Ruínas de um castelo medieval, que apresentam significados bem diversos conforme os olhos com que são vistas. Para uns, símbolo, ainda cheio de expressão, de princípios imperecíveis. Para outros, restos irremediavelmente mortos de um passado que o curso dos tempos varreu da face da terra. — Distinguir em ambas estas concepções o que nada haver de verdadeiro e de falso, compreender que houve na Idade Média muito de contingente e de perecível, que era secundaria em face dos valores eternos que ela firmou, eis a posição intelectual que Pio XII recomenda, mas poucos estudiosos sabem manter.

A PROPÓSITO DA IDÉIA DE NOBREZA

Celso da Costa Carvalho Vidigal

Uma das tarefas em que os liberais se empenharam desde o século XVIII, no seu furor igualitário, foi a de propositadamente confundir certas noções históricas, de maneira a fazer crer que na época em que as aristocracias governavam as nações foram os homens sempre oprimidos; os liberais manipularam a história a fim de que nas escolas e universidades tão se aprendesse ter sido característico da Idade Média o fato de, muito mais que nos dias de hoje, os governantes estarem próximos de seus governados e estes serem bem atendidos em suas necessidades, não só materiais, como principalmente espirituais. A crítica histórica hodierna já conseguiu pôr a nu várias das invencionices que no século passado chegaram a ser quase universalmente aceitas. Podemos generalizar aqui a observação de Augusto Dumas a propósito da fábula do terror do ano mil: "Sobre o fundamento de alguns fatos que acabamos de relatar, a imaginação dos historiadores se exaltou. Progressivamente, do século XVI ao XIX, eles bordaram a lenda dos terrores do ano mil: os últimos, românticos como Michelet e Henri Martin, souberam fazer dela uma descrição colorida e apaixonante. Depois, outros historiadores, menos brilhantes, mas dotados de espírito crítico, retraçaram o desenvolvimento daquela lenda: faltaria marcar cada etapa pelos termos musicais que usa Don Basilio para mostrar a marcha da calúnia" ("L'Eglise au pouvoir des laiques (888-1057)" — "Histoire de l'Eglise" — A. Fliche e V. Martin). Essa observação de um autor abalizado vale para nos prevenir contra quase todos os manuais de história adotados em nossos colégios: os fatos são ali escamoteados, mal contados, ou inventados.

Fruto dos erros históricos aludidos são certos preconceitos relativos a questões das mais importantes. Entre esses preconceitos se encontra o que diz respeito à nobreza: tanto a idéia histórica de nobreza como a sua idéia abstrata, esta por causa daquela, sofreram uma profunda deformação na pena dos pensadores liberais, com prejuízo de espíritos retos e alheios às tramas anticatólicas, que seriam naturalmente propensos a estimar a verdadeira noção de aristocracia. Por se tratar de um conceito de grande relevância na formação de um pensamento político e social católico, queremos tecer algumas considerações a seu respeito.

Claro está que não pretendemos afirmar que todo pais deva ter a forma aristocrática de governo. Mas estas considerações nos parecem úteis também para outras formas.

Ninguém ignora que, mesmo nas monarquias puras, e nas democracias, não há nação que se mantenha sem elites solidas e pujantes.

Ora, em sua alocução de 1946 à nobreza romana, o Pontífice gloriosamente reinante disse que até nas democracias dignas deste nome deve haver instituições com um autêntico tônus aristocrático (cfr. "Catolicismo", n° 64, p. 4 ).

Entre estas instituições devem estar, evidentemente, e muito na primeira linha, as elites.

De onde se segue que uma exata conceituação do que chamaríamos o espírito de nobreza, interessa a todos os países, qualquer que seja sua forma de governo.

Seria difícil fazer um esquema da organização social e política da Idade Média. Difícil porque nada havia naquela organização de exclusivamente preconcebido; os homens não se amoldavam a constituições cerebrinas como as dos Estados modernos: cada nação se regia por uma lei básica inteiramente peculiar, nascida organicamente e sujeita a transformações com o correr do tempo. Isso fazia com que a constituição estivesse permanentemente em dia com o desenvolvimento social.

Não obstante, pode-se dizer que a sociedade medieval se estratificava em três categorias ou estados: Clero, nobreza e povo.

O Clero compreendia não somente os que haviam recebido Ordens, mas também, genericamente, todos aqueles que a Igreja reconhecia terem feito profissão de servi-La.

Constituíam o povo os que não eram Clérigos nem nobres: pouco define, pois, esta palavra. Burgueses e camponeses, comerciantes e artesãos, em toda a profusa variedade de suas atividades e artes, formam um todo que a assembléia dos Estados Gerais de 1789 denominou "Terceiro Estado": "le Tiers", um número que não diz nada.

Nobres eram todos aqueles investidos de autoridade política vitalícia, desde o Imperador do Sacro Império até o menor dos "hobereaux"; nobres eram seus filhos e suas famílias. O plebeu devia a seu senhor um imposto, destinado a custear sua própria defesa e a de seus bens. É que originariamente se fizera um contrato entre ambos. O senhor, proprietário primitivo da terra, cedia-a, e se comprometia a defendê-la contra as pilhagens dos vizinhos e dos invasores; o plebeu se sujeitava a pagar em compensação uma certa taxa, que era lançada sobre as colheitas ou sobre a própria terra. Dentro desse sistema era natural que a nobreza se dedicasse à arte de fazer a guerra: o próprio contrato que vigorava entre ela e o povo a obrigava a isso.

Tratando da nobreza medieval, não podemos calar o papel que teve a Religião Católica no aprimoramento dessa categoria social. Falar de nobreza e, mais geralmente, falar de sociedade medieval, sem falar da Igreja, é o mesmo que estudar o ser humano excluindo a idéia de alma. A Igreja, alma da sociedade medieval, é que incutiu na nobreza as virtudes que fizeram sua gloria. A virtude da fidelidade, por exemplo, não teria sido cultivada como o foi, se a doutrina católica não condenasse os perjuros e os ameaçasse com a eterna condenação. Graças a isso, nunca os homens viveram tanto em função da palavra empenhada como naquela época, e nunca os felões foram tão desprezados e castigados. Se a autoridade dos suseranos foi tão respeitada por seus vassalos, é porque o vínculo de vassalagem se constituía em virtude de um juramento de fidelidade, cujo rompimento infringia gravemente o 8° Mandamento.

É sabido que o grande instrumento da Igreja no aprimoramento da nobreza foi a instituição da Cavalaria, que merece um estudo à parte. Entre outras obrigações, tinham seus membros a de proteger os pobres, as viúvas e os órfãos, e onde houvesse ofensa a seus direitos lá estavam cavaleiros a protestar, e a exigir que os bens usurpados fossem restituídos, os prejuízos reparados. Até então o mundo não vira soldados fazerem profissão de defender os fracos.

Virtude nobre acima de todas é a do heroísmo. Acostumada à rapidez indispensável aos lances guerreiros, soube a nobreza medieval se adestrar nessa virtude, que leva o homem a se lançar decididamente contra as dificuldades, mesmo as imprevistas, tendo em mira a consecução do fim último. Esse heroísmo explica a prontidão com que a Europa inteira atendeu ao chamado dos Papas para combater os infiéis que dominavam os Lugares Santos.

Tocamos aqui no ponto em que melhor se verifica a tempera da nobreza na Idade Média: as Cruzadas, ou melhor, a Cruzada. Sim, porque houve uma só Cruzada, na qual se destacam várias expedições maiores. E pode-se dizer que foi um movimento que dominou o ambiente europeu desde o seu lançamento pelo Bem-aventurado Papa Urbano II, em fins do século XI, até a morte do cruzado São Luís IX, Rei da França, na segunda metade do século XIII. Esse movimento provinha de um espírito de fé muito profundo, mas também supunha um certo grau de desinteresse por amor a uma causa justa, para o qual estava particularmente preparada essa aristocracia acostumada ao sacrifício de si mesma.

É importante considerar que foram a Cruzada e a Reforma Gregoriana que deram vitalidade à Igreja e à Cristandade durante os justamente chamados séculos de fé, e que o inicio da decadência da civilização medieval pode ser assinalado pela cessação daqueles dois movimentos. Não é menos importante assinalar que tanto num como noutro a nobreza teve parte saliente.

O que restou da idéia medieval de nobreza? Com o advento das monarquias absolutas, a nobreza foi perdendo aos poucos o esplendor de sua atividade social; as sucessivas revoluções que, à imitação da Revolução francesa, abalaram o mundo cristão, privaram-na praticamente de toda função dirigente de natureza política. Não obstante, ela poderia ainda, se tivesse alento para isso, continuar a ocupar a direção social da Cristandade, o que lhe facultaria o retorno à direção política. Porém, cansadas de carregar a Cruz de Cristo já antes da Revolução, as famílias nobres que se conservaram até os dias de hoje não mantêm em geral aquela união à Igreja que caracterizou seus ancestrais. E por isso não se pode mais falar em nobreza no sentido de categoria ou estado, que a palavra possuía na Idade Média. Hoje em dia há homens e famílias que merecem ser tratados como nobres pelo fato de descenderem dos que outrora regeram os destinos do mundo cristão. E esses nobres fazem jus a nosso maior ou menor respeito na medida em que correspondem àquilo que a atualidade espera deles em dedicação à causa da Igreja e da verdadeira cultura católica. É o que os discursos do Santo Padre Pio XII à nobreza romana deixaram bem claro (cf. "Catolicismo", n°s 63, 64 e 65).

Ora, se hoje não existe mais nobreza — categoria de homens — mas apenas pessoas ou famílias das quais se pode afirmar que são nobres, dir-se-á que já não é possível recompor uma sociedade aristocrática, por isso mesmo que falta com que preencher um dos quadros essenciais dessa sociedade. Vai nisso um engano.

O que caracteriza a nobreza é o fato de ter como virtude própria o devotamento desinteressado, levado até o heroísmo, a uma causa reta. Em uma época como a nossa, na qual todas as desordens são aplaudidas, é unicamente da adesão fiel de um certo número de pessoas à causa da Igreja e da civilização cristã que pode resultar a restauração da sociedade. Essas pessoas, que podem estar em todos os degraus da hierarquia social, devem pois se esmerar no cultivo daquela virtude própria à nobreza. Onde falta o chefe designado surge organicamente o chefe natural: este já estava formado interiormente para ocupar o lugar. No ardor de uma batalha, ao sucumbir o oficial que comanda um pelotão, o soldado que o substitui é o comandante: naturalmente ele já possuía antes a disposição interior para enfrentar o momento crítico e superá-lo.

A civilização cristã está em crise. Essa crise faz suspeitar, às vezes, uma misteriosa gestação. Talvez, quando as portas do inferno parecerem prevalecer, seja o momento em que, iniciando enfim um caminho inverso ao que vem trilhando, o mundo veja raiar a aurora de uma nova civilização. Então, por toda a parte deve haver homens que naturalmente assumirão a direção da sociedade. A Providência Divina tem suas vias. Cumpre aos católicos preparar-se interiormente para atender os seus supremos desígnios.


VERDADES ESQUECIDAS

OBRIGAÇÃO SEMPRE GRAVE DENUNCIAR OS HEREGES

Proposição "condenada e proibida, pelo menos como escandalosa", por decreto do Papa Alexandre VII, de 24 de setembro de 1665:

Embora te conste evidentemente que Pedro é herege, não estás obrigado a denunciá-lo se não o puderes provar. (Denzinger 1105).