A Revolução Francesa", diz-se correntemente. Mas talvez fosse mais consentâneo com a realidade histórica falar de "Revoluções Francesas". Pois aquela grande convulsão consistiu em vários movimentos igualitários, distintos uns dos outros, e que se sucederam à maneira de vagalhões cada vez mais destruidores. O maior de todos, em que a Revolução se manifestou em toda a sua hediondez, foi o Terror. Era de sangue, de ateísmo e de devassidão, de que nos dão idéia as gravuras da época. Nosso clichê apresenta um Comitê Revolucionário em função: ambiente de baixa taverna, em que tinham livre curso as mais vis paixões (Fragonard fils).
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AS ONDAS SUCESSIVAS DA REVOLUÇÃ0 IGUALITÁRIA
Cunha Alvarenga
Diante do problema das formas de governo, não nos deixemos guiar exclusivamente por considerações doutrinárias. É sabido com efeito, que, "salva a justiça, não está proibido aos povos adotar o governo que corresponda melhor a seu caráter ou às instituições e costumes que receberam de seus antepassados". (Leão XIII na Encíclica "Diuturnum illud"). Além deste importantíssimo aspecto teórico da questão, seria inconsciente cegueira desconhecer seu lado prático e político, que é aliás o que realmente domina o mundo contemporâneo: estamos diante da revolução gnóstico-maçônica que pretende instaurar no mundo não somente uma "nova ordem" igualitária no campo político, social e econômico, mas também e sobretudo um "grande movimento de apostasia organizada, em todos os países, para o estabelecimento de uma Igreja universal que não terá nem dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões, e que, sob pretexto de liberdade e de dignidade humana, restauraria no mundo, se pudesse triunfar, o reino legal da fraude e da violência, e a opressão dos fracos, daqueles que sofrem e que trabalham" (São Pio X na Carta apostólica "Notre charge apostolique").
Desenvolve-se a trama
Age essa revolução igualitária por ondas sucessivas. Abertamente ateia e anti-religiosa em sua fase de ação direta durante o Terror implantado em França a partir de 1793, seu domínio despótico haveria de se propagar através de conspirações e golpes de força, para outras partes do mundo. Sob o influxo demagógico do "dogma" da soberania do povo exercida através do sufrágio universal, implantam-se gradualmente caudilhismo e o arrivismo na vida política e civil dos povos. Isso provoca a instabilidade das instituições e a ditadura dos grupos políticos e econômicos, reunidos pelos agentes da revolução em assembléias que passam a legislar de modo tirânico, e a criar um "direito novo" que atenta contra a ordem social e política vigente nos países cristãos, indo até mesmo contra o próprio direito natural.
"Trabalhou-se longo tempo com o fim de que os que mandam caíssem no desprezo e ódio das multidões, e ao irromper das chamas da inveja assim fomentada, muitas vezes em curto espaço de tempo a vida dos príncipes foi ameaçada até de morte, quer por ocultas insidias, quer por declarados desígnios homicidas", - escreveu Leão XIII na Encíclica "Diuturnum illud".
Nesse mesmo documento aponta o Pontífice da Ação Social a origem dessa revolução igualitária na trama gnóstico-protestante de Lutero: "Daquela heresia nasceram no século passado o filosofismo, o chamado direito novo e a soberania popular, e aquela desenfreada licença que muitos tomam por liberdade. De tudo isso vieram essas calamidades que são o comunismo, o socialismo e o niilismo, horrendas deformações da sociedade civil".
Mas além dessa ação nitidamente anti-religiosa, desde a promulgação dos chamados "Direitos do Homem" os slogans revolucionários vão abrindo caminho em certos ambientes católicos. Em coexistência com o liberalismo e com o socialismo declaradamente maçônicos e ateus, desenvolve-se o liberalismo católico e o socialismo que se proclamam religioso ou, como blasfematoriamente já se disse "nascido da essência dos Evangelhos".
Assim é que ao raiar do século XX era tal a confusão criada dentro dos meios católicos por esses veiculadores do contrabando da democracia maçônico-igualitária, que Leão XIII escreveu em 1901 sua Encíclica "Graves de communi" para definir em que sentido era aceitável e em que sentido era condenável a democracia. Foi esse pronunciamento de Leão XIII, consagrando a expressão democracia cristã, que levou alguns sectários liberais-democratas a imaginar que haviam vencido importante etapa na luta contra a Igreja, exclamando em seu entusiasmo: "Fizemos o Pontífice tragar a palavra, - dentro em breve tragará a coisa".
Nessa Encíclica Leão XIII mostra como se pode aceitar a denominação de "democracia cristã" para a ação desenvolvida pelos católicos no campo social, desde que se tenha o cuidado de distingui-la da "democracia social" ou socialista, propugnada pelos sectários.
Em resumo, em que consiste essa "democracia social"? "A democracia social, diz Leão XIII, em muitos chega a tal grau de malícia, que nada admite fora do natural, busca exclusivamente os bens corpóreos e externos, pondo a felicidade humana em sua aquisição e gozo. Daí seu desejo de que a autoridade resida na plebe, para que, suprimidas as classes sociais e nivelados os cidadãos, se estabeleça a igualdade de bens; como consequência se aboliria o direito de propriedade e a fortuna dos particulares, assim como os meios de vida passariam a ser comuns" (Encíclica "Graves de communi").
Em que consiste a democracia cristã
Quais, em contraposição, as principais características da democracia cristã? - "Pelo contrário, a democracia cristã, pelo próprio fato de receber esse nome, deve estar fundamentada nos princípios da fé divina, atendendo de tal sorte ao interesse das classes inferiores que procure sempre seu aperfeiçoamento moral, ordenando-as aos bens eternos para os quais foram feitas. Nada, pois, para ela tão santo como a justiça, o direito de adquirir e de possuir deve desejá-lo íntegro, e defender as diversas classes, membros necessários de uma sociedade bem constituída; exige, em uma palavra, que o consórcio humano assuma aquela forma e aquele caráter que lhe deu o próprio Deus, seu autor. De onde claramente se infere que nada há de comum entre a democracia social e a cristã, as quais diferem entre si como a seita do socialismo difere da profissão do Cristianismo" (Encíclica cit.).
Na medida em que a democracia se identifica com este conceito, e a tal título se insere no bem comum de todo o corpo social, e decorre da lei natural, bem como da lição dos Evangelhos, está ela presente em todos os regimes políticos que a Igreja declara aceitáveis, e não é, portanto, monopólio do sistema republicano, em que os mandatários do poder são escolhidos pelo sufrágio popular. Para evitar as manobras dos sectários do democratismo liberal e socialista, que não admitem outra forma política a não ser a democrático-republicana, Leão XIII acentuou não se poder incluir nenhuma nota política no conceito de democracia cristã: "Não seja, pois, lícito dar um sentido político à democracia cristã, pois se bem que a palavra democracia, segundo sua etimologia e o uso dos filósofos, sirva para indicar uma forma de governo popular, não obstante, nas presentes circunstancias deve entender-se de modo que, excluído todo conceito político, unicamente signifique a própria benéfica ação cristã em favor do povo. Porque os preceitos da natureza e do Evangelho, enquanto transcendem de direito próprio os fatos humanos, não podem depender de nenhuma forma de governo civil, mas devem poder harmonizar-se com todas elas, contanto que não repugnem à honestidade e à justiça" (Encíclica cit.).
Mesmo porque a democracia cristã, segundo Leão XIII, não deve ser exclusivamente popular, isto é, "atender de tal modo às classes humildes, que pareçam preteridas as superiores, as quais não menos contribuem para a conservação e aperfeiçoamento da sociedade" (ibid.).
Fase socialista do democratismo
Como vemos, nessa fase, distante mais de meio século, da história política dos tempos modernos, já a democracia liberal cedia lugar à democracia socialista. Não que esta não tivesse estado sempre implícita naquela, mas porque a revolução fazia marchar com maior desenvoltura seus planos de subversão social. A fase econômica, ou marxista, já surgia no horizonte, e começava a germinar a distinção especiosa do comunismo ou do socialismo enquanto mero sistema econômico e enquanto filosofia de vida. Eis porque esclarecia a "Graves de communi": "Na opinião de alguns a chamada questão social é somente econômica, quando pelo contrário é certíssimo que é principalmente moral e religiosa, e por isto há de resolver-se em conformidade com as leis da moral e da Religião".
Apesar de advertências tão claras, continuou a achar guarida entre certos elementos católicos esse falso conceito de democracia. Da posição de cortejados pelos mentores desse democratismo, ponderáveis setores do movimento católico passaram gradualmente a cortejadores, vítimas de uma campanha organizada cujo lema era: não separar-se da Igreja, mas apoderar-se dela. Como exemplo típico, temos "Le Sillon", cujas tramas, cujos pendores igualitários e socializantes, cuja adesão aos planos de uma ciclópica república universal de fundo gnóstico são denunciados com toda a clareza e condenados com toda a energia por São Pio X, na carta apostólica "Notre charge apostolique", dirigida ao Episcopado francês. Carta essa, digamos de passagem, que consciente ou inconscientemente é omitida em várias compilações modernas de documentos pontifícios sobre assuntos sociais e políticos: lacuna de se lastimar, dado o fato de São Pio X apontar o democratismo como movimento elaborado em "antros sombrios" para destruição da civilização católica.
O problema da democracia em nossos dias
Da descrição que São Pio X fez na Encíclica "Pascendi" do erro modernista, ressalta com toda o clareza como o modernismo dogmático se acha entrelaçado com o modernismo moral, jurídico e social. E essa "reunião de todas as heresias" continuou depois a semear a cizânia nos meios católicos. Assim que é que Pio XI, em 1922, lamentava: "Quantos há que professam seguir os princípios católicos em tudo o que se refere à autoridade na sociedade civil e ao respeito em que deve ser tida, ou ao direito de propriedade e aos direitos e deveres dos operários industriais e agrícolas, ou às relações dos Estados entre si, ou entre patrões e operários, ou às relações da Igreja com o Estado, ou aos direitos da Santa Sé e do Romano Pontífice e aos privilégios dos Bispos, ou, finalmente, aos próprios direitos de Nosso Criador, Redentor e Senhor Jesus Cristo sobre os homens em particular e sobre os povos todos? E sem embargo, esses mesmos, no que dizem, no que escrevem, e em toda sua maneira de proceder tomam atitude como se os ensinamentos e preceitos promulgados tantas vezes pelos Sumos Pontífices especialmente por Leão XIII, Pio X e Bento XV, houvessem perdido sua força primitiva e caído em desuso.
"No que é preciso reconhecer uma espécie de modernismo moral, jurídico e social, que reprovamos com toda a energia do mesmo modo que aquele modernismo dogmático" (Encíclica "Ubi arcano Dei").
Pio XII, em suas luminosas alocuções, sobretudo a rádio-mensagem do Natal de 1944, veio insistir sobre as características da verdadeira democracia no conturbado mundo de hoje. E, fazendo-o, não se refere à forma de governo, pois que "o cuidado e solicitude da Igreja se volta não tanto para a sua estrutura e organização externa das nações - as quais dependem, das aspirações próprias de cada povo - quanto para o homem como tal, que, longe de ser o objeto e um elemento passivo da vida social, dela é, pelo contrario e deve ser e permanecer, o sujeito, o fundamento e o fim" (rádio-mensagem cit.). Toma o Papa como premissa "que a democracia, compreendida em sentido largo, admite várias fôrmas e pôde atuar tanto em monarquias como nas republicas" (ibid.).
É nessa rádio-mensagem do Natal de 1944 que Pio XII dá a famosa distinção entre povo e massa, que, por si só, bastaria para imortalizá-lo no campo da sociologia. O verdadeiro povo, consciente, livre no exercício de seus direitos e deveres, com dinamismo próprio, característica imprescindível de todas as organizações, políticas aceitáveis. As desigualdades de cultura, de haveres, de posição social - sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da mutua caridade - não constituem obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e de fraternidade. Uma verdadeira e sã democracia não admite o absolutismo e a infalibilidade do poder legislativo e o desrespeito, por este, das leis naturais e da verdade revelada.
Será à luz desses ensinamentos pontifícios sobre o problema da democracia, que iremos oportunamente abordar certos desvios doutrinários e certa atuação prática de pendores acentuadamente socialistas, dos adeptos de uma mal compreendida democracia cristã.
VERDADES ESQUECIDAS
O GLADIO DO ESTADO DEVE ESTAR A SERVIÇO DA ORTODOXIA
Do terceiro canon do IV Concilio Ecumênico de Latrão, sec. XIII:
EXCOMUNGAMOS e anatematizamos toda heresia que se levanta contra essa Fé santa, ortodoxa e católica, que vimos de expor, condenando todos os hereges, qualquer que seja o nome que usem, - porque, se suas faces são diversas, eles se ligam todos pela cauda. Sendo condenados, serão relaxados às potencias seculares para receber a punição conveniente, devendo os Clérigos ser previamente degradados. Os bens dos leigos serão confiscados, e os dos Clérigos aplicados às igrejas de que recebiam suas retribuições. Os que forem somente suspeitos de heresia, se não se justificarem por uma purgação conveniente, serão excomungados; e se permanecerem por um ano nesse estado, serão condenados como hereges. Os poderes seculares serão notificados, e, se necessário, coagidos por censuras, a jurar publicamente que expulsarão de suas terras todos os hereges apontados pela Igreja. Se o senhor temporal, sendo admoestado, negligenciar de purgar destes últimos a sua terra, será excomungado pelo Metropolita e seus co-provinciais; e, se não satisfizer dentro de um ano, avisar-se-á o Soberano Pontífice, para que este dispense seus vassalos do juramento de fidelidade e exponha sua terra à conquista dos católicos, para a possuírem pacificamente depois de terem dela expulsado os hereges, e conservarem-na na pureza da fé, - salvo o direito do senhor principal, contanto que este não crie nenhum obstáculo à execução deste decreto. Observar-se-á a mesma lei quanto àqueles que não têm senhor principal. Os católicos que se cruzarem para exterminar os hereges gozarão da mesma indulgencia que aqueles que vão à Terra Santa. (apud Rohrbacher, "Histoire Universelle de l'Eglise Catholique", ed. 1885, tomo VII, 1. LXXI, pag. 385).