A hora de Barrabás
“Mas os príncipes dos sacerdotes e os anciãos persuadiram o povo a pedir Barrabás e fazer morrer Jesus”
Cunha Alvarenga
A hora de Barrabás é a hora do poder das trevas, é a hora da escravidão do pecado. Com efeito, como explicar o desatino que praticou o povo judaico escolhendo um celerado, um ladrão, um sedicioso, um assassino, em vez do Justo, daquele que passou pela vida fazendo o bem? Como foi levada a turba-multa de Jerusalém a essa tremenda decisão, de modo a merecer, através dos séculos, o labéu de povo deicida?
Comecemos por analisar um aspecto importante desse ato dos judeus: o uso da liberdade para o mal.
Diz São João que a Verdade nos há de libertar (Jo. 8, 32). Que Verdade será essa? Esclarece o Discípulo amado que a Verdade, a Luz do mundo, é o Verbo Eterno, Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, "que é tudo em todos" segundo São Paulo, "o Primogênito, anterior a toda criatura", no qual "foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis" (Col. 1, 15-16).
A idéia da liberdade corresponde, portanto, à libertação de um jugo tirânico, o jugo do demônio e de seus sequazes, livrando a humanidade desse mundo de trevas interiores que é o reino do pai da mentira, daquele que foi homicida desde o princípio. E de sujeição a um jugo superior, que é o da autoridade de Deus e daqueles que são delegados de Deus. Importa ao homem estar sujeito, diz Santo Agostinho, submisso à lei e à autoridade emanadas de Deus. Como a verdade que nos há de libertar não é qualquer verdade, mas aquela que nos vem de Nosso Senhor Jesus Cristo, "pois o desígnio que Deus estabelecera e queria executar na plenitude dos tempos era este: fazer convergir para Cristo como cabeça tudo quanto existe no Céu e na terra" (Ef. 1, 9 e 10), vemos que o repudio do Redentor do mundo manifesta em toda a sua nudez o horror que é o uso ilegítimo da liberdade, que corresponde à escravidão do pecado. Ora, os judeus que preferiram Barrabás a Cristo, não repudiaram a Verdade, que é o Salvador do mundo, de modo indireto, pela negação de sua doutrina, pela desobediência à sua vontade. Os judeus do deicídio se levantaram frontalmente contra a própria pessoa do Filho de Deus. Como conseguiu o demônio levá-los até essa monstruosa abominação?
A conspiração do Sinédrio
A quem procurou Judas para negociar a traição do Mestre? Ao povo de Israel? Não, ao Sinédrio. A morte de Nosso Senhor já estava decidida. ``Os príncipes dos sacerdotes e os escribas procuravam meios de O prenderem à traição, para matá-Lo; mas temiam o povo" ( Luc. 22, 2). E diziam em suas tramas secretas: "Que não seja no dia da festa, para que não haja tumulto na multidão" (Marc. 14, 2 ). E o Sinédrio se reuniu para julgar, para pesar os termos da proposta do Iscariotes. Do Sinédrio saíram os emissários dos fariseus com a missão de acompanhar Judas em sua nefanda tarefa. E do Sinédrio saíram instruções precisas sobre o que devia ser feito, sobretudo - segundo a Serva de Deus Catarina Emerich - em matéria de medidas de precaução, como a colocação de guardas nas entradas do bairro de Ofel, onde o povo humilde se conservava fiel a Jesus. A tropa escolhida para prender o Salvador se compunha de soldados tirados da guarda do Templo e do serviço de Anaz a Caifaz.
E ao mesmo tempo que a parte boa da população de Jerusalém era conservada na ignorância da conspiração, houve um verdadeiro aliciamento de celerados para dar à prisão de Jesus o aspecto de um pronunciamento popular. Assim é que, quando Judas se encaminhou para o Jardim das Oliveiras afim de consumar a traição, "foi também com ele uma grande multidão de povo e de quadrilheiros, enviados pelos pontífices, escribas e anciãos, com lanternas e archotes, munidos de espadas, bastões e outras armas" ("Concordância dos Santos Evangelhos", de D. Duarte, 2o ed., p. 440 ). O povo vinha atrás, como o eterno curioso, amendrontado, cauteloso, mas quem agia eram os quadrilheiros estipendiados pelos príncipes dos sacerdotes, escribas e anciãos. Gente ressentida, a quem a obra de Nosso Senhor havia contrariado, quando mais não fosse pela mudança radical que sua doutrina impunha à concepção de vida desses espíritos carnais. "Essa escória de uma grande parte do povo judaico, diz a Serva de Deus Catarina Emerich, reunida para a festa, foi posta em movimento, excitada pelos inimigos principais de Jesus, e afluía de todos os lados ao palácio de Caifaz, para acusar falsamente de todos os crimes ao verdadeiro Cordeiro Pascal de Deus, que tomara sobre Si os pecados do mundo".
Como acontece em toda conspiração, essa movida contra o Reino de Cristo tinha um foco de irradiação. Os partidários de um Messias ainda por vir, que instauraria o domínio de Israel sobre todos os povos, os chefes religiosos dos judeus constituíam o foco dessa conjuração: "Os príncipes dos sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam algum falso testemunho contra Jesus, para fazê-Lo morrer, e não podiam encontrá-Lo, porque muitos depunham falsamente contra Ele, mas não combinavam os seus depoimentos" (Mat. 26, 59-60). E por esses falsos testemunhos insuflados pelo Sinédrio, vê-se claramente que os mentores da trama preferiam o jugo férreo de Cesar ao jugo suave de que falava o Redentor em sua peregrinação pela terra. Pois diziam os acusadores subordinados: "Encontramos este homem sublevando nossa nação, impedindo que se pagasse o tributo a Cesar e dizendo-se Cristo-Rei" (Luc. 23, 2 ).
Com esse fogo de barragem pérfida e maquiavelicamente preparado, a massa, insuflada pelos inimigos de Nosso Senhor, haveria também de escolher a Barrabás para o indulto, Barrabás, "um ladrão que fora preso com alguns sediciosos por ter cometido um assassínio em um levante" (Marc. 15, 7). Como se deu essa escolha popular por sufrágio universal e direto? Tal como hoje nas pseudo-democracias dirigidas por aqueles que exploram os apetites inferiores da turba-multa. A escolha não foi espontaneamente feita, os votos por aclamação foram fruto de um trabalho prévio dos interessados que haviam, à revelia do povo, escolhido o "candidato". É o que vemos pela narração do Evangelho: "Mas os príncipes dos sacerdotes e os anciãos persuadiram o povo a pedir Barrabás e fazer morrer Jesus" (Mat. 27, 20).
O pecado do naturalismo
Consuma-se, assim, a tragédia do Calvário como fruto dessa conspiração revolucionária do Sinédrio. E a escolha de Barrabás é bem o símbolo da falsidade do princípio da autodeterminação dos povos no sentido liberal da palavra, quando se acham em jogo, não coisas indiferentes, mas verdades impostergáveis, o bem das almas, a vontade expressa de Deus. Temos em Barrabás o exemplo do desvario a que chegam os pronunciamentos populares insuflados pelo espírito revolucionário, que fomenta nas multidões paixões doentias e as arrasta a um falso uso da liberdade, pela negação dos direitos inalienáveis de Deus sobre a sociedade humana. Os contumazes pontífices da iniquidade bradam em todos os tempos: "Não temos outro rei senão Cesar" (Jo. 19, 15 ).
Esta conspiração do Sinédrio que resultou na Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo nos leva, assim, a meditar sobre aquilo que Donoso Cortés afirmava ser a lei dos grandes períodos da História: terminam eles em uma grande catástrofe, que representa a vitória natural do mal sobre o bem, seguida por uma vitória sobrenatural do bem sobre o mal, por meio de uma intervenção direta de Deus sobre os acontecimentos humanos.
Vitória do mal, sobre o bem, ou melhor diríamos, a vitória do naturalismo, do liberalismo na essência de sua malícia, a vitória daqueles que se deixam levar pelo pecado da imanência, do "sereis como deuses" da tentação de nossos primeiros pais, daqueles que não se conformam com a nossa condição de meros peregrinos nesta terra, mas que aqui querem erguer definitivamente suas tendas. Naturalismo que nem sempre se apresenta de modo cru e materialista, mas que às vezes se contenta em dissociar o homem em duas partes, como os que modernamente desejam dividi-lo em indivíduo e pessoa, aquele pertencente ao mundo, às forças telúricas, sujeito ao Estado e ao constrangimento social, e esta completamente livre, pois que destinada à vida transcendente.
"Não temos rei senão Cesar"
O primeiro dos mandamentos da lei natural é amar a Deus sobre todas as coisas. A natureza e a graça colaboram na criatura humana, para que o homem possa alcançar seu último fim, que é a bem-aventurança eterna. O homem foi criado para Deus e não para as coisas perecíveis deste mundo. Desprezar portanto a graça, desprezar a vida sobrenatural, comprazer-se na natureza criada, deixar-se levar pelas meras forças de seu próprio ser, fazer vida aparte da Divindade, eis o pecado do naturalismo, eis o pecado da imanência, eis a glorificação de Barrabás, eis a revolta contra o Altíssimo insuflada na humanidade pelo pai da mentira e por seus sequazes, por ódio à vontade de Deus, que nos mandou seu Filho Unigênito, gerado nas puríssimas entranhas da Santíssima Virgem, por ódio ao Deus feito homem que nos veio remir e salvar.
Aqueles que não querem outro rei senão Cesar e que colocam a Santa Igreja de lado, em vão fazem essa distinção especiosa do homem enquanto indivíduo e enquanto pessoa. As multidões tangidas pelos Estados totalitários modernos, que sofrem os maiores horrores sob esses regimes concentracionários, não são constituídas por hordas ou rebanhos de indivíduos, sobre os quais Cesar teria um domínio exclusivo e incontestável. Essas levas humanas são formadas por pessoas, às quais se negam suas características essenciais, seus direitos fundamentais, a liberdade verdadeira. Mais ainda, é precisamente a destruição da personalidade, através de uma torpe campanha de deformação dos espíritos ou através do constrangimento “legal”, que visam esses eternos patronos de Barrabás.
A raça de Caim e os filhos de Abel
Como primeiro grande acontecimento histórico, temos a queda de Adão e Eva. Que significa ele? A vitória natural do mal sobre o bem, através da tentação da serpente que acenou ao primeiro casal com a árvore da ciência do bem e do mal, cujo fruto, uma vez comido, torna a os homens "como deuses". Que se segue a essa catastrófica vitória do pai da mentira? A vitória sobrenatural do bem sobre o mal por meio de uma ação direta de Deus sobre os acontecimentos humanos: Adão e Eva são expulsos do Paraíso, a justiça divina se exerce sobre a humanidade, que inicia sua triste peregrinação por esta terra, sujeita ao sofrimento e à morte, sujeita sobretudo àquela "morte segunda" que é a perda da graça. Passa o homem a viver da promessa do resgate, mas quantos tropeços e desfalecimentos, quantos Cains se interpõem no caminho dos filhos espirituais de Abel
Assim é que chegamos a outra culminância da História, com a catástrofe do dilúvio. Que significa o dilúvio? O triunfo natural do mal sobre o bem, a ponto de Deus, na sua infinita sabedoria, promover o triunfo sobrenatural do bem sobre o mal por meio de uma ação direta, pessoal e soberana sobre o curso dos acontecimentos terrenos.
Mas a luta recomeça. Os justos e os profetas clamam pelo Messias, procuram preparar os caminhos do Senhor pelo convite à oração e a penitencia. Os Elias sofrem a perseguição dos Acabs, a raça espiritual dos filhos da Santíssima Virgem, d'Aquela que haveria de esmagar a cabeça da serpente, se defronta com a raça daqueles que matavam os profetas. E assim, na plenitude dos tempos, o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Passou pelo mundo fazendo o bem, pregando a Boa Nova, instruindo seus Apóstolos e discípulos. Neste grande período histórico que se encerra com a Morte e Ressurreição do Filho de Deus, que vemos? A catástrofe inaudita do Calvário, em que o Redentor do mundo sofre o suplício da Cruz entre dois ladrões, abandonado pelo pugilo de homens que havia formado, sorvendo até a última gota o cálice de todas as amarguras, de todos os opróbrios que podem afligir a carne e o espírito do Filho de Deus feito homem. Do ponto de vista natural, portanto, esta culminância da História se caracteriza pela vitória do mal sobre o bem, pelo êxito das maquinações do demônio através de seus emissários aqui na terra, através daqueles que preferem ao justo o faccioso e revolucionário Barrabás.
Traço de união entre o Céu e a terra
Mas naquele momento em que se rasga o véu do Templo, naquele momento em que a terra se cobre de trevas e em que a alma do Divino Salvador abandona seu santíssimo corpo, dir-se-ia que todos os liames entre o Céu e terra se achavam rompidos, se não fosse a presença no Calvário, da Santíssima Virgem, Medianeira de todas as graças. E se a intercessão da Mãe de Deus valeu mais para a causa da Redenção da humanidade que todas as suplicas dos Justos e dos Profetas da antiga Lei, certamente a Esposa do Espírito Santo se acha bem no centro da vitória sobrenatural que se avizinha: por meio de uma ação direta, pessoal e soberana de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscita dentre os mortos, e naquelas trevas espessas e palpáveis raia a aurora para o mundo.
Com esse novo alento da Ressurreição, sem a qual seria vã a nossa Fé, com a descida do Paráclito sobre a Santíssima Virgem e os Apóstolos, inicia-se nova era para a humanidade. Deve morrer o homem velho e nascer o homem novo. Começa a Santa Igreja a sua obra nesta fase da superabundância de graças. Mas o caminho que a humanidade deve trilhar para sua salvação não é uma ampla estrada cheia de gozos e consolações, mas a senda estreita do cumprimento da vontade de Deus, da humildade, da renúncia e da modificação. Se a humanidade quiser se salvar, deverá tomar sua cruz e seguir a Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos deixou não somente uma doutrina e os meios sobrenaturais para nossa santificação, mas também o seu luminoso exemplo de oração, de boas obras, de sacrifício até a morte.
Com a pregação do Evangelho a face da terra se renova. Na então nascente civilização católica, perde Lúcifer o domínio fácil que exercia sobre os povos do paganismo, mas nem por isso renuncia ao seu reinado sobre os homens. Descobre o caminho das heresias, que faz surgir no seio da Igreja desde os tempos apostólicos, tendo por instrumentos aqueles mesmos partidários de Barrabás.
O maniqueísmo hodierno
Atinge a civilização católica seu apogeu na quadra conhecida por Idade Média. A ação da Santa Igreja se faz sentir em todos os aspectos da vida dos povos, desde a vida íntima das almas (e sobretudo aí) até a vida das famílias, a vida dos outros variados grupos sociais de natureza política, cultural, econômica, para culminar no Estado, que se inclui nesse conjunto de meios destinados a facilitar aos homens a consecução de seu fim último.
Contra tal estado de coisas se insurgem as heresias alimentadas pelo príncipe deste mundo. E entre elas, a mais terrível e a mais antiga, a heresia por excelência, o maniqueísmo, que não aceita essa harmonia hierárquica desejada por Deus entre o natural e o sobrenatural. Os maniqueus tentam dissociar a alma do corpo, e não somente espalham a peçonha dos seus perniciosíssimos erros religiosos, mas atacam também aquilo que constitui o cerne da organização social dessa brilhante fase da História da Cristandade: os cátaros e albigenses, que renovaram nessa quadra histórica o erro dos gnósticos maniqueus, se erguem contra o juramento de fidelidade, bem como contra o casamento, o direito de propriedade e outros institutos fundamentais da convivência humana.
Ora, a sociedade medieval, a sociedade feudal se achava baseada no conceito de honra, no juramento de fidelidade, que formava a trave mestra daquela sociedade orgânica em brilhante desenvolvimento, em que os variados grupos sociais se hierarquizavam e se solidarizavam através da submissão às autoridades que os conduziam. Igualitária desde o início, por isso mesmo que destruidora da verdadeira liberdade e portanto da lei natural e da Revelação, a heresia é inimiga dessas bases naturais e sobrenaturais em que deve assentar a sociedade humana.
Ou a Igreja ou a Revolução
Mas isso que, graças à pronta exterminação dos cátaros, albigenses e outros sectários maniqueus, não passou de uma tentativa mais ou menos frustrada no esplendor da Idade Média, esse movimento de orgulho e de revolta social, exteriorização do erro fundamental de caráter religioso, esse puritanismo maniqueu ou essa complacência com as coisas deste mundo e sua dissociação do plano da Redenção, toda essa volta ao vômito do paganismo e da infidelidade haveria de lentamente ressurgir com o humanismo renascentista, para culminar na Revolução Francesa. "Apesar das aparências, diz Régine Pernoud, a Revolução foi, não um ponto de partida, mas um ponto de chegada: o resultado de uma evolução de dois a três séculos; ela representa a difusão, em nossos costumes, do direito romano, com o sacrifício do direito consuetudinário. Napoleão nada mais fez do que completar sua obra ao promulgar o Código Civil e ao organizar as forças armadas, o ensino, a nação inteira, sobre o ideal burocrático da Roma antiga" ("Lumière du Moyen Age", p. 27)
E que o Sinédrio continua a agir, a promover a causa de Cesar por ódio à causa do Filho de Deus, prova-o o seguinte fato, entre outros que a História nos revela: no grande Sinédrio reunido em Paris em 1807, os judeus aplicaram a Napoleão invocações e títulos bíblicos reservados exclusivamente ao Messias, e isto apesar de o imperador dos franceses não ser de sangue judeu. Mais ainda, nesse mesmo Sinédrio acolheram-se os princípios da Revolução Francesa
(continua)