(continuação)
SERVO DE MARIA E AMIGO DA CRUZ
contra todo o conjunto. E nisto havia um perigoso germe de anarquia. Pois, como diz Audisio, "se a legitimidade da assembléia não depende de um chefe que a preside, nenhuma força pode impedi-la de se dividir, e nenhum grupo se acha em estado de provar sua legitimidade com exclusão de outros. Eis a anarquia civil e eclesiástica" (G. Audisio, "Droit Public de l'Eglise et des Nations Chrétiennes", tomo 2o, p. 315).
A RESPOSTA DE ROMA
Essa Declaração dos Bispos galicanos de 1682 nos dá um retrato fiel do triste estado a que se achava reduzida a Igreja na França em fins do século XVII e princípios do século XVIII. Testemunho ainda mais impressionante, e mais autêntico, dessa decadência é o do Vigário de Cristo na terra, centro de convergência do ódio de toda essa trama galicano-jansenista. Respondendo aos autores da Declaração a 11 de abril de 1682, dizia-lhes Inocêncio XI em palavras candentes:
"Foi-Nos extremamente amargo e doloroso saber por vossa carta de 3 de fevereiro, que os Bispos e o Clero da França, que faziam outrora a coroa e a alegria da Santa Sé, se conduzem presentemente de tal maneira a seu respeito, que somos forçado a repetir com lágrimas esta palavra do Profeta: Os filhos de minha mãe se insurgiram contra mim. Para dizer a verdade, entretanto, é mais contra vós mesmos que combateis quando Nos resistis neste assunto, em que se trata da salvação e da liberdade de vossas Igrejas". E continua o Papa, condenando-lhes a pusilanimidade: "Notamos que estais dominados por sentimentos de temor. Esse temor não vos excusa. Seria necessário lembrar-vos os grandes exemplos de coragem e de firmeza de vossos maiores. E vós que Nos exortais à moderação ali onde a coragem não é oportuna, porque louváveis as palavras de Yves de Chartres, ao mesmo tempo que renegais os seus exemplos? Não se levantou ele, com o Papa Urbano, contra o Rei Filipe, e não arrostou a cólera real, a pobreza, a prisão, o exílio? Assim devíeis vós, unidos à Sé Apostólica, e com coragem sacerdotal, dizer ao Rei toda a verdade, mesmo com o risco de o irritar contra vós, afim de que pudésseis repetir sem rubor as palavras do Salmista: loquebar de testimoniis tuis in conspectu regum, et non confundebar. O resultado não seria duvidoso, à vista do coração tão dócil e do espírito sábio do Rei (Luiz XIV). Mas quem dentre vós ousou dizer uma só palavra? Não desertastes, mudos e fugitivos, o campo de batalha sem mesmo tentar o combate? Houve quem combatesse, segundo o que escrevestes: sim, os ministros do Rei combateram pela má causa; e vós, soldados de Cristo, vós lhes voltastes as costas. Nem venhais dizer que para evitar os conflitos do Sacerdócio e do Império, resolvestes temperar os cânones, que de resto não são inflexíveis. Porque se essa condescendência é permitida quando a necessidade o exige e nem a Fé nem os costumes sofrem com isso, se, como ensina Santo Agostinho, se torna necessário, em certas ocasiões, tolerar para o bem da unidade o que se deve detestar por motivo de equidade - quanto a vós, concedendo ao Rei, como inerentes à coroa, direitos puramente eclesiásticos por sua natureza e sua origem, vós agistes contra a religião de vossos juramentos e contra a autoridade do Concilio ecumênico de Lyon, vós subvertestes o fundamento da disciplina e da hierarquia eclesiástica, e colocastes a própria Fé em perigo. Isto já era demais, mas enchemo-Nos de horror ao vos ouvir dizer que relaxastes o vosso direito em favor do Rei. Sois então árbitros, e não guardiães de vossas Igrejas? Delas sois Bispos para as tornar escravas, e não para as defender? A que título vós vos arrogais então os direitos da Igreja, a ponto de os alienar e de com eles traficar? Ah! Lembrai-vos do que disse vosso ilustre compatriota São Bernardo: Vós sois Pastores, mas só um é Pastor dos rebanhos e dos Pastores; a ele foram dadas as chaves para formar de todos os rebanhos um único aprisco sob UM único Pastor; por conseguinte, em virtude de cânones desta vez inflexíveis, sois chamados a partilhar de sua solicitude, ao passo que ele possui a plenitude do poder. Eis por que - conclui o Papa - em virtude da autoridade que Deus onipotente Nos confiou, reprovamos, cassamos, anulamos pelas presentes tudo o que se fez em vossa assembléia sobre o assunto da regale, bem como tudo o que se seguiu e tudo o que dela se puder esperar ainda. Declaramos que se devem considerar todos esses atos como nulos e sem efeito; se bem que, sendo por eles mesmos manifestamente viciosos, não tivéssemos necessidade de lhes pronunciar a nulidade" (apud G. Audisio, op. cit., tom. 2o, p. 317 a 320).
ARMAS DE UM SANTO DA CONTRA REVOLUÇÃO
Eis bosquejado o quadro com que se deparou São Luiz Maria Grignion de Montfort. Não lhe acentuamos os contornos nem lhe carregamos as tintas. Trazemos para aqui o testemunho da história. "Quando começou sua obra apostólica, a cizânia havia crescido em espantosas proporções, e tão mesclada com o trigo, que era muito difícil distingui-la. Grande parte do Episcopado e do Clero francês estava mais ou menos infeccionada por estes erros, tanto mais difíceis de extirpar quanto o espírito galicano cismático dificultava as relações com Roma. Bispos e Sacerdotes infeccionados de jansenismo chegaram até a reformar a liturgia da Igreja com o fim manifesto de diminuir a devoção à Santíssima Virgem" (Pe. Nazario Pérez, S. J., na Introdução ao Tratado da Verdadeira Devoção, edição espanhola).
E quais as armas empregadas pelo santo missionário na luta contra os males de seu tempo? Contra os artífices do erro, prega o amor à Verdade e à ortodoxia. Contra o espírito mundano, prega com seu exemplo o amor à Cruz e o desprezo do mundo. Contra os inimigos de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Igreja, difunde o amor à Santíssima Virgem como caminho seguro para atingir o Salvador, e o amor à Santa Sé, ao Vigário de Cristo como meio para realizar aquele "que todos sejam um" da oração da Quinta-Feira Santa.
"Deus se alegra, minha querida irmã, contemplando-nos na peleja e fazendo-nos triunfar a ambos - dizia ele em carta de janeiro de 1713 - a ti em privado e a mim em público, visto que tuas pelejas têm lugar em ti mesma e não se manifestam fora de tua comunidade; das minhas, em troca, se fala em toda a França, pois vão dirigidas a combater os demônios do inferno ou a guerrear contra o mundo e os mundanos, inimigos da verdade".
Apesar de sua humildade, de seu amor às provações e aos sacrifícios, tamanhas foram as dificuldades opostas ao seu apostolado na França que, incerto quanto aos desígnios de Deus a seu respeito, vendo o Clero e mesmo o Episcopado de seu país profundamente divididos sobre questões de doutrina, resolveu o Santo ir a Roma para submeter seus princípios, bem como seus planos de ação, ao Vigário de Cristo na terra.
O AMIGO DA CRUZ
Governava a Igreja Clemente XI, o Papa da Bula "Unigenitus", campeão indômito na luta contra o jansenismo. Não podia ele deixar de acolher com carinho o pobre Sacerdote que se fizera apóstolo da verdadeira doutrina, através de afrontas, de perseguições, de sofrimentos.
Expôs o P. de Montfort a Clemente XI seu desejo de se dedicar às missões em países estrangeiros. O Pontífice, entretanto, fê-lo voltar para a Franca, para combater a peste jansenista, exortando-o a trabalhar sempre em perfeita submissão aos Prelados das Dioceses em que fosse chamado a desenvolver seu sagrado ministério. E como penhor de confiança em seu método de evangelização, bem como para aumentar sua autoridade, o Santo Padre lhe deu o título e os poderes de missionário apostólico.
Assim abençoado e encorajado pelo Papa, Grignion de Montfort partiu de Roma com novo alento. Mal chegado em França, recomeçou o calvário que no início de sua vida apostólica o havia levado a escrever à sua dirigida Irmã Maria Luiza de Jesus: "O que me faz dizer que obterei a divina sabedoria são as perseguições que sofri e estou sofrendo todos os dias".
Com efeito, resolvera rever Poitiers, onde o aguardavam almas fiéis. A cidade estava, porém, mais do que nunca dominada pelos jansenistas. E logo que foi conhecida a presença na Diocese de um peregrino que vinha de Roma honrado com o título de missionário apostólico, foi-lhe dado pela autoridade eclesiástica o prazo de vinte e quatro horas para se retirar.
Outras provações como esta o esperavam durante toda a sua vida ao lado de consolações como a amizade dos Bispos de Luçon e de La Rochelle, cujas Dioceses eram por fim, as únicas em que podia exercer o ministério. Mas não andava o Santo à procura de consolações. Muito pelo contrário, preferia as provações sofridas por amor de Deus. Em carta a uma de suas irmãs, exortando-a a suportar com espírito sobrenatural as suas cruzes, escreve o Santo: "Queria que visses as minhas. O maior número de conversões que consegui, foi após sofrer os interditos mais dolorosos e mais injustos".
PROFETA DOS ÚLTIMOS TEMPOS
Na terra há a Lei e os Profetas. Não podemos excusar nossas faltas por ignorância. E para os tempos modernos São Luiz Maria Grignion de Montfort traz a mensagem divina que nos há de salvar. Ele o Doutor da ação providencial reservada à Santíssima Virgem nos últimos tempos. É, portanto, o contra-revolucionário por excelência, pois a esta altura quem duvida ser a Revolução a hidra em cujas várias cabeças se concentra a ação dessa anti-Igreja do demônio?
E quem serão os instrumentos de Nossa Senhora nessa luta? Os "verdadeiros servos da Virgem Santíssima, que, como outros tantos Domingos, vão por toda parte com o facho brilhante e ardente do Santo Evangelho na boca e o santo Rosário na mão, a ladrar como cães fiéis... a abrasar como o fogo e a iluminar as trevas do mundo como sois, e que por meio de uma verdadeira devoção a Maria, isto é, interior sem hipocrisia, exterior sem crítica, prudente sem ignorância, terna sem indiferença, constante sem versatilidade e santa sem presunção, esmaguem, por todos os lugares onde estiverem, a cabeça da antiga serpente para que a maldição que Vós lhe lançastes se cumpra inteiramente: Inimicitias ponam inter te et Mulierem, et semen tuum et semen illius; Ipsa conteret caput tuum.
"Verdade é, Deus soberano, que o demônio há de armar, como predissestes, grandes ciladas ao calcanhar desta Mulher misteriosa, isto é, a esta pequena Companhia de seus filhos, que hão de surgir perto do fim do mundo, e que há de haver grandes inimizades entre esta bem-aventurada descendência de Maria e a raça maldita de Satanás; mas é esta uma inimizade toda divina, a única de que sejais o autor: inimicitias ponam" (Da oração de São Luiz Maria Grignion de Montfort pedindo a Deus missionários para sua Companhia de Maria).
NOTA INTERNACIONAL
Que significa a destruição do mito de Stalin?
Adolpho Lindenberg
Nunca perdemos oportunidade para denunciar como os melhores aliados da Rússia os elementos da "terceira força", os partidários de uma posição "um pouco à esquerda do centro", e os que acreditam na boa fé dos comunistas. Constituem eles uma multidão incontável, e onde quer que possam fazer valer seu número e sua força procuram desmoralizar qualquer movimento anticomunista coerente e eficaz. Enquanto grandes setores da opinião pública ocidental, principalmente nos EE.UU., já estão se imunizando contra os slogans propagandísticos de Moscou, a influência dos que "sabem" interpretar as intenções russas, e o prestigio dos líderes da "terceira força" continuam em franca ascensão.
Uma vez verificada esta desoladora circunstância, convém que nos habituemos a considerar as reviravoltas da política interna russa e os discursos dos líderes vermelhos, não como instrumentos de propaganda comunista direta, mas sim como matéria prima que os "interpretes" de boa vontade e os "simpatizantes da esquerda" devem trabalhar, trocar em miúdo, adaptar ao gosto nacional de cada país, para com mais eficácia iludir e perverter a opinião pública.
Assim é que em matéria de propaganda comunista, já são recursos ultrapassados as cediças afirmações dos governantes soviéticos, de que a Rússia é a própria encarnação do amor à paz e a pátria da liberdade. O que está na moda atualmente são os discursos (ou os boatos de discursos) de autocrítica, as viagens internacionais de ministros russos sorridentes, amáveis, distendidos: fatos "concretos" e "positivos" que servem aos filo-comunistas do Ocidente para "provar" a evolução do regime soviético para a democracia. E esses úteis agentes de Moscou já não descobrem seu jogo através de declarações enfáticas a favor das atitudes russas: agora fazem comentários sábios e imparciais - como por exemplo os do Sr. Drew-Pearson - sobre, as decisivas mudanças das intenções da U. R. S. S., antes de fato algum tanto belicistas, mas agora angelicamente pacificas...
É exatamente por não podermos ver nas críticas de Kruchtchev a Stalin não um novo e mais subtil meio de propaganda posto nas mãos dos esquerdistas de todo o mundo, que aproveitamos a ocasião para reafirmar nossa posição em face do problema comunista, que é a seguinte:
I — O comunismo é uma ideologia totalitária, que aspira a dominação universal, não admite meios termos e, em vista disso, a Rússia, a China Popular e qualquer outro país bolchevista serão sempre inimigos militantes da civilização ocidental.
II — Seja qual for o governo de um país comunista, presidente ou ditador, indivíduo ou colegiado - será ele sempre escravo da tendência expansionista intrínseca à ideologia marxista. Qualquer alteração no governo da Rússia ou da China deve, portanto, ser considerada como fenômeno secundário, incapaz de alterar os rumos fundamentais de sua política externa.
III — Conforme acentuou o Santo Padre Pio XII, a coexistência dos países comunistas com as nações ocidentais só será possível na medida em que o rearmamento progressivo for suspenso de ambos os lados, e uma fiscalização mútua altamente eficaz impedir um eventual desequilíbrio de forças em favor da Rússia.
IV — O marxismo é propagado não somente pelos membros dos Partidos Comunistas, mas também pelos esquerdistas de todos os matizes, pois a doutrina socialista é comum a todos, e todos são tentáculo do mesmo polvo. Presentemente, por exemplo, os esquerdistas da Inglaterra estão preparando a opinião pública inglesa para receber benevolamente as propostas dos líderes russos visitantes, por meio de uma hábil interpretação das críticas de Kruchtchev, aos desvarios de Stalin. Por ocasião das próximas eleições veremos que os esquerdistas americanos procurarão desmoralizar a campanha anti-comunista do Partido Republicano, e favorecerão ao máximo a vitória do candidato do Partido Democrático, principalmente se este for o Sr. Averell Harrimann, de triste passado.
OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX
PÂNICO ENTRE OS CATÓLICOS LIBERAIS
Fernando Furquim de Almeida
Quando mais acesas estavam as controvérsias que precederam o Concílio do Vaticano, Mons. Maret, Bispo de Sura e Deão da Faculdade de Teologia de Paris, anunciou a publicação de um livro sobre a infalibilidade, que levara anos escrevendo, e que já fora examinado e aprovado por vários bispos e teólogos eminentes.
Mons. Maret pertencia ao reduzido grupo que ainda defendia as idéias galicanas, e que nas questões importantes sempre apoiara a política dos católicos liberais. Esse grupo aglutinado na Faculdade de Teologia pelo próprio Mons. Maret, embora pequeno, compreendia alguns bispos elevados ao episcopado graças à amizade existente entre Mons. Maret e Napoleão III. Entre seus membros se contava o Arcebispo de Paris, Mons. Darbov, tristemente célebre pela oposição sistemática que fazia à Santa Sé. Mas se Mons. Darbov era o mais ativo, brilhante e impetuoso dos galicanos, não possuía o prestígio científico de Mons. Maret, que passava por ser um dos poucos franceses dignos do título de teólogo. Essa reputação, seu cargo de Deão da Faculdade de Teologia e o apoio do governo faziam dele o líder do galicanismo.
Comprometidos com os galicanos pelo apoio que estes sempre lhe emprestavam, os católicos liberais acolheram com verdadeiro pânico o anúncio do livro de Mons. Maret. A linha de conduta preconizada por Mons. Dupanloup achava-se ameaçada, pois era evidente que o Bispo de Sura defenderia as teses galicanas, contrárias à infalibilidade. Movimentaram-se então todos os líderes do liberalismo católico para impedir essa publicação, ao passo que Doellinger insistia no lançamento do livro, que seria o primeiro apoio episcopal para suas idéias. "Como dou muita importância à sua obra — dizia o teólogo alemão em carta a Mons. Maret —, não pude evitar de sentir uma imensa pena quando soube que hesitais em publicá-la. Deus vos abençoará se vencerdes a tentação. Se sucumbirdes, tereis privado a Igreja, na mais crítica situação em que ela jamais se encontrou nestes três séculos, do poderoso socorro de vossa obra".
Em vão o futuro Cardeal Lavigerie e Mons. Meignan tentaram convencer o autor da inoportunidade do livro. Em vão Mons. Dupanloup e Mons. Freppel (então simples padre) procuraram dissuadi-lo da publicação. Como bom galicano, Mons. Maret submetera seu projeto a Napoleão III, que não só o aprovou, como prometeu imprimir o livro à custa do Estado, para que ele pudesse ser distribuído gratuitamente. Diante de tal oferecimento, quebraram-se as últimas resistências do prelado. Em setembro de 1869, apareceu o "Du Concile général et de la paix réligieuse", que tão grande escândalo causaria.
Era Mons. Maret o primeiro bispo a combater publicamente a infalibilidade. Muito menos avançado do que Doellinger, negava no entanto a infalibilidade do Papa sem o concurso dos bispos em concílio, reconhecendo-lhe apenas uma parte preponderante nas definições conciliares e o direito de convocar o concílio. Essa tese, defendida publicamente por um bispo que representava uma parte do episcopado francês, embora pequena, teve uma repercussão imensa, e em geral desfavorável. Alguns prelados que ainda se inclinavam pela conciliação viram que não era mais possível evitar a divisão. O Arcebispo de Tours Mons. Guibert, por exemplo, tinha intenção de invocar durante o Concílio circunstâncias atenuantes para o galicanismo. "Teria relembrado a meus colegas — dizia ele a um amigo — os serviços que a igreja da França prestou à Igreja, e teria pedido que ao menos se amortalhasse o galicanismo com honra. Depois da publicação desse livro não há mais nada a dizer: seguiremos o esquife em silêncio".
Mons. Dupanloup via destruídas, pouco a pouco, todas as defesas que sua prudente tática erguera em torno do liberalismo católico. A consternação entre os dirigentes do movimento era geral. Mons. Freppel escrevia a um amigo a 30 de setembro: "O livro de Mons. Maret apareceu apesar dos nossos esforços". E Mons. Dupanloup anotava a 17 de setembro no seu Journal du Concile: "Aparecimento do livro de Mons. Maret. Complicação das piores. Talvez calamidade. Eu tinha construído um eldorado de concílio de caridade, zelo e amor. Eis que de repente, por essa imprudência verdadeiramente cega, surge um concílio de querelas desagradáveis".
Numa suprema tentativa de separar o liberalismo católico da incômoda companhia dos galicanos, Mons. Dupanloup procurou distinguir a pessoa do bispo das idéias que este professava. Assim foi que começou a defender, no seu jornal "Le Français", o Bispo Mons. Maret dos ataques que imediatamente surgiram em todos os países; e ao mesmo tempo retirou o convite que lhe fizera para pregar retiro ao clero de sua diocese, o que significava, evidentemente, desaprovação de suas idéias. Acontece que essa atitude aumentou a confusão nas fileiras católico-liberais, onde as teses de Mons. Maret passaram a ser defendidas por alguns mais conseqüentes.
Procurando conter a débacle, Lord Acton, Doellinger, Montalembert e outros insistiam para que o Bispo de Orléans pusesse ordem nessa confusão e defendesse abertamente a tese da inoportunidade. Cedendo, Mons. Dupanloup fez aparecer a 11 de novembro de 1869 as "Observations sur la controverse soulevée relativement à la definition de l’infaillibilité, au futur Concile". Mais lúcido, o Conde de Falloux desaconselhara essa publicação, alegando que o debate público diminuiria a autoridade do Bispo durante o Concílio.
Realmente, as "Observations" não foram bem recebidas, e Louis Veuillot pôde combatê-las com rara felicidade. Irritado, Mons. Dupanloup perdeu a cabeça e respondeu ao jornalista com um "Avertissement à M. Veuillot", violento e injusto. Nele, o redator do "Univers" era acusado de criar partidos dentro da Igreja na França, na Bélgica, na Alemanha, na Hungria, por toda parte; de dividir os fiéis, de injuriar os mais ilustres defensores da causa católica. Depois de declarar toda a redação do "Univers" vil e venenosa, Dupanloup terminava por chamar seu opositor de "accusator fratrum", expressão que as Escrituras usam para designar o demônio. Veuillot respondeu com serenidade, afirmando logo de início: "Falemos o menos possível, não querendo nos arriscar a perder todas as vantagens que nos deu um adversário muito irritado".
A impressão causada pelo "Avertissement à M. Veuillot" foi péssima. Ao lê-la, o Duque de Broglie, católico liberal, disse a seu filho: "O Bispo errou. Tomando posição antes da reunião, ele chegará ao Concílio com uma aparência de parti pris, que lhe tirará toda a autoridade". Mons. Icard, diretor do Seminário de Saint-Sulpice e teólogo de Mons. Bernadou, Arcebispo de Cens, comentava ao chegar em Roma: "Quanto ao Bispo de Orléans, é opinião generalizada que se comprometeu e perdeu a posição que poderia vir a ter no Concílio".
A minoria no Concílio do Vaticano se apresentou completamente dividida. Mons. Dupanloup foi o seu líder incontestável, mas não contava mais com um partido coeso defendendo as mesmas idéias, como era seu desejo. Ao lado dos oportunistas, um pequeno grupo anti-infalibilista combateu com o Bispo de Orléans, mas indisciplinadamente, levando Mons. Dupanloup a perder aquela serenidade que fora a sua grande força até o Concílio do Vaticano. Mons. Icard conta que várias vezes precisou acalmá-lo, não o conseguindo frequentemente. Esse estado de espírito não permitiu que sua habilidade lograsse, como de costume, desviar os golpes assestados contra o liberalismo católico, e foi uma das grandes causas naturais da derrota da minoria.
NOVA ET VETERA
Participação Socialista
J. de Azeredo Santos
Em recorte sem data, pessoa amiga nos faz chegar às mãos, com considerável atraso, uma crônica do Sr. Tristão de Athayde sob o título de "Participação", publicada no "Diário de Notícias" do Rio, cremos que no mês de setembro do ano passado, pois nela o autor faz propaganda de seu candidato nas eleições presidenciais de 3 de outubro, dizendo logo de início que a respectiva campanha "começa a tocar o princípio do fim".
Já por diversas vezes nos ocupamos do assunto da participação dos empregados nos lucros das empresas. A ele não voltaríamos agora se não fosse essa evidencia que temos diante dos olhos, de que as águas continuam turvas.
UMA PROVA DE MÁU GOSTO
O Sr. Tristão de Athayde procura ressaltar, nessa crônica, a parte do programa de seu candidato que trata da participação nos lucros. Estaríamos diante de um movimento incoercível dentro da tese de "ou a Reforma Social ou a Revolução": "É impossível e indesejável retardar ou desviar essa evolução. Impossível, por se tratar de um movimento que acompanha, historicamente, a emancipação crescente das classes trabalhadoras, que já há mais de um século Auguste Comte previa como sendo a incorporação do proletariado à civilização".
Com um mau gosto não isento de demagogia, o Sr. Alceu de Amoroso Lima compara a atitude dos que se mostram contra a participação coercitiva dos empregados no lucro das empresas à dos anti-abolicionistas nos anos anteriores a 1888. Seria o caso de se indagar se a abolição da escravatura no Brasil foi feita de acordo com as normas estabelecidas por Leão XIII (Carta "In plurimis", de 5 de maio de 1888, ao Episcopado brasileiro), isto é, acautelando os interesses tanto dos escravos quanto dos senhores, preparando uns para o uso da liberdade, outros para as novas bases em que se ia desenvolver a nossa vida econômica. Tais considerações escaparam por completo aos propagandistas do abolicionismo. De qualquer maneira, pode uma pessoa inteiramente favorável à abolição da escravatura se mostrar contrária ao modo desastrado como os partidários da medida fizeram a Princesa Isabel pô-la em prática.
Mas voltando à participação, seja-nos lícito recorrer a alguns símiles para ilustrar devidamente o assunto. Imaginemos um chefe de Estado muito bem casado. Todos sabem que o casamento constitui um dos Sacramentos da Santa Igreja, e é a porta para um estado muito louvável. Vai então o presidente da República e, considerando a grande porcentagem de solteiros existentes no país e o problema da falta de braços, baixa um decreto obrigando todos os brasileiros maiores de 18 anos a contrair matrimonio. Estará certo?
Pode também dar-se o caso de ser solteiro o chefe da nação e achar ideal o seu estado, que na realidade é mais perfeito segundo São Paulo. Será lícito por isso um decreto governamental compelindo todos os brasileiros a se manterem solteiros?
Por que serão absurdos ambos os decretos? Porque a escolha de estado é um direito natural que pertence a todos os homens.
De modo análogo podemos achar que a participação nos lucros é excelente em determinados casos, e realmente sabemos de várias experiências concludentes nesse sentido. Mas também aceitamos como inteiramente procedentes as razões dos especialistas que consideram inexequível a medida em dadas circunstâncias. Essas razões se reduzem ao princípio fundamental em que o Santo Padre Pio XII se firmou para condenar a co-gestão e a participação forçadas: violam elas gravemente a propriedade privada, instituto de direito natural que, em seus elementos fundamentais, não pode ser arbitrariamente restringido pela lei.
OUTRO DIREITO NATURAL
Acresce que a participação a que se refere o Sr. Tristão de Athayde seria conseguida pela reforma da estrutura da empresa, no sentido de se eliminar a diferença entre patrões e operários ou empregados, para todos se tornarem sócios. A associação substituiria compulsoriamente o salariado. Eis aqui outro princípio que fere o direito natural de propriedade.
Diz o Santo Padre que "o direito de co-gestão econômica, que se pleiteia, se acha fora do campo dessas realizações possíveis" (alocução de 3 de junho de 1950, aos membros do Congresso Internacional de Estudos Sociais). E por quê? Porque "não se estará também com a verdade ao querer afirmar que toda empresa particular é por sua natureza uma sociedade, na qual as relações entre participantes nela sejam determinadas pelas regras da justiça distributiva, de modo que todos indistintamente - proprietários ou não dos meios de produção - teriam direito à sua parte na propriedade ou pelo menos nos lucros da empresa.
"Uma tal concepção parte da hipótese de que toda empresa entra por sua natureza na esfera do direito público. Hipótese inexata: quer a empresa seja constituída sob forma de fundação ou de associação de todos os operários como co-proprietários, quer seja ela propriedade privada de um indivíduo que assina com todos os seus operários um contrato de trabalho, num caso como no outro ela está na alçada da ordem jurídica privada da vida econômica" (alocução aos membros da UNIAPAC, de 7 de maio de 1949).
VARIAS MODALIDADES DE TOTALITARISMO
O que acima fica transcrito é suficiente para mostrar o absurdo de se querer resolver por leis e decretos um assunto delicado que, como tudo o que diz respeito à questão social, depende mais do apaziguamento dos espíritos, do exercício do amor do próximo, que de quaisquer reformas das instituições, ainda que sensatas.
É interessante assinalar que é em nome de princípios anti-totalitários que o Sr. Tristão de Athayde pugna por essa participação forçada, e pelo processamento dessa "evolução" por meio da reforma associativa da vida econômica.
Mas, tal reforma de estrutura da empresa, no sentido de acabar de vez com patrões e operários, entrando dentro da própria alma da vida econômica e social, tirando aos proprietários dos meios de produção a liberdade de iniciativa e o direito de dispor de seus bens, tudo isso não constituiria um verdadeiro atentado totalitário contra o direito de associação, contra o direito de propriedade, contra a liberdade dos filhos de Deus naquilo que é mais elementar em sua vida material, isto é, a apropriação daquilo de que necessitam para se alimentar, para se vestir, para morar?
E não constituiria essa reforma de estrutura da empresa um outro caminho para se implantar no Brasil o socialismo? Esse mesmo socialismo que é o traço característico de todos os regimes totalitários? E não será esse caráter infenso a toda liberdade legítima um dos elementos da irredutibilidade do socialismo à doutrina da Igreja?
Estranho modo esse, de acabar com a luta de classes: pela radical destruição de um dos termos da questão. Eis um artifício "legal" para se chegar ao coletivismo integral, que escapou ao próprio Marx...