Deus parece ter predestinado certas paisagens a servir de moldura harmoniosa para as grandes ações dos homens. O panorama da Espanha, rico em aspectos de uma austeridade e um heroísmo empolgantes, bem serve de teatro à história esplendidamente combativa e fecunda do grande povo espanhol. Nossa gravura mostra o Monte Serrai visto da gruta de Manresa.
Menendez y Pelayo e a vocação da Espanha
“Martelo de Hereges, Luz de Trento, Linhagem de Santo Inácio
Cunha Alvarenga
No dia 3 do passado mês de novembro transcorreu o centenário do nascimento de Menendez y Pelayo, aquele que foi, "durante trinta anos, o Custódio e o paladino da cultura espanhola, o arquivo e como que a consciência suprema da nacionalidade, no tempo e no espaço, através de todos os séculos e estendida a todos os territórios e latitudes que estiveram um dia sob o cetro de seus Reis ou receberam a herança ideal das raças e idiomas peninsulares" (Santos Oliver).
Nos limites impostos a esta crônica não seria possível apreciar devidamente a gigantesca obra do autor da "Historia de las Ideas Estéticas en Espana". Unindo-nos às homenagens que o mundo intelectual católico presta a tão insigne pensador, queremos fazer ressaltar em primeiro lugar o épico das gestas castelhanas, aquele que soube, com mão de mestre, apontar ao desorientado homem contemporâneo as verdadeiras bases da grandeza e da unidade da Espanha, que hão de ser também os fundamentos da grandeza e da unidade do Ocidente cristão e mesmo de todo orbe.
Vamos encontrar a substância do pensamento de Menendez y Pelayo a respeito da reestruturação desse mundo melhor pelo qual anseiam os homens de boa vontade, em um livro que é característico de toda a sua obra de intelectual católico: a "Historia de los Heterodoxos Españoles".
Para que todos sejam um
Antes da dominação romana, era a península ibérica um conglomerado inorgânico de tribos esparsas que nem pela natureza do solo, nem pela raça, nem pelo caráter pareciam destinadas a formar uma grande nação. Roma é que lhes proporciona unidade de língua, unidade legislativa, unidade política.
Mas falta outra unidade mais profunda, diz Menendez y Pelayo: "a unidade da crença. Só por ela adquire um povo vida própria e consciência de sua força unânime; só nela se legitimam e enraizam suas instituições; só por ela corre a seiva da vida até os últimos ramos do tronco social. Sem um mesmo Deus, sem um mesmo altar, sem os mesmos sacrifícios; sem que se julguem todos filhos do mesmo Pai e regenerados por um Sacramento comum; sem que vejam visível sobre suas cabeças a proteção do alto; sem que cada qual a sinta cada dia em seus filhos, em sua casa, em seus bens, em seu torrão natal; sem que creia que este mesmo favor do Céu que verte o tesouro da chuva sobre seus campos, bendiz também o laço jurídico que ele estabelece com seus irmãos, e consagra, com o óleo da justiça, o poder que ele delega para o bem da comunidade, e cinge com o cíngulo da fortaleza o guerreiro que luta contra o inimigo da Fé ou o invasor estranho, — que povo haverá grande e forte? Que povo ousará arrojar-se com a fé e alento da juventude à torrente dos séculos?" (Historia de los Heterodoxos Españoles, Emece Edif., B. Aires, 1954, tomo VII, pag. 555/556).
Esta unidade foi dada à Espanha pelo Cristianismo. Mas a unidade que nos traz o Cristianismo se baseia na verdade. Somente a verdade é que nos há de libertar e unir. Que verdade será essa? A que o Verbo Eterno trouxe a este mundo. A Verdade que só a Santa Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo proporciona aos povos. A manutenção dessa unidade da Espanha se explica portanto pelo zelo ardente com que seu povo sempre procurou se livrar de qualquer forma de heterodoxia. E a Espanha só será a verdadeira e autêntica Espanha na medida em que souber manter essa tradição de pugnacidade em favor da ortodoxia.
A lógica da verdade e do bem
Daqui se depreende a importância da tarefa que se propôs Menendez y Pelayo, logo no início de sua longa vida intelectual, ao encetar a "História dos Heterodoxos Espanhóis".
De três modos poderia ser abordado o tema, diz o autor em "Discurso Preliminar": 1o — Em tom de indiferença absoluta, sem apreciar o valor das doutrinas, ou aplicando-lhes a regra de um juízo vacilante com ares de imparcialidade. 2o — Com critério heterodoxo, protestante ou racionalista. 3o — Com o critério da ortodoxia católica.
Ora, tal história "não deve ser escrita com essa indiferença que se jacta de imparcialidade, porque este critério só pode aplicar-se (e com grandes dificuldades) a uma narração de feitos externos, de batalhas, de negociações diplomáticas ou de conquistas (e mesmo estas, em seus efeitos, não em suas causas): nunca a uma história de doutrinas e de livros, em que a crítica há de decidir-se necessariamente pelo bem ou pelo mal, pela luz ou pelas trevas, pela verdade ou pelo erro, submeter-se a um princípio, e julgar com ordem a cada um dos casos particulares. E desde o momento em que faz isto, perde o escritor aquela imparcialidade estrita de que blasonam muitos e que muito poucos observam, e entra forçosamente em um dos termos do dilema: ou julga com o critério que chamo heterodoxo, e que pode ser protestante ou racionalista segundo se aceite ou não a Revelação, ou humilha (bendita humilhação!) sua cabeça ao jugo da verdade católica, e dela recebe luz e guia em suas investigações e em seus juízos" (obra cit., tomo 1, pag. 90).
Ademais, acrescenta Menedez y Pelayo, “sou católico e como católico afirmo a Providencia, a Revelação, o livre arbítrio, a lei moral, bases de toda história. E se a história que escrevo é de idéias religiosas, e estas idéias se chocam com as minhas e com a doutrina da Igreja, que hei de fazer senão condená-las? De acordo com as regras da lógica e da lei a que obedece o homem honrado e crente sincero, tenho obrigação de fazê-lo" (obra cit., tomo I, pag. 91).
Passam, assim, diante de nossos olhos os variados lances da luta em que se empenhou o povo espanhol contra o arianismo, contra o priscilianismo, contra o milenarismo, contra o panteísmo árabe, contra o maniqueísmo medieval, contra o protestantismo, contra o iluminismo maçônico. Exibe-nos o autor toda uma sinistra galeria de heresiarcas, de apóstatas, de judaizantes, de mouriscos, de magos, de bruxos, de agitadores que descem às camadas populares e de doutores do erro que ascendem às cátedras universitárias.
Resistência ortodoxa
Ao se ocupar do combate ao protestantismo, mostra Menendez y Pelayo como a heresia foi sempre impopular nessa nação que palmo a palmo recuperou dos mouros a unidade e a independência perdidas. "Nós (os espanhóis), que havíamos extirpado da Europa o fatalismo maometano, podíamos abrir as portas à doutrina do servo arbítrio e da fé sem as obras? E para que tudo fosse hostil à Reforma no meio-dia da Europa, até o sentimento artístico clamava contra a barbárie iconoclasta" (obra cit., tomo, 1 pag. 94).
Nem por isso se pense que a erradicação da heresia de Lutero foi coisa fácil em terras da Espanha. O perigo foi grande, mesmo porque entre os homens arrastados pelo protestantismo alguns houve ali temíveis por seus conhecimentos, por seu prestigio e influência. Mas caíram todos no olvido, pois não foram intérpretes da raça. Do próprio ponto de vista literário as obras dos sectários reformistas foram fracas e medíocres. "Yes que la lengua de Castilla no se forjó para decir herejías" (obra cit., tomo 1, pag. 95).
Não faltam os semeadores de cizânia na Espanha, como em outros lugares. A heterodoxia espanhola oferece, porém, apenas nomes obscuros, sem ressonância popular. "Nenhuma dessas doutrinas malogradas, nem as que ainda vivem e têm voga e prosélitos, logrará subtrair-se à inevitável morte que na Espanha ameaça a toda doutrina repugnante ao princípio de nossa cultura, à mica salis que jaz no fundo de todas as nossas instituições e crenças" (obra cit., tomo 1, pag. 97).
O escritor acatólico não poderá atinar com a razão de ser dos insucessos de todas as heresias, superstições e impiedades em solo espanhol. "A história dos heterodoxos só deve ser escrita em sentido católico, e só no Catolicismo pode encontrar o princípio de unidade que há de resplandecer em toda obra humana. Precisamente porque o dogma católico é o eixo de nossa cultura, e católicas são nossa filosofia, nossa arte, e todas as manifestações do princípio civilizador em suma, não têm prevalecido as correntes de doutrinas errôneas, e nenhuma heresia nasceu em nossa terra, ainda que todas hajam passado por ela para que se cumpra o que disse o Apóstolo: Oportet haereses esse" (obra cit., tomo 1, pag. 97/98).
E se as houve, é conveniente estudá-las, "para que, conhecida sua filiação e história, não deslumbrem aos incautos quando apareçam remoçadas em rico traje e atavios juvenis" (ibid.).
A missão histórica da Espanha
A fortaleza espanhola sofre, há dois séculos, os embates que as forças sectárias contra ela dirigem para ali implantar a revolução iluminista e igualitária. Já em seu tempo assinalava Menendez y Pelayo que "o espírito católico, vivo ainda na multidão dos campos, vem desfalecendo nas cidades; e ainda que não sejam muitos os livre-pensadores espanhóis, bem pode afirmar-se deles que são da pior casta de ímpios que se conhece no mundo, porque (a não estar demente como os sofistas de cátedra) o espanhol que deixou de ser católico é incapaz de crer em coisa alguma, a não ser na onipotência de um certo senso comum e prático, o mais das vezes pesado, egoísta e grosseiríssimo" (tomo VII, pag. 559).
Para que a Espanha corresponda ao seu papel providencial no Ocidente cristão, há de se deixar guiar por aquele princípio unificador que a fez "evangelizadora da metade do orbe... martelo de hereges, luz de Trento, espada de Roma, linhagem de Santo Inácio... Esta é nossa grandeza e nossa unidade: não temos outra. No dia em que acabar de perdê-la, a Espanha voltará à fragmentação do tempo dos arevacos e dos vetões ou dos reis de Taifas" (tomo VII, pag. 558).
Que melhor homenagem podemos prestar ao grande campeão da ortodoxia, do que lembrar essas sabias diretrizes, saídas de sua pena privilegiada, para a salvação da pátria dos heróis da Reconquista?
VERDADES ESQUECIDAS
A compaixão não exclui a severidade
De uma carta do então Cardeal Patriarca de Veneza, depois São Pio X, dirigida em 16 de junho de 1894 a Mons. João Santalena, Professor do Seminário de Treviso:
Grato por sua atenciosa carta que me informa de uma das fanfarronadas desse singular Dom Finetto, que pensa assustar os outros com as caretas que se usam para meter medo às crianças,... Daria vontade de rir, se não desse raiva, esse vaidoso que se crê vítima de perseguições injustas quando ninguém lhe tocou em um fio de cabelo, e que ao mesmo tempo ostenta com pomposa altivez a desonra de sua inqualificável conduta: faz guerra aos Sacerdotes de sua terra, semeia discórdias, escreve notas em jornalecos que é preciso pegar com pinças para não ficar enlameado, e paga com a ingratidão a seus próprios benfeitores. Sim, ele que escreva a Roma, que não quero outra coisa, e quando me pedirem informações lhes direi e provarei de que individuo se trata.
Na primeira ocasião beije por mim a mão do Sr. Bispo, e, se lhe parecer conveniente, diga-lhe também que fez muito bem em nem sequer responder a esse Sr., que não merece mais do que a compaixão universal. ("San Pio X — Cartas" — tradução de José Ma. Javierre — Juan Flors Editor, Espanha, 1954 — carta no 158, pag. 201).