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O QUE É A TOLERÂNCIA

Plinio Corrêa de Oliveira

Loth e suas filhas fogem de Sodoma, incendiada pela cólera divina (mosaico do séc. XII, Catedral de Monreale, Itália).

Magnífico exemplo da intolerância final de Deus, que não quis deixar subsistir aquele antro de abominações. Magnífico exemplo, também, de intolerância do varão justo, que nada quis de comum com os vícios de sua pátria, e por isso foi poupado no dia da ira (2 Ped. 2, 6-8). A mulher de Loth, pelo contrário, representa a tolerância viciosa. Afetivamente, conservou um apego desordenado à sua cidade, no próprio momento em que a abandonava. Manifestou assim uma complacência para com o mal, do qual no entanto fugia. Deus a imobilizou em sua atitude insensata, para eterna lição dos que quisessem servir a dois senhores.

Em matéria de tolerância, mais do que em qualquer outra talvez, a confusão reina tão completamente, que parece indispensável esclarecer o alcance dos termos, antes de abordar o mérito da questão.

O que é precisamente a tolerância?

Imagine-se a situação de um homem que tem dois filhos, um de princípios sãos e vontade forte, e outro de princípios indecisos e vontade vacilante. Aparece de passagem, no lugar em que a família reside, um professor que dará um curso de férias extraordinariamente útil a ambos. O pai deseja que seus filhos sigam o curso, mas vê que isto implicará em privá-los de vários passeios aos quais ambos estão muito apegados. Pesados os prós e os contras, fixa ele seu juízo sobre o assunto: mais convém a seus filhos renunciar a algumas distrações, aliás muito legítimas, do que perder uma ocasião rara de se desenvolverem intelectualmente. Significada a deliberação aos interessados, a atitude destes varia. O primeiro, depois de um momento de relutância, acede à vontade paterna. O outro se lamenta, implora, suplica ao pai que mude de resolução, dá mostras tais de irritação, que um grave movimento de revolta de sua parte é de se temer.

Diante disto, o pai mantém sua decisão quanto ao filho bom. Mas, considerando o que custa ao filho medíocre o esforço da rotina escolar, prevendo as muitas ocasiões de atrito que na vida diária surgem nas relações entre ambos, para a eventual salvaguarda de princípios morais impostergáveis julga melhor não insistir. E consente em que o filho não faça o curso.

Agindo assim com o filho medíocre e tíbio, o pai lhe deu uma permissão a contragosto. Uma permissão que não é de modo algum uma aprovação. Uma permissão que lhe foi como que extorquida. Para evitar um mal (a tensão com o filho), consentiu ele num bem menor (as excursões de férias), e desistiu de um bem maior (o curso). É a este tipo de consentimento, dado sem aprovação, e até com censura, que se chama tolerância.

Claro está que, às vezes, a tolerância é o consentimento, não em um bem menor para evitar um mal, mas em um mal menor para evitar um maior. Seria o caso de um pai que, tendo um filho que contraiu vários vícios graves, e posto na impossibilidade de os fazer cessar todos, forma o projeto de os combater sucessivamente. Assim, enquanto procura obstar a um vício, fecha os olhos aos demais. Este fechar de olhos, que é um consentimento dado com profundo desgosto, visa evitar um mal maior, isto é que a emenda moral do filho se torne impossível. Trata-se caracteristicamente de uma atitude de tolerância.

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Como acabamos de ver, a tolerância só pode ser praticada em situações anormais. Se não houvesse maus filhos, por exemplo, não haveria necessidade de tolerância da parte dos pais.

Assim, numa família, quanto mais os membros forem forçados a praticar a tolerância entre si, tanto mais a situação será anômala.

Sente-se muito a realidade do que aqui está dito, considerando-se o caso de uma ordem religiosa ou um exército em que os chefes ou superiores tenham de usar habitualmente de uma tolerância sem limites com seus subordinados. Tal exército não está apto a ganhar batalhas. Tal ordem não está caminhando para os altos e rudes cimos da perfeição cristã.

Em outros termos, a tolerância pode ser uma virtude. Mas é virtude característica das situações anômalas, periclitantes, difíceis. Ela é, por assim dizer, a cruz de cada dia do católico fervoroso, nas épocas de desolação, decadência espiritual e ruína da civilização cristã.

Por isto mesmo, compreende-se que seja tão necessária em um século de catástrofe, como o nosso. A todo momento, o católico se encontra, em nossos dias, na contingência de tolerar algo: no bonde, no ônibus, na rua, nos lugares em que trabalha, nas casas em que faz visitas, nos hotéis em que veraneia, ele encontra a todo instante abusos que lhe provocam um brado interior de indignação. Brado que é por vezes obrigado a sopitar para evitar mal maior. Brado que, entretanto, em ocasiões normais seria um dever de honra e coerência.

De passagem, é curioso fazer observar a contradição em que caem os adoradores deste século. De um lado, elevam enfaticamente às nuvens suas qualidades, e silenciam ou subestimam seus defeitos. De outro, não cessam de apostrofar os católicos intolerantes, suplicando tolerância em favor do século. E não se cansam de afirmar que essa tolerância deve ser constante, onímoda e extrema. Não se compreende como não percebem a contradição em que se põem. Pois só há tolerância na anomalia, e proclamar a necessidade de muita tolerância é afirmar a existência de muita anomalia.

De qualquer maneira, gregos e troianos estão concordes em reconhecer que a tolerância em nossa época é muito necessária.

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Nestas condições, é fácil perceber quanto anda errado o linguajar corrente a respeito da tolerância.

Com efeito, habitualmente se empresta a este vocábulo um sentido elogioso. Quando se diz de alguém que é tolerante, esta afirmação vem acompanhada de uma série de louvores implícitos ou explícitos: grande alma, grande coração, espírito largo, generoso, compreensivo, naturalmente propenso à simpatia, à cordura, à benevolência. E, como é lógico, o qualificativo de intolerante também traz consigo uma seqüela de censuras mais ou menos explícitas: espírito estreito, temperamento bilioso, malévolo, espontaneamente inclinado a desconfiar, odiar, ressentir-se e vingar-se.

Na realidade, nada é mais unilateral. Pois, se há casos em que a tolerância é um bem, outros há em que é um mal. E pode chegar a ser um crime. Assim, ninguém merece encômio pelo fato de ser sistematicamente tolerante ou intolerante, mas por ser uma ou outra coisa conforme o exigem as circunstâncias.

O problema se desloca, pois. Não se trata de saber se alguém pode ou deve ser tolerante, ou intolerante, por sistema. Importa, isto sim, indagar quando se deve ser uma ou outra coisa.

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Antes de tudo cumpre ressaltar que há uma situação na qual o católico tem de ser sempre intolerante. E esta regra não admite conformes. É quando se deseja que, para comprazer a outros, ou para evitar algum mal maior, ele pratique algum pecado. Pois todo pecado é uma ofensa a Deus. E é absurdo pensar que em alguma situação Deus possa ser virtuosamente ofendido.

É isto tão óbvio, que pareceria supérfluo dizê-lo. Entretanto, na prática, quantas vezes seria necessário lembrar este princípio.

Assim, por exemplo, ninguém tem o direito de, por tolerância com amigos, e

(continua)