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SÃO GREGORIO VII

DEPOSTO PELO PAPA, O IMPERADOR FOI A CANOSSA; PERDOADO, INVADIU ROMA

(continuação)

a legítimos representantes de São Pedro.

Os legados, tanto temporários como permanentes, foram os principais executores da reforma empreendida pelo Santo. Em contacto continuo e estreito com ele, movimentando-se e trabalhando sempre sob a sua mais estrita vigilância, convocando Concílios, depondo Bispos, excomungando, asseguraram eles o prestígio da autoridade apostólica, e mostraram à Cristandade que a Igreja se opõe ao mundo e que quem segue as máximas deste não é bom servidor daquela.

DESCALÇO NA NEVE, O MAIS PODEROSO DOS REIS PEDE PERDÃO AO PAPA

Das afirmações contidas no "Dictatus Papae" se deduzia que o Pontífice Romano está colocado acima do Imperador e de todos os Reis e Príncipes, e que essa superioridade não é limitada ao domínio simplesmente eclesiástico, pois que traz consigo sanções de ordem temporal. Valeria a pena um estudo mais desenvolvido da doutrina gregoriana sobre as relações entre Igreja e Estado, mas isto nos afastaria de nosso tema. Lembraremos aqui, apenas, um documento em que o grande reformador resume seu pensamento: "Se a Santa Sé, em virtude do poder que lhe foi confiado por Deus, pode conhecer das coisas espirituais, por que não conhecerá também dos negócios do século?... Se os Clérigos, quando é preciso, são julgados, por que os seculares não serão repreendidos, eles também, por suas más ações?"

Em virtude das idéias que professavam o Papa Gregório VII e o Imperador Henrique IV, era fatal que um dia ocorresse um conflito entre ambos.

O Imperador, simoníaco, provendo as Dioceses com Bispos também simoníacos, não cuidava do bem da Igreja, mas tão só de satisfazer suas ambições de dominá-la. Entendia que a Igreja devia se submeter ao Império e ser tutelada por este.

A ruptura entre os dois, adiada que fora pela atitude inicialmente conciliatória do Papa, tornou-se iminente quando Henrique IV interveio em uma questão surgida a propósito da eleição do Bispo de Milão. Desprezando a nomeação de Roma, o Imperador fez um seu apaniguado usurpar a cátedra de Santo Ambrosio. Relativamente a essa atitude, o Papa enviou uma severa admoestação ao Príncipe alemão. Este retrucou reunindo em Worms uma assembléia de Bispos que declarou deposto o Pontífice. Tomando conhecimento desse ato de rebeldia, São Gregório VII imediatamente proclamou a interdição de Henrique IV para governar seus domínios da Alemanha e da Itália, desligou todos os seus súditos do juramento de fidelidade que lhe haviam feito e, por fim, excomungou-o.

Em consequência dessas medidas de energia, a situação de Henrique IV ficou insustentável, mesmo na Alemanha. Os Bispos que o haviam acompanhado em Worms, voltaram atrás. Os senhores temporais se sublevaram. O Imperador viu-se diante da alternativa de perder o trono ou retratar-se publicamente. A história descreve a cena passada em Canossa, no castelo de Matilde, Condessa da Toscana, onde se encontrava o Papa, juntamente com seus conselheiros e amigos. Em pleno inverno, por três dias o Príncipe deposto permaneceu às portas do castelo, os pés descalços como penitente, a implorar o perdão. Durante três dias o Pontífice resistiu ao que ele sabia ser mais uma impostura de seu antagonista; por fim teve que ceder, provavelmente porque percebeu que seus próprios íntimos se tinham deixado iludir pela atitude do Rei da Alemanha: com isso, a recusa do perdão poderia parecer-lhes falta de caridade e levá-los a vacilar na confiança que depositavam no Santo, o que significaria a morte do movimento reformador. Sem levantar a proibição de que os súditos do Império voltassem a considerar Henrique como seu soberano, Gregório absolveu-o da excomunhão

MORRENDO DERROTADO E NO EXILIO, SÃO GREGORIO VII FOI UM VENCEDOR

Henrique, aliviado do peso da excomunhão, voltou para a Alemanha e, infringindo todos os juramentos que fizera para conseguir o perdão, logrou recuperar ali o terreno perdido. O episódio de Canossa passou-se em janeiro de 1077. Depois de prolongada e prudente espera, São Gregório VII, no Concilio da Quaresma de 1080, reitera a sentença de deposição.

O Rei não se intimida dessa vez; consegue a adesão de parte do Episcopado alemão e elege um anti-papa na pessoa do Bispo de Ravena, que adota o nome de Clemente III. Durante os anos que se seguem, o Imperador tenta tomar Roma, e, finalmente o consegue em março de 1084. São Gregório VII é sitiado no Castelo de Santo Ângelo, mas dois meses depois uma invasão normanda força a retirada das tropas imperiais. Entretanto, os vencedores saqueiam Roma e o Papa se vê na contingência de abandonar a Cidade Eterna. Depois de várias mudanças, fixa-se em Salerno, e ali morre a 25 de maio de 1085.

Considerando-se as coisas de um ponto de vista simplesmente humano, pode-se dizer que São Gregório VII havia fracassado. Morrendo no exílio, com a cidade de Roma dominada pelo anti-papa que seu principal adversário ali havia instalado, com a Igreja ainda minada pelos maus costumes e pela insubmissão dos Padres e dos Bispos, humanamente não havia esperança de ver frutificar a árvore da reforma que o santo Pontífice tinha plantado. Mas as lágrimas que ele derramara na sua agonia de exilado, e a cruz que carregara, viriam em breve fecundar o solo estéril e ácido que se negava a produzir. O passo mais importante fora dado, o Imperador se humilhara ante o Vigário de Jesus Cristo, e os Papas posteriores souberam defender os princípios que Gregório havia enunciado e defendido. Os senhores temporais tiveram que se defrontar dali por diante com uma nau cujo rumo já estava definido e cujo timoneiro sabia como se conservar nele. O século que se seguiu à morte do Santo viu consumar-se a luta que este havia iniciado, com a vitória da parte mais sadia da Igreja. Roma passou a dirigir os destinos da civilização ocidental, e os homens souberam corresponder ao apelo a uma vida mais cristã, que lhes era lançado do alto do trono pontifício. São Gregório VII não se deixou deslumbrar nem um instante pelos atrativos de uma glória terrena efêmera e por isso Deus lhe reservou uma glória eterna que pode ser medida através dos sucessos felizes que decorreram de sua atividade apostólica.

(1) O primeiro artigo desta série de dois foi publicado no número anterior, sob o título de "São Gregório VII - Prudência e força na luta pela liberdade da Igreja".


VERBA TUA MANENT IN AETERNUM

• Onde a Religião é herança viva, os homens concebem como uma cruzada a luta contra o inimigo

PIO XII: Os pretensos realistas não gostam de reconhecer a verdade de tal afirmação (de terem de defender valores fundamentais que não encontram sua subsistência senão na Religião e em Deus) e, pelo contrário, fazem dela pretexto para acusar ainda mais a Religião de transformar em luta religiosa o que não passaria de uma dificuldade do campo político e econômico. Eles pintam a cores vivas o terror e a crueldade das antigas guerras de religião para fazer crer que os conflitos atuais entre Ocidente e Oriente são, em oposição, inofensivos, e que bastaria um pouco mais de senso prático de parte a parte para alcançar a tranquilidade de interesses econômicos e de relações concretas de poderio político. Fazer apelo a valores absolutos falseia — dizem eles — de modo funesto, o estado real das coisas, ateia as paixões e torna mais difícil o encaminhamento para uma união prática e razoável.

Quanto a Nós, na qualidade de Chefe da Igreja, temos evitado no caso presente, como em anteriores, conclamar a Cristandade a uma cruzada. Podemos contudo pedir que se compreenda bem o fato de que, lá onde a Religião é uma herança viva dos antepassados, os homens concebem como uma cruzada a luta que lhes é injustamente imposta pelo inimigo. — (Rádio mensagem do Natal de 1956).

• Células essenciais da sociedade que asseguram a liberdade e são intangíveis

PIO XII: A segurança! A aspiração mais viva dos homens de hoje! Eles a pedem à sociedade e às suas leis. Mas os pretensos realistas deste século demonstraram que não estavam em condições de proporcioná-la, precisamente porque querem substituir-se ao Criador e fazer-se árbitros da ordem da criação.

A Religião, e a realidade do passado, ensinam, pelo contrário, que as estruturas sociais, como o casamento e a família, a comunidade e as corporações profissionais, a união social na propriedade pessoal, são células essenciais que asseguram a liberdade do homem, e, com isto, seu papel na história. Elas são, pois, intangíveis e sua substancia não pode ser submetida a revisão arbitraria. — (Rádio mensagem do Natal de 1956).

• Na vida dos próprios Estados os pecados e a graça desempenham papel capital

PIO XII: Procura-se remediar a esse estado de coisas (desaparecimento, no povo, do sentido da verdadeira realidade do homem, da consciência da dignidade da natureza humana e de seus limites) pondo em execução grandes reformas institucionais, desmedidas por vezes, ou baseadas em fundamentos errôneos; mas a reforma das instituições não é tão urgente quanto a dos costumes. E esta, por sua vez, não pode ser realizada senão sobre a base da verdadeira realidade do homem, aquela que se aprende com religiosa humildade diante do berço de Belém. Na vida dos próprios Estados a força e a fraqueza moral dos homens, os pecados e a graça, desempenham um papel capital. A política do século XX não o pode ignorar, nem admitir que se persista no erro de querer separar o Estado da Religião em nome de um laicismo que os fatos não puderam justificar. — (Rádiomensagem do Natal de 1956).

• Exige o progresso que a sociedade se constitua e governe sem definir-se ante a Religião?

PIO IX: Sabeis muito bem, Veneráveis Irmãos, que em nossos dias não poucos há que, aplicando à sociedade civil o ímpio e absurdo naturalismo, se atrevem a ensinar "que a melhor forma de vida pública e o progresso civil exigem absolutamente que a sociedade humana seja constituída e governada sem ter em nenhuma conta a Religião, como se ela não existisse, ou, pelo menos, sem fazer distinção alguma entre a Religião verdadeira e as falsas".

... Portanto, todas e cada uma das perversas opiniões e doutrinas expressamente mencionadas nas presentes Letras, Nós, por Nossa Autoridade Apostólica, as reprovamos, proscrevemos e condenamos, e queremos e ordenamos que todos os filhos da Igreja Católica as tenham por absolutamente reprovadas, proscritas e condenadas. - (Encíclica "Quanta Cura", de 8-XII-1864).


OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX

“VIVA PIO IX, PONTÍFICE E REI!”

Fernando Furquim de Almeida

Como vimos, depois de proclamado o dogma da infalibilidade a maioria dos bispos se retirou de Roma, com licença do Papa. A guerra entre a França e a Alemanha exigia a presença dos pastores em suas dioceses, e por outro lado o Concílio não podia continuar normalmente os seus trabalhos, dada a agitação política provocada em Roma pelo governo do Piemonte. Este, à medida que se patenteava a inferioridade do exército francês diante dos alemães, redobrava de audácia, não mais escondendo seu propósito de invadir o que restava dos Estados Pontifícios e conquistar Roma, a fim de torná-la a capital da Itália unificada.

Uma das glórias dos católicos franceses no século XIX foi justamente a defesa intransigente do poder temporal do Papa. Os Estados da Igreja eram protegidos por tropas francesas, que se mantinham em Roma apesar de Napoleão III desejar a unificação da Itália, e de muitas vezes ter auxiliado os revolucionários. É que a opinião católica não permitia ao Imperador retirá-las, obrigando-o mesmo a conter o Piemonte em suas pretensões sacrílegas. A derrota da França tirava assim ao Papa o seu maior sustentáculo, e, como era natural, disso se prevalecia o governo de Vítor Emanuel para completar a obra do "risorgimento".

Aliás, todo o progresso da revolução italiana se deu com o auxílio de Napoleão III, ou então nos períodos em que, em conflito com outros países, o governo imperial encontrava nisso um pretexto para cruzar os braços. Em 1860, logo depois da guerra entre a França e a Áustria, ocorreram os primeiros atentados contra os territórios pontifícios. A Santa Sé perdeu algumas províncias, e Pio IX, alarmado, resolveu formar um exército próprio, para se defender. Nomeou pró-ministro da guerra Mons. Xavier de Mérode, antigo soldado e filho de uma família principesca belga de grande tradição militar; para comandante, escolheu o General Lamoricière, que se cobriria de glórias na Argélia a serviço da França; e abriu o alistamento para voluntários de todos os países.

Além do comandante e do chefe do Estado Maior, Conde Georges de Pimodan, numerosos franceses atenderam com generosidade ao apelo de Pio IX. Juntamente com os belgas, formaram eles um batalhão que os italianos denominaram zuavos pontifícios. Destes, a maior parte pertencia à nobreza francesa, e muitos usavam grandes nomes como Guiche, Chevreuse, Ligne, etc. Também acorreram os filhos de heróis da Vendéia: entre os zuavos viam-se quatro Charettes (o Barão Atanásio de Charette se notabilizaria no serviço do Papa) e um descendente de Cathelineau. Os ultramontanos eram representados sobretudo por dois de Maistre.

Os zuavos sentiam-se dominados por grande entusiasmo. Todos tinham consciência da nobreza da causa que defendiam, e sua generosidade podia ser comparada à dos antigos cruzados, seus antepassados. Um projeto, que infelizmente não foi adiante, manifesta o espírito que os animava: Cathelineau propôs a formação de uma nova Ordem religiosa e militar, de caráter internacional — a Ordem de São Pedro — cujo grito de guerra seria "São Pedro, São Pedro!", e cuja bandeira levaria a imagem da Virgem Santíssima e uma cruz invertida, em homenagem ao Apóstolo que foi assim crucificado.

O governo do Piemonte percebeu que devia impedir a todo custo que esse exército acabasse de se organizar. Sob o pretexto de que precisava atravessar os Estados da Igreja para combater uma revolta em Nápoles, o General Fanti enviou um ultimato a Lamoricière, e logo em seguida, com forças muito superiores em número, atacou as tropas pontifícias em Castelgandolfo. Os zuavos resistiram heroicamente, e só se retiraram quando a superioridade numérica do inimigo tornou inútil a continuação da luta.

Napoleão III, que também se inquietara com a formação da milícia papal, voltou logo a proteger a Santa Sé e a conter o Piemonte. Não obstante, Pio IX não dissolveu seu exército, limitando-se a retardar o ritmo inicial dos trabalhos de sua constituição. Foram essas tropas que, ainda em 1866, comandadas pelo general Kanzler, bateram Garibaldi em Mentana.

Em 1870, em virtude da guerra com a Alemanha, a França retirou os soldados que mantinha em Roma. Imediatamente após a derrota imperial na batalha de Sedan, o Conde Ponza de San Martino foi enviado a Roma pelo Rei Vítor Emanuel, para tentar convencer o Papa de que as tropas italianas precisavam entrar na Cidade Eterna, a fim de proteger a Santa Sé. Energicamente repelida essa proposta cínica, o General Cadorna recebeu ordem de atacar os Estados Pontifícios. A 20 de setembro seus soldados ocupavam Roma, defendida simbolicamente pelo General Kanzler, a quem Pio IX ordenara que se rendesse nos primeiros momentos da luta, para evitar um inútil derramamento de sangue.

Segundo a capitulação assinada pelo General Kanzler, o exército pontifício, com exceção da guarda palatina, deveria se dissolver e abandonar Roma. Essas três guardas ficavam para proteger a pessoa do Pontífice.

Antes de se retirarem, os zuavos quiseram prestar ainda uma homenagem a Pio IX. Às sete horas da manhã do dia 21 de setembro, diante da tropa formada, seu comandante, o General Allete, erguendo o seu sabre, exclamou: "Viva Pio IX, Pontífice e Rei!"; ao que os soldados responderam "Viva Pio IX!", ao mesmo tempo que descarregavam para o ar suas armas e agitavam os quepes. O Papa, emocionado, precisou ser amparado pelos prelados que o rodeavam.

Até o último momento os católicos franceses afirmavam sua fidelidade, e com esse ato deixavam bem claro que se retiravam em obediência ao Vigário de Cristo.

Pio IX protestou solenemente contra a ocupação de Roma, e se constituiu prisioneiro no Vaticano. A unificação italiana estava concluída, e até o Tratado de Latrão os Papas se conservaram encerrados em seu Palácio, como manifestação de que não se conformaram com a usurpação sacrílega de 1870.


NOVA ET VETERA

DIVISÃO DOS CATÓLICOS

J. de Azeredo Santos

Diante de um lema tão desagradável, qual seja este da divisão dos católicos, variam as opiniões e as atitudes. Há os que se situam no mundo da lua: não suspeitam de que nem tudo corre de modo excelente no melhor estado de coisas possível, e dificilmente admitirão a existência de algo capaz de os tirar dessa embaladora euforia. Outros percebem a triste realidade, mas, por comodismo e falso amor à paz, fecham os olhos ao que lhes aparece a cada passo com toda a evidência. Vêm depois aqueles que reconhecem abertamente a cisão existente entre os católicos, mas a condenam, ora de modo parcial e faccioso, ferindo só os defensores da verdade, ora de modo indiscriminado, assumindo uma dúbia terceira posição em nome de argumentos tais como os seguintes: em vez de se unirem na comum tarefa de combater os inimigos da Igreja, os católicos dispersam preciosos esforços em questiúnculas de campanário! Nossos adversários se riem dessas pugnas estéreis! Como podem falar em caridade esses que se mostram tão aferrados a seus pequeninos pontos de vista?

Onde aparecem os "mestres" carismáticos

Enfim, podemos citar aqueles que enfrentam o problema com objetividade, procurando investigar-lhe as causas de modo corajoso, inteligente e justo. É o que acontece com o escritor francês Marcel Clément no estudo que, sob o título de "Les conditions de l'unité des catholiques de France", vem de dar à publicidade na revista "Itineraires", de Paris (número de janeiro de 1957, pp. 20 a 39). Vamos resumir para nossos leitores as idéias mestras desse trabalho.

Os católicos franceses se acham divididos desde a Revolução, desde o "Ralliement", desde a "Action Française" e o "Sillon". Apontando a primeira causa dessa cisão, diz o autor de "L'Economie Sociale selon Pie XII" ser "abominável que nós, católicos, sejamos mais fiéis aos homens que ao Homem-Deus, a mestres da terra mais que ao único Mestre da Verdade e a seu Vigário sobre a terra".

Uma primeira obrigação, portanto, se impõe para chegar à almejada unidade: "Renunciar a esses mestres, como tais, cessar de tomá-los como pontos de referência absolutos, tal é a primeira etapa a vencer".

Ademais, acrescenta Marcel Clément, é também abominável "que nós, católicos, sejamos mais fiéis ás nossas idéias que ao ensinamento do Pai Comum. Não mais se trata aqui, de nossos mestres. Mas dos frutos que seus ensinamentos deram em nós". Eis uma segunda causa de nossas divisões. De onde nosso dever de "aceitar descobrir o que em nós se acha endurecido, esclerosado, em nossa inteligência, e mais profundamente — sem o sabermos — em nossas almas": ato de humildade ditado pelo fato de "somente Cristo ser nosso ideal perfeito, e somente Ele, por sua Providencia, nos ensinar as lições do real. E ser somente nEle que nos podemos glorificar".

Isto nos leva a investigar as raízes intelectuais de nossas querelas, o que por sua vez nos conduz à questão da crise da metodologia social, que convém estudar em toda a sua amplitude.

Direita e esquerda

Seria esquematizar de modo inexato a realidade, reduzir a divisão dos católicos aos termos "direita" e "esquerda", sem maiores explicações e distinções. Se inicialmente por esquerda se entendiam os elementos radicais, da ala socialista e revolucionaria, e por direita os que se colocavam ao lado da tradição social católica, hoje os campos não se separam com tamanha nitidez. Certas direitas, comprometidas pelos pendores totalitários de seus doutrinadores e chefes, praticamente se confundem com as esquerdas. Essas alas extremas se combatem por razões táticas, ou por equívoco, pois o movimento pendular que imprimem à humanidade agitando-a ora para um lado, ora para outro, acabará por conduzi-la ao mesmo ponto morto, que marcará o advento do omniarca universal, senhor totalitário de todas as almas, de todas as inteligências, de todas as vontades.

O importante a notar na repercussão de tais movimentos político-sociais entre os filhos da Igreja, é que "esses métodos e essas escolas se acham divididos sobre pontos essenciais na mesma medida em que se afastam da doutrina social católica" (loc. cit., p. 22).

Ora, como realizar a união com o sacrifício dessas impostergáveis e importantíssimas questões de principio? A este respeito esclarece o autor que ele não se coloca de modo algum "no nível prudencial, isto é, no nível das aplicações práticas a situações contingentes. É claro que nesse nível são legítimas as divergências de opinião entre católicos". Não se trata da discussão na zona do opinativo, mas da observância da "doutrina social da Igreja, cujos pontos principais se acham contidos nas Encíclicas, nas Alocuções e nas Epistolas Pontifícias".

Positivismo de direita e de esquerda

A mediocridade pseudo-científica que caracterizou o século XIX fez surgir com honras de filósofo um homem que é, em grande parte, responsável pela confusão mental que passou a imperar em certos meios intelectuais do Ocidente. Discípulo de Saint Simon, Augusto Comte deu nascimento a uma "física social" que é a causa intelectual profunda de muitas das incompreensões que opõem uns aos outros não só os católicos, mas mais generalizadamente as duas famílias de espíritos classificadas como de "direita" e de "esquerda".

Pode-se indagar se, em determinados casos, "a mola profunda dessa oposição não provém de um erro comum. É com efeito, muito frequentemente, na medida em que participam, inconscientemente, de um postulado de base errônea, que os homens disputam a seguir interminavelmente, estribados nas consequências contraditórias de seu erro comum. No caso que nos ocupa, pode-se indagar se a física social de Charles Maurras foi suficientemente desembaraçada do positivismo que lhe serviu de berço, — e se os pontos de convergência, ou pelo menos de parentesco, entre a concepção marxista e a concepção cristã da história de Mounier não tiveram por origem intelectual invisível, mas radical, as teses de Vico e Condorcet sobre o progresso indefinido, retomadas por Comte na lei dos três estados antes de se metamorfosearem, graças aos marxistas, em um sentido da história" (p. 23).

Oportunamente veremos como esse positivismo de direita e de esquerda informa o pensamento e a ação de setores intelectuais católicos que se mostram em antagonismo, mas que na realidade não lutam pela promoção da doutrina social da Igreja, senão em favor de uma causa fundamentalmente condenada pela concepção católica de vida.