Que nos conste, ainda não foi feito o estudo exaustivo sobre o que se poderia chamar, com todas as cautelas que a perigosa expressão comporta, a "modernidade" de S. João Bosco. De fato, poucos homem da Igreja tiveram em tão alto grau a noção das transformações por que vinha passando a sociedade, e do alcance que essas transformações, boas ou más, teriam no futuro. Em face do imenso processo histórico que presenciava, tomou S. João Bosco uma atitude muito profunda e viva, criando um estilo de apostolado popular, ao mesmo tempo muito atual e absolutamente isento de qualquer fermento revolucionário. Especialmente, sua atitude na questão social se caracterizou por ser profundamente religiosa, sem descurar embora os problemas materiais. A pedagogia de D. Bosco não se condensa em itens. É sobretudo um espírito. O mesmo se deve dizer de sua sociologia. Nela encontraremos o caminho para compreender o que seria uma sociedade autenticamente cristã, vista em seus aspectos populares. Coisa muito diversa do humanismo proletarizante e laico sonhado por Jacques Maritain.
O HUMANISMO INTEGRAL I
Pe. A. Messineo, S. J.
O Revmo. Pe. A. Messineo, atualmente uma das figuras de maior projeção da Companhia de Jesus, publicou recentemente na conhecida revista romana "Civiltà Cattolica" uma série de estudos sobre o Historicismo Progressista, o Providencialismo Progressista, e o Humanismo Integral. Nestes artigos, notáveis por sua acuidade de vistas e lucidez de pensamento, o ilustre filho de Santo Inácio descreve e analisa importantes desvios doutrinários encontrados nos escritos de líderes católicos, intelectuais e homens de ação.
Desses trabalhos do Revmo. Pe. A. Messineo, S. J., o último, por tratar ex professo da "questão Maritain", sempre tão atual no Brasil, será por nós traduzido na integra, diretamente do texto italiano.
A vigorosa e penetrante análise do autor põe a lume com notável precisão muitos pontos vulneráveis da doutrina do Sr. Jacques Maritain. Nossos leitores, que tomaram conhecimento recentemente do autorizadíssimo pronunciamento do Venerando Episcopado Argentino, em Pastoral Coletiva, sobre o mesmo assunto ("Catolicismo", no 73, p. 3), terão real proveito em ler o artigo do Revmo. Pe. A. Messineo, S. J. Vamos reproduzi-lo em três números sucessivos.
O humanismo verdadeiro e genuíno só pode ser um. Foi o que se demonstrou no artigo precedente (publicado na "Civiltà Cattolica", sob o título "L'umanesimo e gli umanesimi"), acrescentando que uma concepção do homem e da vida a que caiba o nome de humanismo deve estar apoiada sobre os dados fornecidos pela observação experimental, vivificados e interpretados pela reflexão racional, a cujas conclusões no plano da natureza o pensamento cristão juntará depois as realidades transcendentes e os valores divinos, conhecidos mediante a Revelação. Ter-se-á assim o humanismo cristão, visão integral do homem, que da natureza se estende à sobrenatureza.
Um sistema de humanismo, no campo-especificamente católico, foi construído pelo filosofo francês Jacques Maritain, Suas linhas foram expostas num volume sob o titulo expressivo de "Humanismo Integral", e depois mantidas em sucessivas publicações menores. Não nos parece fora de propósito expor e examinar tal sistema, não somente por causa da ousadia de sua formulação filosófica e de suas conclusões, mas também porque não poucos vêm nele um ponto de referência ao qual procuram ajustar seu modo de conceber a vida social. Principiemos, pois, a expô-lo por um conceito que julgamos fundamental.
Trata-se do conceito de história, em que se percebem evidentes influxos da teoria bergsoniana sobre a evolução criadora. O discípulo não esqueceu o mestre. Segundo Maritain, de fato, a história consiste num processo evolutivo incessante, que se desenvolve, sem nunca estar sujeito a retrocessos ou a ciclos involutivos, através de etapas sucessivas, em cada uma das quais a humanidade alcança novas conquistas, mesmo que aparentemente, à superfície, possa parecer que atravessa um período de decadência ideológica e moral. No plano real da história todo extravio inclui sempre algum aspecto positivo; até mesmo o erro leva implícita uma afirmação em sua própria negação ( I ).
A história, como desenvolvimento humano, é particularmente marcada por uma consciência reflexa sempre mais profunda, que o homem vai adquirindo lenta e progressivamente nas várias épocas, ou, de acordo com a expressão desse filósofo, a história avança através de sucessivas e sempre mais claras "tomadas de consciência". Encontra ele a demonstração desta proposição fundamental para seu sistema humanista no estudo comparativo das várias etapas por que passaram tanto a especulação filosófica quanto a atitude do pensamento em face dos problemas da religião, do homem e da liberdade.
Ponto morto, de onde se desencadearia o processo evolutivo rumo às sucessivas tornada de consciência, seria a Idade Média, época em que o homem teria olvidado completamente a si mesmo, não refletindo sobre sua natureza e as suas exigências, porque teria estado absorvido em Deus e se teria dedicado com todas às forças à realização de seu reino sobre a terra (2). A Idade Média é, na classificação de Maritain, inteiramente ao contrário de uma época reflexa, a representante de um pensamento objetivo, que não se inclinou para o sujeito, e ao qual escapou o significado importante da subjetividade. Para convencer-nos de quanto seja de tendência pouco objetiva esta apreciação do pensamento medieval e de sua atitude para com os problemas humanos, bastará compulsar rapidamente a Summa de São Tomás e a especulação de seu mestre, Alberto Magno, com os quais a antropologia alcançou cumes bem luminosos, não somente no que se refere à ordem sobrenatural, mas também no plano da pesquisa natural, psicológica, moral e jurídica do sujeito humano. Por amor ao conceito evolutivo da história e ao seu suposto progresso através de sucessivos aprofundamentos da consciência subjetiva, deformou-se, com uma visão unilateral, a verdadeira alma medieval, que, se foi vibrante de Fé, e pela Fé criou monumentos imortais, não foi em nada estranha à vida e às realidades terrenas.
Entretanto, Maritain não se perturba por causa destas suas simplificações no descrever as épocas históricas, e prossegue em seu estudo comparativo. A história não dorme nem se detém. Com seus abalos obriga o homem a despertar e a tornar consciência de si mesmo. O primeiro abalo, que é também uma primeira conquista na auto-reflexão, lhe é dado pela Reforma protestante, que teve o mérito, embora sob o véu do pessimismo, de fazê-lo compreender o valor da iniciativa humana com respeito à vida terrena e de tê-lo assim orientado — com a doutrina da predestinação, que nega o uso da liberdade — para a procura da prosperidade material. Não devem falsear as perspectivas da história, essencialmente dirigida para novas aquisições, os aspectos negativos da Reforma, pois nesta a reabilitação do homem e a tomada de consciência estariam implícitas no seu contrário, ou seja, nas próprias negações da liberdade e do valor intrínseco dos atos humanos em ordem à salvação (3).
Na verdade, o salto da Idade Média para a Reforma é muito amplo. Entre estas duas margens afastadas se coloca o humanismo renascentista, ao qual, como se disse noutro lugar, a interpretação corrente atribui a descoberta do homem e a nova orientação rumo às realidades terrenas. Não é fácil entender porque terá sido negligenciada por nosso escritor esta etapa importante da evolução do pensamento humano, com a qual se abre a Época Contemporânea. Depois, observe-se bem o paradoxo contido na afirmação de que, na negação da liberdade e do valor dos atos humanos, estaria contido o aspecto positivo da reabilitação do homem. Na antítese, portanto, se conteria implícita a tese; no erro, a verdade; no determinismo da predestinação, a liberdade. E, no entanto, a filosofia de Maritain não se fundamenta na dialética de Hegel, de onde a dificuldade de enquadrar essas afirmações de sabor dialético no seu sistema filosófico; nem acreditamos que seu historicismo possa ser reduzido ao sistema idealista de Benedetto Croce, da síntese dos contrários. Semelhanças externas, certamente, mas que fazem pensar.
Com a teologia antropocêntrica mitigada, continua ele, da qual Molina seria o paladino e o tipo mais representativo, a tomada de consciência viria atingir um grau de maior profundidade. Nessa concepção — expõe Maritain, esquematizando a seu próprio modo, e modo sem dúvida inexato, um movimento ideológico e doutrinário identificado por características muito diferentes das que lhe são gratuitamente emprestadas — o homem reclama na ordem do bem e da salvação uma parte de iniciativa primaria, em oposição às épocas precedentes, em particular a medieval, que lhe atribuíam somente uma iniciativa secundaria. Deus e o homem seriam representados como duas causas às quais competiria uma parte do ato. O homem do humanismo antropocêntrico disputaria assim o terreno a Deus, reclamando para si uma parcela de iniciativa primaria na sua posição ( 4),
Com relação ao problema da liberdade, a mesma teologia teria considerado a graça como simples frontispício que coroa a natureza, à qual é reconhecido poder de tornar-se perfeita por virtude própria, de modo que a graça não teria outra função e efeito senão o de dar um verniz de sobrenatural a atos que a razão do homem honesto poderia praticar com perfeita retidão. Afastaria muito do assunto fazer notar como cada proposição contida na descrição delineada não corresponde à objetividade histórica e é uma patente deformação dela, um fruto da reconstrução fantasista de um pensamento que afirmou o oposto daquilo que Maritain lhe atribui. Já houve quem tenha colocado em seus devidos termos tal questão, sobre a qual não é o caso de nos determos. A nós nos interessa ver como a história, mesmo neste período, realiza suas conquistas.
O homem, diz-nos Maritain, não obstante a falsa concepção da teologia antropocêntrica, progrediu na consciência reflexa de si mesmo enquanto se afirmou como centro de atividade, atribuiu à natureza um valor autônomo, e conferiu à sua liberdade um campo de ação mais amplo na formação de atos naturalmente perfeitos, que a graça depois cobrirá com seu verniz (5 ).
A partir das posições atingidas com a teologia humanista mitigada era fácil passar para as sustentadas pela teologia humanista absoluta. Isto foi realizado pelo pensamento agnóstico contemporâneo, nas muitas formas em que se apresentou. Bastou abater o frontispício da graça para chegar a um humanismo total e obter uma afirmação mais ampla da liberdade, com uma correspondente tomada de consciência ainda mais profunda que a das épocas precedentes (6). Estas manifestações graduais não deram nenhum desmentido à lei evolutiva da história, formulada por Maritain, visto ele nos assegurar que, apesar de não poder o humanismo absoluto ser definido como verdadeiro humanismo, sob seu influxo ter-se-ia verificado uma gradual descoberta prática da dignidade daquilo que está oculto no mistério do ser humano (7). Da época medieval, caracterizada por sua atitude ingênua, falha de consciência reflexa, passou-se, por sucessivas aquisições, à reflexiva época contemporânea, na qual a consciência teria finalmente apreendido todo o valor oculto da natureza humana.
Até, observando-se bem, a história é de tal modo progressiva, que o erro, os desvios conceptuais, a recusa da Revelação, o positivismo, o racionalismo, o agnosticismo, o próprio materialismo, não só não teriam sustado a avançada retilínea em direção ao aprofundamento da autoconsciência, mas teriam sido estimuladores do progresso, teriam leva do a inteligência a curvar-se sobre si mesma, com a consequente descoberta dos valores humanos. Não obstante os erros, assevera Maritain, verificaram-se importantes conquistas visando um humanismo consciente (8). Não escapará, pois, ao leitor como, segundo o desenvolvimento por ele traçado, o humanismo total só teria sido atingido nos Tempos Modernos, quando o pensamento, uma vez abatido o frontispício da graça, se desligou inteiramente do transcendente. O que quereria dizer, se não erramos ao deduzir a consequência implícita nas premissas, que, enquanto o pensamento ligou entre si o temporal e o transcendente, a natureza e a sobrenatureza, a razão e a Revelação, em síntese de valores terrenos e ultraterrenos, enquanto isso, aconteceu, o humanismo total não foi conquistado. A sua conquista só se fez possível quando a síntese foi desagregada pelo racionalismo agnóstico e pelo subjetivismo antropocêntrico.
Não se pretende com isto insinuar que Maritain aprove as tendências agnósticas do pensamento contemporâneo, pois ele até critica as atitudes do humanismo absoluto. Porém, não se pode deixar de ficar muito perplexo diante de seu quadro histórico, não só em virtude das pinceladas de estilo futurista que o tornam incompreensível ao cultor sério da história, mas principalmente porque ele exclui, na pratica, o Cristianismo e sua mensagem das causas que conduziram o homem ao aprofundamento de sua interioridade. De fato, o homem medieval seria um homem alienado em Deus, para empregar um termo usado por Marx, e enquanto alienado em Deus não se teria curvado sobre si mesmo, para conhecer a própria natureza e o próprio valor. As chamadas tomadas de consciência, pelas quais ficariam caracterizadas as épocas históricas, se teriam, pelo contrário, verificado com o progressivo resvalamento das concepções sobre a vida e o mundo para um naturalismo sempre mais desligado da ordem transcendente, até o vértice atingido pelo chamado humanismo absoluto, agnóstico, subjetivista e incréu. Julgue o leitor se nossas perplexidades têm justificativa ou não.
"Umanesimo integrale", Roma, 1946, p. 114. Cfr. tambem: "Du régime temporel et de la liberté", Paris, 1933, p. 98: "Christianisme et démocratie", Paris, 1943, pp. 19-20. (2) "Umanesimo integrale", ed. cit., p. 18 e ss. (3) Ibidem, p. 23 e ss. "Du régime temporel", ed. cit., p. 103 e ss. (4) "Umanesimo integrale", ed. cit., p. 25. (5) Ibidem, p. 27. (6) Ibidem, pp. 25-30. (7) Ibidem, p. 30. (8) Ibidem, p. 30.
VERDADES ESQUECIDAS
"O QUE SE ESFORÇAM POR ENCOBRIR, CONVÉM MANIFESTÁ-LO"
Santo Atanásio
Da "Apologética":
Estes hereges (os arianos), assim como ousam tudo, nada omitem para demonstrar-nos sua sevicia e crueldade. E sua vida é tal, que não se podem imaginar maldades tão grandes que eles, sem a menor vergonha, não as cometam muito maiores. Assim, Leôncio, a quem o herege Constâncio (o Imperador) considera Bispo, acusado de torpe contubérnio, fugiu com a maior imprudência, sem disfarçar e sem temor algum da execração. Narciso cometeu tamanhos crimes, que teve de ser execrado por três vezes em diversos Sínodos. Sergio, Padre ímpio embora tenha assumido o episcopado, foi execrado no Concilio de Sardica. E têm isto de singular estes hereges que, vivendo na mais manifesta intemperança, não se afrontam, mas antes coonestam seus crimes e emulam uns aos outros em suas maldades. E esta é a maldade comum a todos eles, rebelar-se contra Cristo; e por isto se chamam, não mais cristãos, mas arianos; e isso que se esforçam por encobrir, convém manifestá-lo. (Migne, P. G., XXV, 643-87, apud "Joyas de los Santos Padres", Pe. Guillermo Ubillos, S. J., ediç. E. Subirana, Barcelona, 1925, p. 48).