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O castelo de Josselyn

Torres, Muralhas, Masmorras, na Doçura de uma sociedade Cristã?

Carlos Alberto de Sá Moreira

Em artigo anterior ("O Castelo, imagem da Cristandade medieval", CATOLICISMO de setembro de 1955), descrevendo a formação da sociedade feudal, mostramos que ela atingiu um alto grau de harmonia, de paz e de estabilidade - de que os castelos foram o fiel reflexo. E terminamos sugerindo uma objeção: se a sociedade medieval fazia jus a tão grande elogio, para que tantas muralhas e torres? Essas ingentes obras de defesa não revelam a frequência de rudes agressões? E quem, senão os próprios barões, poderiam ser os agressores, quando desde o século IX as invasões de bárbaros já pertenciam ao passado?

A objeção é compreensível, e até corrente, dada a deturpação sistemática que se faz da história da Idade Média. Pode porém ser facilmente respondida, e sob vários pontos de vista.

CRISE DE CRESCIMENTO E NÃO BARBÁRIE

Imaginemos uma fazenda, na qual haja duas florestas. Uma, frondosa, pujante, estuante de seiva, crescendo com uma vitalidade dominadora. Constituem-na troncos poderosos, cheios de ramos verdejantes, alimentados por raízes profundas. Neste transbordamento de vida as árvores por vezes emaranham seus galhos, se empurram umas às outras, disputam-se o espaço, o ar, a luz. Chegam até a se prejudicarem nesta luta.

É uma crise, sim, mas uma crise de crescimento. O agricultor diante deste fenômeno fica satisfeito: basta- lhe podar os galhos, aparar aqui e ali, regular este excesso de vitalidade, para que o crescimento seja ordenado e tudo dê certo.

A outra floresta definha e se estiola. As árvores só se sustentam com recursos artificiais. Qualquer parasita, qualquer doença, logo vinga e as abate. É verdade que elas não se entrechocam. Mas é uma crise muito pior, porque é uma crise de decadência e deperecimento. O agricultor dificilmente poderá salvar a floresta.

Assim também os medievais: eram homens vigorosos, fogosos, estuantes de vitalidade. Personalidades robustas, de vontade férrea, por isso mesmo é que eles resistiram ao cataclismo das invasões e reagiram, e reagindo edificaram uma nova civilização. Mas também por isso eles se chocavam entre si - a princípio frequentemente, e por muitos pretextos: questões de honra, ambições, vinganças, até mesmo o mero desejo de lutar...

Não se deve contudo ver nisto uma doença mortal, como o é por exemplo o desregramento moral de nossa época, ou como foi a decadência do Império Romano. Era, pelo contrário, um transbordamento, ainda não plenamente ordenado, de virtudes naturais robustas e fecundas: coragem, amor à luta, à honra. Restos da impulsividade dos bárbaros de que eles descendiam, e cuja aculturação não podia ser feita da noite para o dia.

OS JURAMENTOS TINHAM FÔRÇA DE LEI

Este ardor belicoso estava longe de ser a manifestação de uma selvageria sanguinária, à maneira de Atila ou Gengis Khan. Coexistia com uma delicadeza de sentimentos e uma grandeza de alma nunca igualados por todo um povo: a fé que fazia da Religião a "loi certaine", o zelo pela glória da Igreja, a sublime expressão espiritual das catedrais, a ternura do amor conjugal.

E não se imagine a Idade Média como um "tohuvabohu", um caos universal em que todos lutavam contra todos, sem lei nem regra. Respeitava-se a hierarquia, os superiores, os juramentos e compromissos. Assim, normalmente não havia guerra entre senhores e súditos, pois a lei feudal proibia que um vassalo combatesse contra seu suserano, ao qual jurara fidelidade; e reciprocamente o suserano contra o vassalo, ao qual jurara proteção, Houve, é certo, violações, mas o juramento estava longe de ser uma mera fórmula: quando o Rei Luiz VII da França veio socorrer o Conde Raimundo V, sitiado em Toulouse por Henrique II da Inglaterra, — este, que era vassalo de Luiz VII pelos feudos que tinha em território francês, embora dispusesse de forças muito superiores e estivesse seguro de sua vitória, retirou-se, declarando que não podia dar combate ao seu suserano.

O feudalismo estabelecia também todo um sistema de arbitragens tendentes a resolver pacificamente os litígios. O vassalo podia sempre recorrer de seu senhor para o suserano mais alto. Os Reis exerciam cada vez mais amplamente seu papel natural de mediadores, no qual S. Luiz IX se distinguiu de modo eminente. O Papa era o árbitro supremo das questões temporais entre os povos cristãos.

QUATRO DIAS DE ARMISTÍCIO POR SEMANA

Neste desenvolvimento rigoroso da sociedade medieval, a mão que aparou os excessos, extirpou os erros, e dirigiu a formação da ordem social foi a Igreja. Desde cedo Ela se empenhou sem desânimo, em polir os costumes dos bárbaros que haviam invadido o Império Romano, refreando suas crueldades, moderando seus ímpetos. Os medievais, descendentes destes bárbaros, eram o fruto deste trabalho secular, porém ainda não terminado.

Em sua divina sabedoria, a Igreja não tentou a tarefa quimérica de eliminar a guerra, mas, por uma série de medidas e soluções práticas, aos poucos lhe restringiu o âmbito, a crueldade, a duração.

A primeira destas medidas foi a "Paz de Deus", promulgada em 989 pelo Concílio de Charroux: era proibido aos beligerantes fazer violência às mulheres, crianças, camponeses e Clérigos; as casas dos agricultares eram declaradas invioláveis, como já o eram as igrejas. Esta foi "a primeira distinção feita, na história do mundo, entre o fraco e o forte, entre os combatentes e as populações civis. Restringia-se a guerra aos que estivessem equipados para combater. Tal é a origem da distinção moderna entre objetivos militares e edificações civis - noção totalmente ignorada pelo mundo pagão. A interdição não foi sempre respeitada, mas aquele que a transgredia sabia que se expunha a sanções temíveis, temporais e espirituais" (Régine Pernoud, "Lumière du Moyen Age", p. 91).

Foi instituída depois, em princípios do século XI, pelo Papa Bento VIII, pelo Imperador Henrique II, e pelo Rei da França Roberto o Piedoso, a "Trégua de Deus", que limitava a guerra no tempo como a "Paz de Deus" o fizera no seu objeto: era proibido combater desde o primeiro domingo do Advento até a oitava da Epifania, do primeiro dia da Quaresma até a oitava da Ascensão, e, durante o resto do ano (uns 230 dias), desde a tarde da quarta-feira até a manhã da segunda-feira em memória da paixão e morte de Nosso Senhor (sobravam apenas 96 dias...). Isto impedia que as guerras tomassem vulto, ganhassem impetuosidade, pois quando o combate começava a ficar acesso era preciso interrompê-lo e só recomeçar dali a cinco dias — o que dava tempo para os ânimos se acalmarem.

ERA MAIS FACIL DEFENDER-SE QUE ATACAR

Os Príncipes cristãos secundaram e completaram as iniciativas da Igreja. Felipe Augusto instituiu a "quarentena do Rei": era obrigatório deixar passar o prazo de quarenta dias entre a declaração da guerra e o início das hostilidades. Isto dava tempo para se tentar solucionar pacificamente o conflito. E nesse intervalo era concedido aos inimigos residentes no país licença para regressarem a suas terras (ainda não haviam sido inventados os campos de concentração.)

As armas defensivas eram muito superiores às agressivas: contra os muros, fossos e torres dos castelos, os atacantes não tinham senão espadas, lanças, arcos e flechas, ou aríetes. Por vezes também usavam complicadas máquinas para lançar pedras ou mechas fumegantes, ou tentavam solapar a base das muralhas; mas geralmente preferia-se esgotar os sitiados pela fome - contra a qual o castelão se prevenia abastecendo o "donjon" com enormes provisões de cereais, guardadas em seus vastos porões (que a história deturpada transformou nas sinistras "oubliettes"), ou abrindo passagens subterrâneas que iam sair longe das muralhas, em lugares secretos.

As armas muito mortíferas sempre foram proibidas pela Igreja. A pólvora, conhecida desde o século XIII, só começou a ser usada quando a autoridade do Papa deixou de ser respeitada pelos senhores temporais.

MANSIDÃO, VIRTUDE ESQUECIDA...

Um dos grandes temas dos pregadores na Idade Média foi a doçura e a mansidão. Não o único: basta lembrar os sermões do melífluo S. Bernardo conclamando os povos cristãos para a Cruzada. Mas foi um dos mais repetidos, e isto porque a Igreja, em sua sabedoria, manda que se insista em cada época sobre as virtudes que estão mais esquecidas. Aos fogosos e combativos guerreiros medievais, Ela continuamente pregou a paz, o perdão, a mansuetude. S. Francisco de Assis, glória da Idade Média, foi talvez o modelo mais admirável deste espírito de paz, com que a Igreja refreou e suavizou o ardor belicoso de seus filhos.

A tal ponto isto se realizou, que quando batalhavam entre si os cavaleiros procuravam fazer prisioneiros e não matar. "Os guerreiros cristãos não têm sede de derramar sangue", dizia-se então. Era comum, nos campos de batalha, o soldado vencedor poupar a vida ao vencido que, caído por terra, pedisse misericórdia; na batalha de Andelys, empreendida por Luiz VI em 1119, entre novecentos combatentes contaram-se apenas três mortos.

Hoje em dia a situação se alterou radicalmente. Envenenado pelo liberalismo, o homem moderno tem grande tentação das concessões, das acomodações, do horror à luta, do irenismo. Poucos se lembram de agradar a Deus com sua energia, sua combatividade, sua coragem, sua intransigência; só se pensa em brandura e perdão. Combater esta deformação é a razão de ser de nossa secção de "Virtudes Esquecidas"

Mas se CATOLICISMO pudesse ter sido editado no século XII ou XIII, por certo que o conteúdo da secção seria bem o contrário: teríamos que pregar e repetir sem cessar: paz! paz! sede mansos! sede brandos! doçura! perdão!...

O CAVALEIRO, MODELO DO GUERREIRO CRISTÃO

Se de um lado o Igreja procurou refrear a belicosidade do homem medieval, pregando-lhe a paz e a mansidão, para que na Cristandade todos vivessem em harmonia, — de outro lado empenhou-se em estimular essa mesma combatividade, canalizando-a para causas santas e justas. "A grande glória da Idade Média é ter empreendido a educação do guerreiro, ter feito do soldado um cavaleiro. Aquele que se batia por amor dos rudes golpes, da violência e da pilhagem, tornou-se o defensor do fraco; transformou sua brutalidade em força útil, seu gosto do risco em coragem consciente, sua turbulência em atividade fecunda; seu ardor ao mesmo tempo aumentou e disciplinou-se. O soldado tem diante de si uma missão o realizar, e os inimigos que é chamado a combater são justamente aqueles em quem subsistem os desejos pagãos de massacre, de depravação e de pilhagem" (op. cit., p. 92).

O mérito de ter sido o grande instrumento desta transformação espiritual cabe à Cavalaria e às Ordens Religiosas Militares. Templários, Hospitalares, Cavaleiros do Santo Sepulcro, Teutônicos, homens consagrados a Deus, que se destinavam a lutar com a espada pela justiça e pela paz; verdadeiro exército da Igreja, que encheu de glória e grandeza a história da civilização cristã. É a Cavalaria, instituída para a defesa dos fracos, das viúvas, dos órfãos e dos Clérigos, votada por solenes juramentos a "servir a Deus, ao Rei e aos pobres", a instaurar o reino de Deus na terra, e que plasmou o mais nobre e elevado tipo de guerreiro que jamais houve: o cavaleiro, modelo de generosidade, lealdade e coragem, do qual a admirável figura de S. Luiz foi a mais perfeita realização.

E foi com tais guerreiros que a Igreja pôde empreender o maior movimento de idealismo coletivo que se conhece na história: as Cruzadas, para as quais milhares e milhares de cavaleiros e guerreiros cristãos se mobilizaram, movidos pelo santo desejo de derramar o próprio sangue na libertação dos lugares consagrados pela presença visível de seu supremo Rei e Senhor, Jesus Cristo, "le Filz Vierge Marie".


VERDADES ESQUECIDAS

As heresias podem ser reprimidas com penas civis

Do terceiro canon do IV Concilio Ecumênico de Latrão, no século XIII (conclusão do texto publicado no número passado):

Excomungamos também os que seguem os hereges, seus acoitadores e seus fautores; de sorte que, se não satisfizerem dentro de um ano após terem sido advertidos, serão infames de pleno direito, e, como tais, excluídos de todos os ofícios ou conselhos públicos, de eleger os oficiais, de prestar testemunho, de fazer testamento ou de receber heranças. Ninguém será obrigado a lhes responder em juízo, e eles responderão aos outros. Se se tratar de juiz, siso sentença será nula, e não se apresentarão processos em suas audiências; se se tratar de advogado, não será admitido a postular; se se tratar de tabelião, os atos por ele lavrados serão nulos; e assim por diante. Tratando-se de Clérigo, será deposto e privado de todo benefício. Quem quer que não evite estes excomungados, depois de denunciados pela Igreja, será também excomungado. Os Clérigos não lhes darão os Sacramentos nem sepultura eclesiástica, e não receberão suas esmolas nem suas oferendas, sob pena de deposição, e os Religiosos sob pena de não gozar de seus privilégios na Diocese. (apud Rohrbacher, "Histoire Universelle de l'Eglise Catholique", ed. 1885, tomo VII, 1, I,XXI, pág. 385).