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O CARDEAL MERY DEL VAL, FIDALGO, HOMEM DE ORACÃO E DIPLOMATA

Paulo Corrêa de Brito Filho

Foi introduzida há pouco tempo a causa de beatificação de uma das figuras eclesiásticas de maior projeção deste século. Trata-se do Cardeal Rafael Merry del Val, que durante todo o glorioso pontificado de S. Pio X exerceu o cargo de Secretário de Estado da Santa Sé.

Desse modo, assim como em vida Deus uniu estas duas grandes almas nas graves preocupações do governo da Igreja Universal, após a morte parece querer aproxima-las mais uma vez, na glória dos altares. O nome imortal do Pontífice já está inscrito no catálogo dos Santos. Quanta alegria experimentaríamos em ver dentro em breve o mais íntimo de seus colaboradores segui-lo nesta suprema consagração.

Já existe rica bibliografia sobre o Santo e o Servo de Deus, exaltando suas virtudes e analisando a obra que executaram em conjunto - o que constitui certamente trabalho benemérito de edificação dos fiéis. Dentre os vários volumes publicados sobre o assunto, salientamos os de autoria do Revmo. Pe. Jerônimo Dal-Gal, O. F. M. Conv. — "S. Pio X" e "Le Cardinal Merry del Val". O primeiro já foi comentado em CATOLICISMO (n°s 47, de novembro de 1954, e 50, de fevereiro de 1955). Propomo-nos neste artigo, baseados principalmente na excelente obra daquele autor franciscano, abordar alguns aspectos - sobretudo os menos conhecidos pelo público em geral - da riquíssima personalidade do Cardeal Merry del Val.

Um grande fidalgo

Corria nas veias do ilustre Purpurado sangue nobre, das mais ilustres famílias da Irlanda, Inglaterra, Espanha, Escócia e Holanda. Segundo filho do Marquez Merry del Val, diplomata espanhol de origem irlandesa, e da Condessa Josefina de Zulueta, que por sua vez era inglesa de ascendência espanhola, o Servo de Deus aparece-nos como um fruto admirável deste caldeamento de nobres estirpes de vários países europeus. Tudo nele denotava a ascendência aristocrática: o porte majestoso, os finos traços do semblante, o sereno modo de agir, as apuradas qualidades de espírito. Porém, mais do que tudo, herdara de seus maiores a grandeza de alma, o amor à virtude, a inabalável fidelidade à Igreja. Pois Rafael Merry del Val podia se orgulhar com razão de sua progênie, sempre devotada à causa de Deus e cuja tradição gloriosa registra um mártir, supliciado pelos judeus em Saragoza, no ano de 1250.

Grande fidalgo, Merry del Val era também, no verdadeiro sentido da palavra, um homem de cultura. Sabia com perfeição sujeitar à influência dos princípios doutrinários sua afetividade e todo o seu modo de ser. Mas de onde lhe vinha esta faculdade admirável? Antes de tudo originava-se do berço. Poder-se-ia fazer aqui uma longa digressão, a fim de salientar quanto existe de comum entre nobreza e cultura. Limitemo-nos, no entanto, a lembrar que a nobreza possui como um de seus característicos primordiais, a função de concretizar na vida quotidiana com auxílio da tradição os mais altos valores culturais.

Dotado de poderosa inteligência, o Servo de Deus formava com rapidez um juízo claro e exato dos fatos, sabendo analisá-los e coordená-los com maestria. Narra um contemporâneo que "ele conseguia, sobretudo, fazer sínteses dos fatos observados e induzir idéias gerais. Conhecia melhor do que ninguém o estado e o movimento da Igreja em todos os países, suas necessidades, lacunas, perigos" (Mgr. Cenci, "Le Cardinal Merry del Val", pg. 15). Por outro lado, dispunha de sólidos e profundos conhecimentos de teologia, filosofia, exegese, história, apologética, além de outras matérias. E era dotado de temperamento artístico, conhecendo bem música e pintura.

Também não havia questão de política religiosa ou temporal sobre a qual ele não pudesse discorrer com a segurança de um observador lúcido e perfeitamente informado. Um só golpe de vista era-lhe suficiente para perceber e penetrar o essencial das questões mais complexas.

Explica-se por este conjunto de qualidades intelectuais, sem falarmos dos dons sobrenaturais, a profunda impressão que sentia, por vezes até o fim da vida, qualquer pessoa que se acercasse do Secretário de Estado de S. Pio X.

Delegado Apostólico aos 32 anos

Diplomata e político habilíssimo, Rafael Merry del Val nunca perdeu de vista, no entanto, o fato de que a Igreja não é uma sociedade como outra qualquer, regida por critérios da política humana, mas que sua vida e atividade deve se pautar por princípios sobrenaturais imutáveis. Por isto, em todas as suas deliberações, ele jamais se afastava da verdade, mesmo quando outros julgavam mais prudente calar a respeito dela. Repugnavam-lhe os compromissos e as vias tortuosas. Um dia, ouvindo alguém dizer que Deus julgaria os mentirosos com indulgência, porque em certas situações não é possível dizer a verdade, uma chama de indignação brilhou em seus olhos.

Ele amava a verdade integral e absoluta. A regra de sua diplomacia era a mesma que seu amado Pontífice havia dado, certa vez, a um jovem Prelado da Secretaria de Estado: — "Sois moço, lembrai-vos de que a política da Igreja é a de não fazer política, mas seguir sempre a via reta".

Possuía em grau eminente as qualidades do verdadeiro diplomata: argúcia penetrante, firmeza de caráter, unidas a um tacto que discernia com precisão o ponto central das questões, como também uma verdadeira prudência e incomparável habilidade.

Ainda muito jovem, aos 32 anos, Leão XIII enviou-o ao Canadá como Delegado Apostólico em missão extraordinária, a fim de regularizar delicada questão relativa às escolas católicas daquele país. De tal maneira soube conduzir as negociações com o governo, e solucionar a pendência com plena vantagem para a Igreja, que o Pontífice, em Encíclica dirigida ao Episcopado canadense, louvou calorosamente a "diligência e fidelidade" de seu Delegado. Os canadenses, por seu lado, nunca mais se esqueceram daquele jovem eclesiástico que a todos maravilhara pelo seu discernimento político e sua profunda piedade.

Não foi menos brilhante o êxito do recém-nomeado Arcebispo titular Merry del Val, no importante cargo de Presidente da Academia dos Nobres Eclesiásticos, instituto destinado a formar os diplomatas da Santa Sé. Algum tempo depois, contando ele apenas 38 anos de idade, a confiança do Sacro Colégio conferiu-lhe as pesadas responsabilidades de Secretário de um dos Conclaves mais difíceis da história da Igreja. Foi então que a Providência o aproximou pela primeira vez do Cardeal Sarto, Patriarca de Veneza, o futuro S. Pio X. Desde logo ambos se sentiram unidos pelos laços da mais profunda amizade. A intuição sobrenatural dos santos raramente falha.

Eleito S. Pio X, pediu este ao jovem Arcebispo que assumisse, em caráter provisório, a Secretaria de Estado. Não haviam transcorrido dois meses desde a coroação, quando o Sumo Pontífice o criou Cardeal da Santa Igreja Romana, nomeando-o oficialmente Secretário de Estado.

A afeição sobrenatural que unia aquelas duas almas, apesar da grande diferença de idade, de origem, e de cultura, só cresceu durante os onze anos de frutuosa e contínua colaboração que decorreram até a morte do Santo Pontífice. Não nos furtamos ao prazer de reproduzir aqui dois dos breves autógrafos que o Papa endereçava ao seu Secretário de Estado, e nos quais se evidencia a confiança absoluta e o afeto paternal que lhe votava: "Eminência, aceito em tudo vosso conselho" (15 de agosto de 1904). Ainda: "Espero o julgamento de Vossa Eminência, julgamento que me dará à sua vontade, e do qual farei o meu tesouro" (9 de marco de 1905).

Pobreza e magnificência - caridade e fortaleza

Indiferente às honras e almejando sempre uma vida obscura, na qual pudesse se dedicar totalmente ao ministério sacerdotal, o Servo de Deus em inúmeras ocasiões tentou esquivar-se aos altos cargos para os quais era chamado. Desde muito jovem, sempre ambicionou dedicar-se, como simples missionário, ao trabalho apostólico para a conversão dos anglicanos. Um ano após sua nomeação para a Secretaria de Estado, escrevia a um correspondente: "Pedi a Deus que, caso sua vontade e sua glória o exijam, eu seja o mais cedo possível exonerado deste cargo, e livre para buscar por outras vias a união íntima com ele".

Sua fé viva e sua profunda piedade se manifestavam de modo impressionante no trato das coisas sagradas. Há numerosos testemunhos sobre a admiração que causava ao rezar a Missa ou pregar a palavra de Deus. Um Pároco italiano relata: "Sua maneira de celebrar era uma pregação muda, mas eloquente. As testemunhas, mesmo as mais céticas, sentiam como que uma fascinação mística, que as incitava ao recolhimento. Seu semblante cintilava, irradiando uma ternura e uma alegria celestes..."

As fontes que alimentavam a piedade do Servo de Deus eram a devoção à Eucaristia, ao Crucifixo, à Santíssima Virgem, em cuja honra compôs orações que são verdadeiras jóias da espiritualidade moderna. Se as altas funções de que se desempenhou durante toda a sua vida lhe consentissem mais vagares, poderia ter se tornado um dos grandes autores espirituais de nossos tempos. Atestam essa afirmativa os poucos e admiráveis escritos que nos legou, nesse terreno. Basta lembrar a sua célebre ladainha da humildade que CATOLICISMO publicou recentemente ainda (no 44, de agosto de 1954).

Seria desnecessário frisar quanto ele amou e praticou, até ao heroísmo, essa virtude básica da humildade. Também em outras virtudes, como a pobreza e a magnificência, a caridade e a fortaleza, foi exímio. Sabia com perfeição conciliar essas virtudes que o mundo imagina contraditórias. Sua fortaleza de alma foi comprovada especialmente por ocasião da condenação do modernismo, uma vez que foi ele o braço direito de S. Pio X no esmagamento da terrível heresia.

Secretário de Estado e diretor de consciências

Mesmo nos períodos dos mais intensos trabalhos da Secretaria de Estado, o Cardeal Merry del Val nunca deixou de atender com solicitude seus dirigidos espirituais. Fez questão de continuar a orientar muitos deles até o fim da vida, pois não desejava, por preço nenhum, perder este contacto vivo e sacerdotal com as almas.

Sua direção, segundo vários testemunhos, era eminentemente prática, clara e encorajadora. A uma prudência e experiência raras, aliava uma absoluta intransigência com relação ao mal. Então manifestavam-se sua firmeza e energia inabaláveis, desde que estivessem em jogo os princípios católicos.

A base de sua direção espiritual consistia em inculcar a aceitação confiante da Vontade divina. Insistia muito nestas regras: "fazer bem as coisas ordinárias; em seguida, se for possível, pensar em coisas extraordinárias. Santificar-se no seu próprio estado e condição; não olhar jamais além da nossa própria esfera de vida".

Estes traços nos dão uma noção global da personalidade impar do Prelado em que recaiu tão inteiramente a confiança de um Papa como S. Pio X, para o trato dos mais altos assuntos da Igreja. A Providencia o fez uma obra prima da natureza e da graça, que colocou por muito tempo no candelabro, para que iluminasse a Cristandade inteira. Tudo leva a crer que às numerosas glorias de seu Pontificado, o Santo Padre Pio XII ainda acrescente esta, de elevar à honra dos altares este Purpurado "grand seigneur", asceta e homem de oração admirável, diplomata sutilíssimo, para consolar nestes dias de vulgaridade, ativismo e naturalismo, os fiéis, tão rudemente provados.


VERDADES ESQUECIDAS

PODE-SE POR VEZES AJUIZAR DE ALGUÉM POR SEU FÍSICO

Palavras de S. Gregório Nazianzeno referindo-se ao Imperador Juliano, o Apóstata: Eu o olhava, e me chamava a atenção sua cabeça sempre em movimento, seus ombros agitados, e que davam a impressão de desconjuntar-se, um olhar desvairado, um passo cambaleante, um nariz arrebitado que respirava insolência e desdém. E eu me perguntava: que monstro Roma alimenta aqui? (Disc. V, 23, 24; P. G., t. XXV, col. 692, 693 — apud Fernand Mourret, Générale de l'Eglise, ed. Bloud et Gay, Paris, pag. 185 ).