos os adversários da ortodoxia, o catolicismo liberal perdera o contato com a massa dos fiéis. Formava uma minoria, que só se mantinha de pé graças ao prestígio pessoal de seus chefes e ao apoio dos políticos liberais da época, que, aliás, nunca lhe faltou.
Generais sem exército, conscientes de seus erros, os católicos liberais só podiam a essa altura adotar a linha de conduta preconizada por Mons. Dupanloup: evitar completamente as discussões, para que a ausência de polêmicas sobre as questões mais candentes fosse um argumento contra a necessidade de definições da Autoridade Eclesiástica.
Como vimos, Montalembert não conseguia entender a prudência de seus amigos. Aproveitando a revolução que destronara a Rainha Isabel II da Espanha, escreveu para o "Correspondant" um artigo violentamente liberal, que a redação unanimemente recusou. As razões da recusa são resumidas pelo Pe. Lecannet na sua biografia de Montalembert: "Ressuscitar neste momento as doutrinas do Congresso de Malines seria uma soberana imprudência. Quereis provocar uma nova Encíclica, que desta vez não poupara nossas pessoas? Quereis a excomunhão definitiva da liberdade e a condenação do ‘Correspondant’, que reerguestes em 1855? Quereis terminar vossa gloriosa carreira no Index?"
Montalembert não se convenceu. Rompeu com seus amigos, exigindo ainda por cima que sua atitude fosse tornada pública. Sem demora, o Conde de Falloux escreveu-lhe para implorar que, pelo menos, mantivesse intra-muros o rompimento: "Não insistais, caro amigo — suplico-vos de mãos postas — em que eu oficialize uma separação contra a qual protesto mais do que ninguém, contra a qual se revolta todo o meu coração, toda a minha fidelidade de trinta anos, e tudo o que pode restar ainda de ação comum, de serviços comuns num futuro que a Providência parece, mais do que nunca, não nos impedir de esperar". A doença que consumia Montalembert evitou mais esse rude golpe no catolicismo liberal. O estado de saúde do velho chefe se agravou, a ponto de impossibilitá-lo de insistir no rompimento.
O artigo em que a "Civiltà Cattolica" anunciava que a infalibilidade e o "Syllabus" seriam tratados no Concílio tornou completamente impraticável a orientação dada por Mons. Dupanloup, pois os ultramontanos o acolheram com um júbilo que obrigava os liberais a tomar posição. De início, Mons. Dupanloup se limitou a publicar anonimamente uma série de artigos no jornal "Le Français", de que se tornara proprietário. Mas logo a polêmica se generalizou, e os liberais se viram forçados a quebrar o seu silêncio e sair a campo. Resolveram então publicar um artigo-manifesto no "Correspondant", e para esse fim se reuniram em Orléans. Ninguém mais qualificado do que o Conde de Falloux para nos revelar o que se passou nesse conciliábulo. Assim se exprime ele nas "Mémoires d’un royaliste":
"O Sr. Montalembert fora, nesse momento, atingido pelos mais cruéis sofrimentos. Pedimos então a hospitalidade do Bispo de Orléans, e nos reunimos com ele: o Sr. de Broglie, O Sr. Cochin, o Sr. Monsell e eu. Um prelado espanhol chegou por acaso, ao mesmo tempo que nós. Não falava bastante bem a nossa língua para poder tomar parte nos trabalhos, mas sentia pela Espanha uma inquietação ao menos igual à de Mons. Dupanloup pela França. O Sr. Monsell, depois Lord Emly, católico tão zeloso quanto erudito, tinha as mesmas apreensões em relação à Inglaterra. O Bispo de Orléans nos mostrou uma curiosa e instrutiva correspondência que lhe vinha de membros importantes do clero ou de eminentes leigos, dos dois mundos. Essas cartas demonstravam superabundantemente que nosso ponto de vista não era isolado nem temerário.
"Ao mesmo tempo, Pio IX anunciava uma grave inovação: a de não chamar os embaixadores das potências católicas ao seio do Concílio. A sociedade política e a sociedade civil não teriam, portanto, os representantes oficiais que tinham tido até então na maior parte das assembléias conciliares. Era difícil, entretanto, que essa dupla sociedade, esse duplo interesse, não tivesse também suas testemunhas no século XIX. Foi a esse título que o ‘Correspondant’ acreditou poder ser ouvido como qualquer outro. Não acreditou ter outro direito, não reclamou outro papel, não teve nenhuma vontade de ultrapassá-lo.
"Cada um dos colaboradores presentes em Orléans trouxe a sua parte para o conjunto das idéias que deviam compor o artigo, cuja redação definitiva correspondeu em todos os pontos às nossas intenções".
"O assunto que escolhêramos, por outro lado, não era agressivo para com o ultramontanismo em geral nem para com a questão da infalibilidade em particular. Com toda a sinceridade de nosso coração, não podíamos estar nem estávamos preocupados senão com a oportunidade. Não somente não combatíamos o ultramontanismo, mas dizíamos expressamente: ‘Todo mundo hoje é ultramontano’. E esse ponto de partida era um dos nossos argumentos. Acrescentávamos: Por que perturbar, por que comprometer um movimento ao qual ninguém se recusa neste momento? Quereis ressuscitar gratuitamente muitas desconfianças, fornecer pretextos, favorecer hostilidades fora do Catolicismo, sem conquistar outra coisa além do que já possuís há mais de meio século?"
Essa orientação do "Correspondant" foi adotada pelos católicos liberais e pela grande maioria de seus aliados. Eles não discutirão mais a tese. Aceitam-na, mas acham inoportuna a sua definição. Mons. Dupanloup, exímio nas distinções desse tipo, se impõe. E seria desde então um dos líderes da corrente que Veuillot passou a chamar de oportunista, nome depois consagrado pelos contemporâneos do Concílio e pela História.
NOVA ET VETERA
"O LIBERALISMO E SEUS MALES"
J. de Azeredo Santos
Durante a última grande guerra, no aceso da luta travada entre as potencias do eixo totalitário e as chamadas democracias ocidentais, houve no Brasil uma polêmica suscitada pelas idéias de determinado pensador católico. A questão girou sobretudo em torno do fato de estar eivado de liberalismo o pensamento do referido filósofo no campo social e político.
Acudiram seus defensores dizendo, entre outras coisas, que o liberalismo era erro ultrapassado e que as baterias católicas deviam ser dirigidas, nos tempos atuais, não contra os que pecam por excesso de liberdade, mas contra aqueles que procuram sufocar completamente essa mesma liberdade. Estávamos na época de Hitler e de Mussolini, e não na de Thiers e de Covour.
Há duas considerações a fazer diante de semelhante argumentação. A primeira é que o liberalismo se acha na essência do totalitarismo hodierno, não só enquanto este nega a lei natural, os preceitos evangélicos e os direitos de Deus e da Igreja, mas também enquanto usa processos demagógicos de propaganda igualitária exaltando o mito da soberania popular. O plebiscito foi sempre a arma predileta dos ditadores, não apenas no passado, mas sobretudo nos tempos que correm, de Hitler a Perón. E usado para cohonestar o poder discricionário desses ditadores, que mais eloquente exemplo podemos ter da falsidade do princípio da soberania popular exercido através do sufrágio universal e direto?
CATÓLICOS LIBERAIS E PROGRESSISTAS
Em segundo lugar, além dessa contribuição direta do erro liberal aos atentados contra as legítimas liberdades dos filhos de Deus, temos a contribuição indireta, que vem a ser o concurso prestado à causa do totalitarismo da esquerda e da direita em nossos dias pelos católicos contaminados pela peste do liberalismo.
Que é o "católico progressista" da era do radar senão a nova edição, em linhas aerodinâmicas e com óculos "rayban", do velho e já muito gasto "católico liberal"?
O problema do liberalismo continua, portanto, na ordem do dia e cada vez mais atual. E o simples fato de não se falar nele com a frequência que seria de se desejar dada sua capital importância, é um desolador sinal dos avanços da mentalidade criada nos ambientes católicos por esse perniciosíssimo erro. Passou o liberalismo a ser um hábito, uma atitude constante diante da vida, e se acha tão visceralmente arraigado em certos espíritos, que suas vítimas se mostrarão surpresas se apontarmos a incoerência de seus princípios práticos com a verdade católica que professam.
E é à vista da atualidade cada vez mais flagrante da refutação do erro liberal, que acolhemos com júbilo a conferencia proferida pelo pensador profundo e orador ilustre que é S. Excia. Revma. o Snr. D. José Mauricio da Rocha, ao se dirigir aos jovens da "Liga Universitária" de sua sede episcopal, a cidade de Bragança, sobre o tema: "O liberalismo e seus males".
A ORIGEM MODERNA DE NOSSOS MALES
Aponta S. Excia. Revma. a origem da derrocada de nossos dias nessa rebeldia liberal iniciada pelo iluminismo filosófico no século XVIII, e que teve na Revolução Francesa uma de suas mais importantes etapas, com a implantação de uma fraternidade universal que não tem a Deus por Pai, e que provocou de Metternich o seguinte comentário: "Cheguei a esta conclusão: reinando a fraternidade que se usa em Paris, se eu tivesse irmãos, tratá-los-ia de primos".
Traça o eminente Prelado o retrato dos erros do liberalismo. Desses mesmos erros que se acham na essência do despotismo exercido sobre a sociedade contemporânea não somente pelos governos declaradamente totalitários, mas também por aqueles regidos pelo absolutismo de assembléias que representam, segundo a mística liberal, a vontade do povo expressa pela maioria dos sufrágios, sem atenção para os direitos de Deus e da sociedade humana.
Denuncia S. Excia. Revma. a incoerência da atitude liberal em face dos males que nos afligem, e que todos reconhecem existir, mas diante dos quais a coletividade fica sem armas e impotente, em decorrência do falso conceito da liberdade para o mal, gerado nas entranhas do liberalismo.
DIREITOS DO HOMEM E DIREITOS DE DEUS
Desce o Bispo de Bragança a pormenores da ação prática desenvolvida pelos sectários da conspiração liberal-totalitária para ruína dos Estados e, se isto fosse possível, da própria Igreja.
Para o caso particular do Brasil, mostra S. Excia. Revma. como até recentemente ainda nos abrigávamos sob os escombros, dos restos do edifício social e político erguido pelo governo imperial que, embora já minado pelos sectários do liberalismo, ainda guardava muito da integridade herdada da formação católica de nossa pátria. Destruída essa linhagem de homens educados dentro dos princípios que fizeram a grandeza da Cristandade, agora, "sob o governo dos crescidos ou nascidos à sombra da República, é o que se está vendo".
Eis, portanto, feito por mão de mestre o diagnóstico de nossos males. O erro já é velho e conhecido, e eterna e conhecida é a Verdade que nos há de salvar. No meio das ondas encapeladas que fustigam e ameaçam submergir a sociedade contemporânea, apelemos para Aquele que impera sobre os ventos e sobre as tempestades. E repitamos com o ilustre Prelado de Bragança: "Não há outro caminho a seguir, para evitar o naufrágio do Brasil, em face das agitações de toda a ordem que o sacodem, como frágil batel, senão o de substituir a democracia dos direitos do homem pela democracia dos direitos de Deus".
É uma lição que vem em momento oportuno, e que por sua forma, tanto como por seu fundo, merece repercutir em todas as almas verdadeiramente brasileiras e católicas.