(continuação)
IMPORTÂNCIA DAS ELITES
É DA ESSENCIA DA NOBREZA ASPIRAR A PERFEIÇÃO CRISTÃ
espírito inacessível à agitação irrequieta e à ânsia cega de novidades que caracterizem nosso tempo, mas, do mesmo passo, largamente aberto a todas as necessidades sociais. Firmemente persuadidos de que somente a doutrina da Igreja pode trazer eficaz remédio para os males presentes, tomai a peito abrir-lhe o caminho, sem restrições nem desconfianças egoísticas, pela palavra e pela ação, de particular maneira constituindo, na administração de vossos bens, empreendimentos verdadeiramente modelares tanto do lado econômico como do lado social. Um verdadeiro gentil-homem jamais presta seu concurso a empresas que não possam sustentar-se e prosperar senão com prejuízo do bem comum, com detrimento ou com a ruína das pessoas de condição modesta. Pelo contrário, fará ele consistir seu ponto de honra em estar do lado dos pequenos, dos fracos, do povo, daqueles que, exercendo um ofício honesto, ganham o pão com o suor de seu rosto. Desta forma sereis verdadeiramente uma elite; assim cumprireis vosso dever religioso e cristão, assim, servireis nobremente a Deus e vosso país.
“Possais, queridos filhos e filhas, com vossas grandes tradições, com o desvelo por vosso progresso e vossa perfeição pessoal, humana e cristã, com vossos serviços impregnados de amor, com a caridade e simplicidade de vossas relações com todas as classes sociais, ajudar o povo a se arraigar nesta pedra fundamental, a procurar o reinado de Deus e sua justiça” (1946).
• O pecado de omissão dos guias ausentes
aí se compreende a responsabilidade que há na omissão das elites perpetuamente ausentes: “Menos difícil... é determinar hoje, entre as diversas maneiras que se vos deparam, qual deva ser vossa conduta.
“A primeira dessas maneiras é inadmissível: é a do desertor, daquele que foi injustamente chamado “emigré à l'intérieur”; é a abstenção do homem amuado ou zangado que, por despeito ou falta de coragem, não faz uso das suas qualidades e das suas energias, não participa de qualquer das atividades do seu País e do seu tempo, mas se retrai - como o Pelide Aquiles em sua tenda, junto aos navios de rápido curso, longe das batalhas - enquanto estão em jogo os destinos da pátria.
“É igualmente menos digna a abstenção quando efeito de uma indiferença indolente e passiva. Pior, de fato, do que o mau humor, o despeito e a falta de coragem seria o descaso frente à ruína em que estivessem prestes a cair os próprios irmãos e o povo. Em vão tentaria ela esconder-se sob a máscara da neutralidade: ela absolutamente não é neutra; querendo ou não, é cúmplice. Cada um dos leves flocos que repousam docemente sobre as encostas da montanha, e a adornam com sua alvura, contribui, deixando-se arrastar passivamente, para fazer da pequena massa de neve que se destaca do cume, a avalancha que leva o desastre ao vale, e que arrasa e sepulta as tranquilas moradias. Somente o bloco compacto, que se incorpora à rocha fundamental, opõe à avalanche uma resistência vitoriosa, e pode deter ou pelo menos arrefecer a marcha devastadora.
“Desta maneira, o homem justo e firme em seus propósitos de bem, de que fala Horácio em célebre ode (Carm. III, 3), que não se deixa abalar, em seu inquebrantável pensamento, nem pelo furor dos cidadãos que dão ordens delituosas nem pelas ameaças do tirano, permaneceria impávido ainda que o universo caísse aos pedaços sobre ele: “si fractus inlabatur orbis, impavidum ferient ruinae”. Mas se este homem justo e forte for um cristão, não se contentará em quedar hirto e impassível no meio das ruínas: sentir-se-á na obrigação de resistir e de impedir o cataclisma, ou pelo menos de limitar seus estragos; e mesmo quando não for possível conter a obra destruidora, ainda lá estará ele para reconstruir o edifício abatido, para semear o campo devastado. Tal deve ser a conduta que vos compete. Consiste ela, sem que tenhais que renunciar à liberdade de vossas convicções e de vossas opiniões sobre as vicissitudes humanas, em tomar a ordem contingente das coisas como está, e em dirigir os seus efeitos para o bem, não tanto de uma determinada classe, como para o de toda a comunidade” (1947).
Como se vê, o Papa, nestas últimas palavras, insiste no princípio de que a existência de uma elite tradicional corresponde ao interesse de todo o corpo social, desde que ela cumpra seu dever.
• Qualidades de alma do fidalgo hodierno
Claro está que o cumprimento deste dever encontra obstáculos gravíssimos. Mas o membro da nobreza ou das elites tradicionais deve ser homem de valor. É o que dele espera o Vigário de Jesus Cristo: “Por isso, o que esperamos de vós é antes de tudo uma fortaleza de ânimo que as mais duras provas não poderiam abater; uma fortaleza de ânimo que faça de vós não somente perfeitos soldados de Cristo para vós mesmos, mas também por assim dizer, treinadores e sustentáculos daqueles que forem tentados a duvidar ou a ceder.
“O que esperamos de vós é em segundo lugar, uma presteza na ação que não se atemoriza nem se deixa desencorajar com a previsão de qualquer sacrifício que o bem comum hoje requeira; uma presteza e um fervor que, tornando-vos animosos no cumprimento de todos os vossos deveres de católicos e de cidadãos, vos preserve de cair num “abstencionismo” apático e inerte, que seria gravemente culposo em um tempo em que estão em jogo os mais vitais interesses da Religião e da pátria.
“O que esperamos de vós é, finalmente, uma generosa adesão - não à flor dos lábios e de mera forma, mas do fundo do coração e convertida em atos sem reservas - ao preceito fundamental da doutrina e da vida cristã, preceito de fraternidade e de justiça social, cuja observância não poderá deixar de vos assegurar a vós mesmos verdadeira felicidade espiritual e temporal.
“Possam esta fortaleza de ânimo, este fervor, este espírito fraterno guiar cada um dos vossos passos, e abrir vossos caminhos no curso do Ano Novo, que tão incerto se anuncia, e que parece quase vos conduzir através de um obscuro túnel.” (1948).
E o Pontífice desenvolve ainda mais estes conceitos em 1949: “De fortaleza de ânimo todos têm necessidade, mas especialmente em nossos dias, para suportar corajosamente os sofrimentos, para superar vitoriosamente as dificuldades da vida, e para cumprir constantemente o próprio dever. Quem não tem que sofrer? Quem não tem que penar? Quem não tem que lutar? Somente aquele que se rende e foge. Mas vós tendes menos do que qualquer outro, o direito de vos render e fugir. Hoje os sofrimentos, as dificuldades e as necessidades são, habitualmente, comuns a todas as classes, a todas as condições, a todas as famílias, a todas as pessoas. E se alguns estão isentos, se nadam na abundância e nos prazeres, isso deveria movê-los a tomar sobre si as misérias e as dificuldades alheias. Quem poderia achar contentamento e repouso, quem, pelo contrário, não sentiria mal-estar e não coraria de viver no ócio e na frivolidade, no luxo e nos prazeres, em meio a uma quase geral tribulação?
“Presteza de ação: Na grande solidariedade pessoal e social, deve cada qual estar pronto a trabalhar, a se sacrificar e se consagrar ao bem de todos. A diferença está, não no fato da obrigação, mas na maneira de a satisfazer. Não é então verdade que os que dispõem de mais tempo e de meios mais abundantes devem ser os mais assíduos e mais solícitos em servir? Quando falamos de meios, não entendemos de Nos referir somente nem principalmente às riquezas, mas a todos os dotes de inteligência, cultura, educação, conhecimento, autoridade, dotes estes que não são concedidos a alguns privilegiados da sorte para a sua exclusiva vantagem, ou para criar uma irremediável desigualdade entre irmãos, mas para o bem de toda a comunidade social. Em tudo o que for serviço do próximo, da sociedade, da Igreja, de Deus, deveis ser sempre os primeiros. Nisto consiste o vosso verdadeiro ponto de honra, nisto está a vossa mais nobre precedência.
“Generosa adesão aos preceitos da doutrina e da vida cristã: Estes são iguais para todos, pois não há duas verdades nem duas leis: ricos e pobres, grandes e pequenos, elevados e humildes, todos são igualmente obrigados a submeter seu intelecto pela Fé no mesmo dogma, e a sua vontade pela obediência à mesma Moral. Porém, o justo juízo de Deus será muito mais severo para com aqueles que mais receberam, que estão em melhores condições de conhecer a única doutrina, e de a pôr em prática na vida quotidiana, que com seu exemplo e com sua autoridade podem mais facilmente dirigir os outros no caminho da justiça e da salvação, ou perdê-los nas funestas sendas da incredulidade e do pecado” (1949).
Estas últimas palavras mostram que o Pontífice não admite uma nobreza ou uma elite tradicional que não seja efetiva e abnegadamente apostólica. A nobreza sem ideais, aburguesada, é um cadáver de nobreza.
• Perenidade das elites tradicionais
Como folhas mortas, caem ao chão, ao sopro da Revolução, os elementos mortos do passado. A nobreza, entretanto, pode e deve sobreviver por que tem uma razão de ser permanente: “O sopro impetuoso dos novos tempos arrasta em seu vórtice as tradições do passado. Mas com isso vem ele mostrar mais claramente o que está destinado a cair como folhas mortas, e o que, pelo contrário, por força de sua vida interior, tende a manter-se e consolidar-se.
“Uma nobreza e um patriciado que, por assim dizer, se anquilosassem na saudade dos tempos idos, se votariam a um inevitável declínio.
“Hoje mais do que nunca sois chamados a ser uma “elite”, não somente de sangue e de nascença, mas ainda mais de obras e sacrifícios, de realizações criadoras no seio de toda a comunidade social.
“E isto não é somente um dever do homem e do cidadão, ao qual ninguém se pode subtrair impunemente. É também um mandamento sagrado da Fé que herdastes de vossos pais, e que deveis, como eles, deixar intacta e íntegra a vossos descendentes.
“Rejeitai, pois, de vossas fileiras todo abatimento e toda pusilanimidade: todo abatimento em face de uma evolução que faz desaparecer consigo muitas coisas estabelecidas em épocas precedentes; toda pusilanimidade à vista dos graves acontecimentos que acompanham as revoluções atuais.
“Ser romano significa ser forte para agir, mas também para sofrer.
“Ser cristão significa ir ao encontro das penas e das provas com uma coragem, uma força e uma serenidade, que vão haurir na fonte das esperanças eternas o antídoto contra todo desespero humano. A palavra altiva de Horácio tem um grande alcance humano: “Si fractus illabatur orbis, impavidum ferient ruinae” (Odes, V, 3). Mas, principalmente, mais belo, mais confiante, mais arrebatador é o brado de vitória que se desprende dos lábios cristãos e dos corações transbordantes de fé: “Non confundar in aeternum” (Te Deum )” (1951).
E o apostolado específico de nobreza e elites tradicionais continua a ser dos mais importantes.
• A virtude cristã, essência da nobreza
“Levantai os olhos, e fixai-os firmemente no ideal cristão. Todas estas agitações, evoluções ou revoluções o deixam intacto, e nada existe que possa prevalecer contra o que é a própria essência da autêntica nobreza, isto é a nobreza que aspira à perfeição cristã, que o Redentor enunciou no Sermão da Montanha. Fidelidade incondicional à doutrina católica, a Cristo e à sua Igreja; capacidade e vontade de ser modelo e guia para os demais. Dai ao mundo dos que tem fé e praticam a Religião o espetáculo de uma vida conjugal irrepreensível, a edificação de um lar doméstico verdadeiramente exemplar” (1952). E logo após isto o Santo Padre estimula a nobreza a uma santa intransigência: “Oponde um dique a toda infiltração, em vossas casas e vossos ambientes, dos princípios mortais, das condescendências ou tolerâncias perniciosas, que poderiam contaminar ou ofuscar a pureza do matrimônio ou da família. Eis aqui certamente um empreendimento insigne e santo, bem capaz de excitar só por si o zelo da nobreza romana e cristã de nossos tempos”... (1952).
“Bem pode ser que um ou outro pormenor da presente ordem de coisas vos desagrade; mas no interesse e pelo amor do bem comum, para a salvação da civilização cristã nesta crise que, longe de se atenuar, parece que vai aumentando, permanecei firmes na brecha, e na vanguarda. Vossas qualidades especiais podem a todo momento ser utilmente empregadas na luta. Vossos nomes, que por certo tem ecos no passado remoto, na história da Igreja e da sociedade civil, trazem à memória figuras de grandes homens e fazem ouvir a grave voz que vos lembra o dever de serdes dignos deles” (1952).
• A aristocracia e sua missão junto aos pobres
O caráter educativo e o caráter caritativo da ação das elites tradicionais vem admiravelmente descrito, respectivamente, nestes dois tópicos: “Mas, como todo rico patrimônio, também este traz consigo graves deveres, deveres esses tanto mais graves quanto mais ele é rico. São dois, principalmente:
“1º) O dever de não desperdiçar tais tesouros, de os transmitir intactos, ou mais, se possível, acrescidos, aos que virão depois de vós; de resistir portanto à tentação de não ver neles senão um meio de vida mais fácil, mais agradável, mais requintada, mais refinada;
“2º) O dever de não reservar só para vós aqueles bens, mas de fazer aproveitar largamente deles os que foram menos favorecidos pela Providência. - A nobreza da beneficência e da virtude, queridos filhos e filhas, foi, essa também, conquistada pelos vossos antepassados, e são disso testemunho os monumentos e as casas, os hospícios, os asilos, os hospitais de Roma, onde seus nomes e suas lembranças falam de sua segura e vigilante bondade para com os desventurados e os necessitados. Bem sabemos que no Patriciado e na Nobreza Romana jamais escassearam, quanto as faculdades de cada um o permitiram, esta glória e esta emulação para o bem. Mas nesta hora de preocupações, na qual o céu está turvado por noites de vigília e inquietação, vossa alma - enquanto conserva nobremente uma seriedade, ou melhor, uma austeridade de vida que exclui toda leviandade e todo frívolo prazer, incompatíveis, para todo coração elevado, com o espetáculo de tantos sofrimentos - sente, ainda mais vívido, o impulso da operosa caridade que vos impele a aumentar e multiplicar os méritos por vós já adquiridos no alívio das misérias e da pobreza humana” (1941).
A história é feita principalmente pelas elites. Por isto é que, se a ação da nobreza cristã foi altamente benfazeja, a paganização da nobreza foi o ponto de partida da crise contemporânea: “Convém todavia recordar que tal caminho para a incredulidade e a irreligião teve seu ponto de irradiação, não em baixo, mas no alto, quer dizer, nas classes dirigentes, nas esferas elevadas, na nobreza, nos pensadores e filósofos. Não temos em vista falar aqui – notai bem – de toda a nobreza, e muito menos da nobreza Romana, a qual largamente se distinguiu pela sua fidelidade para com a Igreja e para com esta Sé Apostólica – e as eloquentes e filiais expressões que acabamos de ouvir são disto nova e luminosa prova – mas da nobreza européia em geral. Não se nota porventura nos últimos séculos, no Ocidente cristão, uma evolução espiritual que, por assim dizer, horizontal e verticalmente, em largura e profundidade, sempre mais vinha demolindo e solapando a fé, levando àquela ruína que apresentam hoje multidões de homens sem Religião ou hostis à Religião, ou ao menos animados e transviados por íntimo e fementido ceticismo para com o sobrenatural e o Cristianismo?
“Na vanguarda desta evolução esteve a assim chamada Reforma protestante, em cujas convulsões e guerras grande parte da nobreza européia se separou da Igreja Católica e Lhe espoliou os bens. Mas a incredulidade difundiu-se propriamente nos tempos que precederam a Revolução francesa. Os historiadores notam que o ateísmo, mesmo sob o verniz de deísmo, se propagara então rapidamente na alta sociedade da França e de outros lugares: acreditar em Deus Criador e Redentor tornara-se, naquele mundo entregue a todos os prazeres sensuais, coisa ridícula e não condizente com espíritos cultos e ávidos de novidades e progresso. Na maior parte dos “salões” das maiores e mais requintadas damas, onde se agitavam os mais árduos problemas de Religião, filosofia e política, literatos e filósofos, fautores de teorias subversivas, eram considerados como o mais belo e procurado ornamento daquelas reuniões mundanas. A impiedade era moda na alta sociedade, e os escritores mais em voga em seus ataques à Religião teriam sido menos audaciosos se não tivessem tido o apoio e instigação da sociedade mais elegante. Não que a nobreza e os filósofos se propusessem todos e diretamente como finalidade a descristianização das massas. Pelo contrário, a Religião deveria permanecer para o povo simples como meio de governo em mãos do Estado. Eles porém se sentiam e se achavam superiores à Fé e a seus preceitos morais: política esta que logo se demonstrou funesta e de curta visão, mesmo para quem a considerasse sob aspecto puramente psicológico. Em rigor da lógica, o povo, poderoso no bem e terrível no mal, sabe tirar as consequências práticas de suas observações e julgamentos, certos ou falsos. Tomai em mãos a história da civilização nos últimos dois séculos: ela vos patenteia e demonstra que danos para a fé e os costumes do povo foram produzidos pelo exemplo que procede do alto, pela frivolidade religiosa das classes elevadas, e pela aberta luta intelectual contra a verdade revelada” (1943).
• Formação das elites, chave de cúpula do apostolado
Tanto se fala hoje do apostolado das massas. Mas cumpre não ser unilateral. Agir junto às elites é indispensável: “Ora, o que convém deduzir desses ensinamentos da história? Que hoje a salvação deve vir daqueles de quem a perversão teve sua origem. Em si não é difícil manter no povo a Religião e costumes sadios, quando as classes altas caminham em sua dianteira com seu bom exemplo e criam condições públicas que não tornem desmedidamente pesada a formação da vida cristã, mas a façam imitável e doce. Porventura não é essa a vossa função, diletos filhos e filhas, que pela nobreza de vossas famílias e pelos cargos que não raras vezes ocupais, pertenceis às classes dirigentes? A grande missão que vos toca, e convosco a não poucos outros – ou seja, de começar pela reforma ou aperfeiçoamento da
vida particular, em vós mesmos e em vossa casa, e de vos esforçardes, cada um em seu lugar e de seu lado, por fazer surgir uma ordem cristã na vida pública – não permite dilação ou demora. Missão esta nobilíssima e rica de promessas num momento em que, como reação contra o materialismo devastador e aviltante, se vem revelando nas massas uma nova sede de valores espirituais, e contra a incredulidade uma pronunciadíssima receptividade nas almas para as coisas religiosas; manifestações estas que deixam esperar que afinal tenha sido superado definitivamente o ponto mais profundo da decadência espiritual. Cabe-vos, pois, a glória de colaborar com a luz e a atração do bom exemplo, que suba além de toda mediocridade, não menos do que com as obras, a fim de que aquelas iniciativas e aspirações de bem religioso e social sejam conduzidas a feliz termo” (1943).
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Estamos certos, ao concluir a publicação desta coletânea de textos de incomparável sabedoria, de que sua leitura aumentará o amor e a admiração pelo Pontífice imortal que hoje governa a Igreja. Eles mostram aos nobres a missão das elites, e ao povo a razão de ser das classes tradicionais, atuando em favor de uma mútua compreensão, fundamento da paz social que Pio XII tanto deseja.
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
Dignidade e recato de ontem, despudor e trivialidade de hoje
Plinio Corrêa de Oliveira
Cenas da "belle époque". Na primeira, ao fundo, um edifício a um tempo harmonioso e grave. Sai dele um longo cortejo de moças graciosamente trajadas. E, à frente, cingindo uma coroa e revestida de manto de arminho, uma dama que alia à formosura pessoal, a elegância, a riqueza e o recato da indumentária. Ela dá a mão direita a um personagem de aspecto grave, compenetrado da importância de sua função, em rigoroso traje de gala: casaca, cartola, condecorações.
De que se trata? De uma cena de aparato em alguma das pequenas e brilhantes cortes principescas, tão numerosas em 1909, data da fotografia?
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Todo o centro da outra gravura é tomado pela mesma dama, que acaba de entrar num elegante landau, e se apresta a sentar-se para partir. Serve-a um cocheiro de cartola e libré. Um ar de importância e seriedade se nota no semblante dos circunstantes, que são visivelmente personagens oficiais do mundo político e militar. Mais uma vez a fotografia não fornece elementos definidos para se ajuizar se se trata de um aspecto de vida de corte.
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Por fim, um terceiro clichê. Junto a grades aristocráticas cujos portais estão acolhedoramente abertos, notamos ao centro a mesma dama, o mesmo cavalheiro que na outra fotografia lhe dava a mão, alguns militares, e vários personagens protocolarmente vestidos, de cartola e casaca. Bem ao fundo, um poste coroado com um escudo encimado por uma coroa, no qual se lê a letra B. Num plano mais próximo um carro de linhas extremamente imaginosas, com um arco igualmente de linhas bizarras, no alto do qual há uma coroa.
E ainda uma vez formulamos ao leitor nossa pergunta: trata-se de uma cena de corte?
Tudo indicaria que sim, mas de uma pequena corte um tanto fantasista ( vejam-se as linhas singulares do carro ) e rústica ( note-se algo de inautêntico, de postiço, nos personagens de casaca, que têm muito de petit bougeois ). A dama é vistosa e desembaraçada. Ter-se-ia alguma dificuldade em afirmar que ela é propriamente aristocrática. Matizes e pormenores que um observador arguto pode notar, mas que passam inteiramente desapercebidos para a maioria.
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De que se trata então? Toda esta seriedade, esta solenidade, este protocolo são para festejar a "rainha" da bonneterie em Troyes. Esta cidade, antiga capital da Champagne, tinha no início do século, com seus 50 ou 60 mil habitantes, uma importância muito secundária e procurava manter-se incentivando as indústrias locais, das quais a bonneterie era uma das mais apreciadas. A coroação desta "rainha" serviu de ocasião para festejos brilhantes, próprios a chamar a atenção da imprensa e dos turistas, de forma a fazer propaganda do produto. Daí a colaboração das autoridades. As gravuras representam o instante em que a "rainha" se retira do paço municipal de Troyes, onde acaba de ser coroada ( fotografia nº 2 ), sua chegada ao palácio da Prefeitura do Departamento do Aube ( foto nº 3 ), sua saída depois de feita a visita ao Prefeito ( foto nº 1 ).
A que propósito tudo isto? Para que compreendamos, ou melhor, apalpemos quanto o mundo vem perdendo sua seriedade, ao longo deste século apalhaçado e tormentoso. Em 1909 era assim que se apresentava uma "rainha" de moda ou de beleza, em suas "poses" destinadas à grande publicidade. Hoje... o número de tais "rainhas" cresceu imensamente, mas as "poses" mais apreciadas pela multidão são tais, que nem sequer ousamos fazer uma comparação!
Mas o tema se presta também a outra observação. Quando um costume é perigoso, por mais "austero" ou "inocente" que ele se apresente de início, na realidade todo o seu dinamismo tende para ir abandonando gradualmente as formas corretas e os atavios distintos, para se mostrar em sua essência sensual e chula. Assim começaram estas "rainhas" de propaganda e fancaria. O que diriam esses senhores de casaca - modestas notabilidadezinhas pequeno-burguesas de Troyes em 1909 - se vissem o modo por que geralmente se apresentam hoje as "descendentes" ou sucessoras das "rainhas" de seu tempo?