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(continuação)

PONTÍFICE IMORTAL

Espírito universal e muito amigos dos pequenos, Pio XII é muito romano e muito amigo da nobreza romana

quadros clássicos da aristocracia. E assim toda uma nova ordem de coisas nascia ao lado da antiga, que ainda vivia. Tudo isto diminuía a importância social da nobreza.

Por fim, a isto tudo se somava em detrimento dessa classe um elemento ideológico que cumpre pôr em primeira plana na ordem da importância. A adoração do progresso técnico e da igualdade, fruto da Revolução, criava um clima de ódio, de prevenção, de difamação e sarcasmo contra a nobreza apegada à tradição, e fundada na forma de desigualdade que a demagogia mais odeia: a do sangue e do berço.

Claro está que a segunda guerra mundial, com as novas e mais amplas derrocadas econômicas que acarretou para muitas famílias nobres, e, na Itália, a abolição dos títulos de nobreza, levaram ao paroxismo a gravidade de todos estes problemas. Estava definida em grau agudo a crise de uma grande classe social.

PIO XII E A NOBREZA ROMANA

Esta situação, particularmente no que diz respeito à nobreza romana, Pio XII a conhece em todas as suas minúcias.

Com efeito, ele pertence a uma família decorada com altos títulos nobiliárquicos, e cuja esfera de relações é naturalmente a melhor nobreza. Seu irmão tem o título de Príncipe Pacelli. No Papa há um imponderável que faz pensar em nobreza: seu alto porte esguio, seu modo de andar, seus gestos, suas mãos. Este Pontífice tão universal e tão amigo dos pequenos, é muito romano e muito amigo da aristocracia romana. “No Patriciado e na Nobreza Romana revemos e amamos uma falange de filhos e filhas, cuja ufania está na adesão e fidelidade à Igreja e ao Romano Pontífice, cujo amor ao Vigário de Jesus Cristo nasce da profunda raiz da fé e não diminui com o curso dos anos e das vicissitudes que variam com os tempos e com os homens. Em vosso meio, Nós Nos sentimos mais romano pelo costume da vida, pelo ar já respirado, e que continuamos a respirar, pelo mesmo céu e pelo mesmo sol, pelas mesmas margens do Tibre, sobre as quais pousou nosso berço, por aquele solo que é sagrado até mesmo no mais recôndito de suas entranhas, onde Roma haure para seus filhos os auspícios de uma eternidade que se eleva até o Céu” (alocução ao Patriciado e à Nobreza Romana, “Osservatore Romano”, de 7-8 de janeiro de 1941).

Ora, se a Igreja se interessa pela questão social, não é porque ame só o operariado. Ela não é um “Labour Party” fundado para proteger uma só classe. Ela ama acima de tudo a justiça e a caridade, e as quer fazer reinar entre os homens. E por isto ama todas as classes sociais... inclusive a tão odiada nobreza. Di-lo Pio XII, a propósito da aristocracia romana:

“É fato que Cristo Nosso Senhor quis, para conforto dos pobres, vir ao mundo desprovido de tudo, e crescer numa família de simples operários, mas é igualmente verdadeiro que Ele quis com seu nascimento honrar a mais nobre e ilustre das casas de Israel, a própria estirpe de David.

“Por isto, fiéis ao espírito d’Aquele do qual são Vigários, os Sumos Pontífices sempre quiseram ter em alta consideração o Patriciado e a Nobreza Romana, cujos sentimentos de inalterável adesão a esta Sé Apostólica são a parte mais preciosa da hereditariedade recebida de seus antepassados, e que eles mesmos transmitirão a seus filhos” (alocução cit.).

E assim era natural que Pio XII procurasse uma solução para este doloroso desajustamento social.

Esta solução ele a enunciou em doze alocuções magistrais à Nobreza e ao Patriciado Romanos, pronunciadas respectivamente nas audiências de felicitações pelo Ano Novo que o Soberano Pontífice lhes concedeu nos anos de 1941 a 1952. Os tópicos que publicaremos são traduzidos do original italiano estampado no “Osservatore Romano”.

Destas alocuções, a de 1952 constitui como que um resumo que compendia tudo quanto o Pontífice disse nas anteriores. De sorte que estas são o desenvolvimento e comentário daquela.

INTERESSE UNIVERSAL

Assim enunciado o assunto, parecerá talvez à primeira vista, que ele interessa apenas à Itália. Na realidade, porém, esta crise especificamente italiana existe, mutatis mutandis, em todos os países que tiveram um passado monárquico e feudal, ou que vivem presentemente em regime monárquico numa situação análoga à que a Itália tinha até a queda dos Sabóias.

Mais ainda. Mesmo nos Estados de passado não monárquico, pela própria ordem natural das coisas constituíram-se aristocracias de fato, se não de direito (cfr. alocução à Nobreza Romana de 1947, “Osservatore Romano” de 8 de janeiro). Ora, também nesses países, a onda de igualitarismo demagógico nascido da Revolução e levado ao auge pelo comunismo cria um ambiente de irritação e incompreensão em relação às elites tradicionais. Também nesses países, as elites tradicionais, baseadas na agricultura, vão sendo eclipsadas pelas novas camadas sociais nascidas da técnica, do industrialismo, e da finança. E também nesses países se delineia uma situação bastante análoga à da Itália.

Essas alocuções do Santo Padre Pio XII têm, pois, um interesse universal, pela sua conexão indireta com o problema das elites em todo o mundo. Esse interesse universal é acrescido pelo fato de que, analisando a situação como ela se apresenta na Itália, o Papa subiu a altas considerações de porte doutrinário, e portanto úteis para a formação de todos os fiéis. A maior parte de seus conceitos sobre a nobreza se aplica não só à Itália, mas às elites tradicionais de todas as nações.

E, assim, estamos certos de contribuir para a formação do público brasileiro divulgando aqui estes comentários, e os luminosos textos do Soberano Pontífice.

O APOSTOLADO ESPECIALIZADO E OS ERROS DAS ELITES

Escolhemos estes documentos de especial interesse para as elites sociais e culturais, neste artigo comemorativo, porque CATOLICISMO é, por seu nível cultural, um jornal de elite. E em virtude do princípio de especialização de apostolado tão inculcado pela Ação Católica e pelas Congregações Marianas, convém a cada classe falar principalmente sobre seus direitos e deveres. O que é na Europa a nobreza, o são no Brasil o “paulista de 400 anos”, e seus congêneres de todos os Estados. É indispensável que esta classe conheça sua missão no Brasil contemporâneo. E é igualmente importante que os numerosos homens de pensamento que nos lêem, se inteirem do ensinamento do Santo Padre Pio XII sobre o papel da tradição e das elites nos dias de hoje.

Bem sabemos que nos textos que publicaremos, a clarividência de Pio XII pôs, ao lado de princípios e diretrizes altamente confortadoras para os amigos da tradição, também muitas verdades amargas sobre as defecções de algumas elites, seu desejo de gozo, e de um gozo muitas vezes imoral, sua falta de senso das obrigações sociais. Fê-lo com cortesia, menos nas linhas do que nas entrelinhas. Mostrou cuidadosamente que não se poderia generalizar para toda a nobreza o que é defeito apenas de certos nobres. Mas enfim a advertência ficou, a causticar muita preguiça, muita sensualidade, muito egoísmo, muita superficialidade de espírito.

Damos à publicidade estas severas advertências, com muita alegria. Pois as julgamos merecidas também para certos elementos das elites tradicionais do Brasil. E sabemos que toda verdade saída dos lábios do Soberano Pontífice só pode fazer bem, ainda que seja amarga.

As elites tradicionais têm menos do que quaisquer outras..., o direito de se dissolver numa vida de prazeres, de desaparecer na massa confundindo-se com esta, esquecidas de sua missão e de sua tradição, ou de viver fechadas como em um casulo, em sua vida particular, digna mas obscura e vazia.

O mal começou por elas, lembra Pio XII, e delas deverá vir o remédio (alocução de 1943, “Osservatore Romano” de 11-12 de janeiro).

Valha esta publicação como um vigoroso apelo a que, num ambiente de compreensão e estima geral, elas se entreguem abnegada e corajosamente ao cumprimento da alta missão que continuam a ter.

A MISSÃO HODIERNA DAS ELITES TRADICIONAIS

Não se procure nesses tópicos do Santo Padre uma tomada de posição política.

Como é sabido, S. Tomás de Aquino considera que em tese a monarquia é a forma de governo melhor e digna de estima maior. Mas é possível que, por motivos históricos ou outros, convenha a algum país organizar-se sob a forma de república aristocrática como outrora Veneza, ou república plebéia como foram certas cidades livres do Sacro Império Romano Alemão, da Suíça ou da Itália.

O Sumo Pontífice não proíbe que a nobreza italiana deseje a mudança da forma de governo. Mas seu discurso não entra de modo nenhum na apreciação de qual seja para a Itália, concretamente, a forma melhor. Ele se limita a ensinar qual o papel da nobreza numa sociedade democrática bem ordenada, e qual seu dever nas convulsões e anomalias da hora presente.

Que tal sociedade democrática bem ordenada nada tem de comum com as utopias e os erros do igualitarismo revolucionário, mostra-o luminosamente um tópico monumental do discurso de Natal de 1944, que diferencia qual seja o governo do povo, e o da massa, distinguindo nos seguintes termos os conceitos de massa e de povo: “Povo e multidão amorfa ou, como se costuma dizer, massa, são dois conceitos diversos. O povo vive e se move por vida própria; a massa é em si mesma inerte e não pode mover-se senão por um elemento extrínseco. O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais - em sua própria posição e do modo que lhe é próprio - é uma pessoa cônscia de suas próprias responsabilidades e de suas próprias convicções. A massa, pelo contrário, espera o impulso que lhe vem de fora, fácil instrumento nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e impressões, pronta a seguir, sucessivamente, hoje este, amanhã aquele estandarte. Da exuberância de vida de um verdadeiro povo a vida se difunde abundante, rica, no Estado e em todos os seus órgãos, infundindo-lhes, com vigor constantemente renovado, a consciência de sua própria responsabilidade, o verdadeiro sentido do bem comum. Da força elementar da massa, habilmente manejada e utilizada, pode talvez servir-se o Estado; nas mãos ambiciosas de um só, ou de poucos, que as tendências egoísticas talvez tenham coligado, o próprio Estado pode, com o apoio da massa reduzida a não ser mais do que uma simples máquina, impor seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo: o interesse comum recebe daí um golpe grave e durável, e a ferida se torna rapidamente muito difícil de ser curada.

“Daí se infere claramente outra conclusão: a massa - que acabamos de definir - é a inimiga capital da verdadeira democracia e de seu ideal de liberdade e de igualdade.

“Em um povo digno de tal nome, o cidadão sente em si mesmo a consciência de sua personalidade, de seus deveres, de seus direitos, de sua liberdade conjugada com o respeito à liberdade e dignidade do próximo. Em um povo digno de tal nome, todas as desigualdades, decorrentes não do arbítrio mas da própria natureza das coisas, desigualdades de cultura, de haveres, de posição social - sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da mútua caridade - não são, com efeito, um obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade. Pois elas, longe de ferir de qualquer maneira a igualdade civil, lhe conferem seu legítimo significado, que consiste em que, perante o Estado, cada qual tenha o direito de viver honradamente a própria vida pessoal, na posição e nas condições em que os desígnios e disposições da Província o colocaram.

“Em contraste com este quadro do ideal democrático de liberdade e igualdade de um povo governado por mãos honestas e previdentes, que espetáculo oferece um Estado democrático entregue ao arbítrio da massa! A liberdade, enquanto dever moral da pessoa, se transforma numa pretensão tirânica de dar livre curso aos impulsos e apetites humanos, com prejuízo do próximo. A igualdade degenera em um nivelamento mecânico, em uma uniformidade monocroma; o sentimento da verdadeira honra, a atividade pessoal, o respeito à tradição, à dignidade, em uma palavra a tudo quanto dá à vida seu valor, pouco a pouco se vai soterrando e desaparece. E sobrevivem apenas, de um lado as vítimas iludidas do fascínio aparente da democracia, ingenuamente confundido com o próprio espírito da democracia, com a liberdade e a igualdade; e de outro lado os aproveitadores mais ou menos numerosos que tenham sabido por meio da força do dinheiro ou da organização, assegurar em relação aos outros uma condição privilegiada, e o próprio poder”.

Numa tal situação, é evidente que, mesmo nos dias de hoje, há lugar para uma alta e indispensável missão das elites tradicionais.


VIRTUOSO SACERDOTE E JORNALISTA EXIMIO

CATOLICISMO registra com pesar o falecimento de um valoroso jornalista, cuja situação muito particular na imprensa católica de nosso país tinha mais de uma relação com a nossa.

Monsenhor Ascanio Brandão foi, antes de tudo, um Sacerdote profundamente identificado com sua missão. Alto, robusto, inteligente, espirituoso, não vivia senão para seu ministério, no desempenho do qual empregou a fundo seus múltiplos talentos, tendo prestado à Diocese de Taubaté e à benemérita Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição serviços tão insignes, que o Santo Padre Pio XII lhe conferiu muito merecidamente o título de Monsenhor.

Pregador agradável, vivo, fluente, sempre atual em suas considerações, Mons. Ascanio Brandão foi convidado para falar nos púlpitos mais ilustres de S. Paulo e de outros Estados, fazendo-o sempre com proveito acentuado e vivo agrado dos fiéis.

Entretanto, quer nos parecer que aquele estimado Sacerdote foi sobretudo jornalista, e que, a despeito de seus tão reais méritos em outros campos, é principalmente como jornalista que ocupará um lugar na História da Igreja no Brasil, em nosso século.

Seus artigos eram sempre curtos, e consistiam de ordinário no comentário vivaz e penetrante de algum fato da atualidade. Nada de menos acadêmico. Mons. Ascanio Brandão tinha em sua linguagem o colorido, o pitoresco, o expressivo do homem da roça. E é o que dava a nota típica de seu estilo. Mas suas análises eram sempre feitas dos píncaros de uma sólida e vigorosa doutrina, e iam ao fundo dos temas que abordava.

Verdadeiro Sacerdote ao mesmo tempo que jornalista, Mons. Ascanio Brandão não escrevia senão para servir a Igreja. E por isto sua pena jamais recuou ante lutas que a tantos outros talentos têm apavorado. No desmascarar os erros condenados pela Carta Pastoral do Exmo. Revmo. Sr. Bispo Diocesano, Mons. Ascanio Brandão foi um dos mais beneméritos pioneiros. Desde 1940 até 1956, esteve sempre na estacada, e foi com efusão de alma que comentou a Pastoral do Exmo. Snr. D. Antonio de Castro Mayer, num artigo brilhante e substancioso. que publicamos em nosso número 36, de dezembro de 1953.

Um episódio de sua vida merece particularmente ser lembrado como padrão de sua coragem. O triste "caso" do então Bispo de Maura havia atingido seu ponto culminante. O infeliz Prelado, que ainda não havia sido fulminado pelas penas canônicas que mais tarde tão merecidamente o atingiram, publicava urna revista na qual atacava a doutrina social de Leão XIII abertamente. Mons. Ascanio Brandão foi o primeiro a lhe responder desassombradamente, através do "Legionário'', de São Paulo. Levantou-se então contra ele, da parte de espíritos desavisados, um insistente murmúrio, pois que não entendiam que numa situação tão excepcional um Padre pode e deve, por fidelidade ao Papa, atacar um Bispo. Mons. Ascanio estava com a razão: quando um Bispo investe abertamente e sem vaus contra a doutrina ensinada por Roma, precisa ser refutado. Deu-lhe razão o então Núncio Apostólico, o Emmo. Cardeal Aloisi-Masella. As críticas serenaram. E Mons. Ascanio teve a gloria de ser o primeiro campeão a se levantar contra o Bispo-apóstata no Brasil.

Esta era a tempera do batalhador que já colheu por certo o premio de suas lutas.


OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX

DOELLINGER, CHEFE DOS ANTI-INFALIBILISTAS

Fernando Furquim de Almeida

O artigo-manifesto em que os líderes dos católicos liberais franceses combatiam as teses ultramontanas, sob o único pretexto de não serem elas oportunas, sugeria aos adversários da infalibilidade pontifícia a fórmula certa para se oporem à sua definição sem se chocarem frontalmente com a doutrina católica. Mons. Dupanloup, cheio de habilidade, encontrava mais uma vez o meio de conservar o liberalismo católico nas posições insustentáveis em que o colocava. A tática foi, em geral, bem compreendida pelos interessados, e a futura maioria do Concílio do Vaticano se arregimentou sob a bandeira da inoportunidade.

Mons. Dupanloup, no entanto, não conseguiu impor sua orientação a todos os católicos liberais, apesar da sua evidente conveniência. Um pequeno grupo, anti-infalibilista em tese, logo se manifestou ruidoso, principalmente na Alemanha. Não é de estranhar que isso tenha acontecido. Pelo contrário, admira que os adversários da tese infalibilista tenham aparecido em número tão reduzido, quando é certo que a infalibilidade repugna tanto aos dogmas liberais quanto aos métodos de ação que destes decorrem.

Procurando conciliar a Igreja com o mundo moderno, os católicos liberais adotam como única forma de apostolado a infiltração nas instituições vigentes e nos ambientes em que vivem, com o objetivo, dizem, de esclarecê-los, dominá-los e convertê-los ao Catolicismo. E como se esforçam por se adaptar às idéias dominantes no meio onde vão exercer esse apostolado, acontece que em cada país o liberalismo católico se apresenta com nuanças diferentes, que lhe dão uma feição própria e característica, embora seus postulados fundamentais sejam os mesmos por toda parte. Na Inglaterra, por exemplo, completamente dominada no século passado pelas universidades de Oxford e Cambridge, que modelavam a sociedade inglesa com os ideais mundanos da cultura protestante, os católicos liberais tomaram essa mentalidade, formando assim um tipo de catolicismo que o Cardeal Manning caracterizava como "aguado, patrístico e literário", e contra o qual opunha a admirável pujança de um Catolicismo todo devotado a Roma. Nem sempre, porém, se encontrava um Manning com um vigoroso movimento ultramontano que impedisse o liberalismo católico de chegar às suas últimas consequências, como acontecia sempre que nada se opunha ao seu desenvolvimento.

Realmente, defendendo posições insustentáveis, condenados pela Santa Sé, obrigados a se refugiarem na distinção entre a tese e a hipótese, os católicos liberais eram verdadeiras contradições vivas, que professavam na prática o que negavam em princípio. Ora, como a contradição nunca se impõe, a tática da infiltração, sempre perigosa, para eles foi fatal: acabaram dominados por aqueles que pretendiam converter; e para se manterem nos ambientes em que se infiltravam, viram-se forçados a diluir cada vez mais o catolicismo que apregoavam.

Essa consequência natural foi especialmente sensível na Alemanha. As universidades germânicas estavam dominadas por uma verdadeira mania científica, eminentemente erudita, guiada unicamente por um culto cego à razão. Os líderes católicos liberais, na sua grande maioria professores universitários, deixaram-se empolgar pelas ilusões de seus colegas protestantes. Desprezando os métodos tradicionais dos estudos teológicos, criaram a chamada Teologia Histórica, com a qual combatiam orgulhosamente o tomismo que então reaparecia na Itália. Pretendendo reexaminar todos os conhecimentos já adquiridos no campo das ciências sagradas, rejeitando os que não se ajustassem ao novo padrão e procurando dar fundamentos pretensamente mais sólidos aos outros, recusavam qualquer autoridade que não fosse a de seus pares e negavam à Santa Sé o direito de julgar suas opiniões.

O chefe inconteste desse movimento era Ignaz Doellinger, professor na Universidade de Munich. Antigo ultramontano, amigo de Mons. Dupanloup, com quem se correspondia assiduamente, ex-professor do líder católico liberal inglês Lord Acton, profundo conhecedor da História da Igreja, Doellinger é bem o protótipo do cientista orgulhoso e intolerante. Emile Ollivier, que o conheceu, dele deixou o seguinte retrato: "Sua face é forte e grave, seu olhar tem a limpidez fria e a penetração impassível do colecionador de idéias e fatos; e o ríctus irônico dos lábios exclui toda paixão que não seja a da ciência".

Apesar de sua amizade com Mons. Dupanloup e da identidade da causa que ambos serviram, Doellinger não aceitou a prudente orientação do Bispo de Orléans. Irritado pela recusa do Cardeal Antonelli em admiti-lo como consultor na comissão preparatória do Concílio, escreveu uma série de artigos no Algemeine Zeitung, mais tarde reunidos, sob o pseudônimo de Janus, num volume com o título de "O Papa e o Concílio". A infalibilidade era negada frontalmente, e para isso todos os argumentos históricos possíveis eram apresentados e torcidos a seu modo. A paixão levou-o até a adulteração de textos, como provou o Cardeal Hergenroether no "Anti-Janus", que escreveu para refutar os erros do professor de Munich.

Doellinger era o porta-voz dos católicos liberais alemães, que tinham todos mais ou menos as mesmas opiniões que ele. Além disso, o seu prestígio conseguiu impressionar alguns católicos liberais de outros países, mesmo na França, enfraquecendo desse modo o partido de Mons. Dupanloup. Ao lado dos oportunistas apareceu assim uma corrente anti-infalibilista. Embora aliada àqueles, causou não poucos embaraços ao jogo de distinções sutis e aos prodígios de habilidade que essa minoria foi obrigada a utilizar para tumultuar o ambiente, tanto antes quanto durante e depois do Concílio do Vaticano.

Na polêmica que precedeu o Concílio, são essas três posições sobre a infalibilidade que vão caracterizar a divisão dos católicos: infalibilistas, anti-infalibilistas e oportunistas. Os dois últimos, aliados, combatiam intransigentemente e sem a menor caridade os defensores da ortodoxia.


Liberdade e Autoridade

J. de Azeredo Santos

A pseudo contra-revolução representada por certos movimentos socialistas ditos de direita investiu contra a revolução liberal sob pretexto de restabelecer o princípio de autoridade. Entretanto, o erro próprio do liberalismo não consiste primordialmente no fato de que a autoridade é mais ou menos desprezada por seus sequazes. O erro fundamental dos liberais consiste em sustentar um conceito falso da liberdade, E é esse conceito radicalmente falso que os leva a se equivocarem de modo não menos grosseiro no que diz respeito à autoridade.

Estas verdades nos são lembradas em um precioso trabalho que nos chega às mãos, de autoria do sr. Jean Ousset sob o título de "Le couple Liberté-Autorité" e apresentado ao sexto congresso de "La Cité Catholique" reunido em Reims em julho de 1955. É "La Cité Catholique” a entidade rica em seiva doutrinaria e vitalidade de ação, sob cujos auspícios se publica, em Paris, a conhecida revista "Verbe", de que o sr. Jean Ousset é diretor.

Os leitores de CATOLICISMO terão interesse em conhecer uma síntese do estudo desse pensador francês, ainda jovem, cuja produção intelectual vai modelando e estimulando cada vez mais o magnífico movimento de reação anti-modernista na França.

DUAS ALAS LIBERAIS

Na falsa noção de liberdade difundida pela Revolução há essencialmente uma recusa de tudo o que pode, do exterior, ordenar a ação do homem, de tudo o que, de fora, tende a se impor na determinação de seu comportamento, ou pelo menos a influenciá-lo.

Segundo tal teoria, somos livres na medida em que podemos fazer o que bem entendermos. De modo que vistas as coisas deste ângulo fundamental, a diferença entre um liberal clássico, tipo senador da república velha, e o revolucionário petroleiro é apenas de ordem quantitativa, pois nenhuma distinção essencial há entre a atitude mental de um e de outro.

O liberal morigerado, de costumes mais ou menos irrepreensíveis, como ainda existem tantos em nosso meio social, afirmará sem dificuldade que a liberdade consiste essencialmente nessa movimentação caprichosa de nossa vontade, porém admitirá não somente que ela deve se deter onde começa a liberdade de outrem, mas também que a educação, as instituições, e até mesmo um certo constrangimento social não a ameaçam de modo sério.

Os libertários da ala extrema revolucionária, pelo contrário, julgarão inadmissíveis e odiosas essas pressões, essas influências, essas chamadas "convenções sociais" e, mais dentro da lógica do erro liberal, desejam para o homem a inteira liberdade dos animais, como propugnava Voltaire "Os animais têm, naturalmente, sobre nós, a vantagem da independência... Nesse estado natural de que gozam os quadrúpedes não domados, os pássaros e os repteis, o homem seria tão feliz como eles" ("Recherches sur le droit de propriété et sur le vol").

Ora, os negadores totalitários da liberdade tomam como alvo de seus ataques esse falso conceito de liberdade, aceito quer pelos liberais morigerados e inconsequentes que vão somente até aos extremos permitidos pela polícia (e sabemos como a polícia é indulgente nos dias de hoje, tanto no setor econômico, quanto no setor dos costumes), quer pelos liberais que se jactam de avançados e evoluídos por levarem a liberdade até aos extremos da animalidade.

COMBATE AO LOBO E AO CORDEIRO

E nesse combate aos excessos de liberdade, provocado pelo liberalismo, o totalitarismo moderno, abusando da palavra "liberdade", investe também, e até com redobrado furor, contra a legítima liberdade dos filhos de Deus. Na realidade, o Estado totalitário só combate os abusos da liberdade naquilo em que tais abusos vão contra seus interesses. Ora, acontece que também a liberdade legítima vai contra os interesses do Estado totalitário, de modo que, sob pretexto de combate aos abusos, o que mais frequentemente se vê é o combate encarniçado ao uso legítimo da liberdade. Mesmo porque, como já vimos em outra oportunidade, em sua essência o espírito totalitário participa do aspecto mais pernicioso do erro liberal, que é a revolta contra a Revelação e contra a lei natural, contra a liberdade da Igreja e contra a liberdade dos filhos de Deus, das quais decorrem as noções essenciais para a civilização cristã, de mérito e hierarquia.

Em que consiste, com efeito, essa liberdade legítima dos filhos de Deus? Segundo o exprime a própria linguagem da Sagrada Escritura, como a dos povos antigos, a condição livre por excelência, oposta à do escravo, é a condição filial. Como observava o Cardeal Pie, "ser filho ou ser livre é uma mesma coisa: liber. Ora, a condição de filho é também uma condição de obediência e de subordinação... Tornar-se livre, não é portanto necessariamente sair do rol dos escravos para passar para o rol dos rebeldes. Não! Mas é ser retirado do jugo do senhor para ser colocado sob o poder do pai, é ser transferido do domínio das coisas para o domínio das pessoas, é livrar-se da servidão para se agregar à família".

O dever da obediência, da humildade, é inerente à qualidade de filho. A liberdade dos filhos de Deus é, portanto, a liberdade dos que procuram fazer sua vontade na grande variedade dos atos livres que o homem pode licitamente praticar. Não se trata, portanto, de liberdade como opção entre o bem e o mal. Eis o que leva o Padre Grou a observar: "A verdadeira liberdade não consiste no poder de agir mal. Esse poder é, pelo contrário, uma falha inerente à criatura. Um tal poder é tão pouco um atributo da liberdade, que Deus, que é soberanamente livre, se acha na impossibilidade absoluta de fazer o mal. Seguir-se-ia portanto que homem seria mais livre que Deus se a liberdade consistisse em poder entregar-se ao bem ou ao mal".

FILHOS DE DEUS — ESCRAVOS DO DEMÔNIO

O pecado consiste em a criatura se afastar do Criador e de sua vontade. São Tomaz define-o como o fato de o homem se afastar de Deus para Lhe preferir a criatura. Não se acha aí a essência mais perniciosa do liberalismo?

Nossa vontade há de estar voltada para o bem, guiada pela inteligência, na escolha ordenada do que nos convém. Eis porque São Tomaz vê no juízo reto como que a medida da sabedoria, pois é ele que nos dá o sentido da hierarquia dos seres e dos bens, e portanto o sentido de Deus, que é o objeto supremo de nossa liberdade.

Termina o sr. Jean Ousset seu oportuno trabalho com a exposição do entrelaçamento que existe entre liberdade, direito, poder, competência e autoridade, elementos que harmoniosamente se completam em uma sociedade em que os filhos de Deus sejam realmente livres. Quando em vez dessa autêntica liberdade temos a contrafacção conhecida por liberalismo maçônico, do ponto de vista doutrinário e do ponto de vista histórico estamos na rampa que nos conduz ao aniquilamento da sociedade pelo totalitarismo, seja ele da esquerda ou da direita.

Nossos leitores, portanto, hão de excusar a insistência com que nestes dois últimos números de CATOLICISMO tratamos do tema: estamos diante de trabalhos que não somente fazem honra aos seus autores, mas que constituem também excelente mise-au-point para os dias que correm, de um debate que se iniciou na aurora do mundo...

A voz do Sr. Jean Ousset, erguendo-se desse grande foco de toda a cultura que é a França, contra a falsa antítese liberalismo-socialismo, nos faz ver que o espírito contra-revolucionário e ultramontano renasce de modo vigoroso e promissor na pátria de Veuillot, de Bonald e Blanc de Saint Bonnet. Prova de que, para bem da Igreja e do gênero humano, a França continua viva e forte. Pois o espírito da verdadeira França não é a Revolução, mas a Contra-Revolução!