P.08

Celebra no dia lo deste mês o décimo aniversário de sua sagração o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D., DD. Bispo de Jacarezinho, que também comemorou, no dia 12 de março n.p., seu jubileu de prata sacerdotal (texto na pág. 2).


O HUMANISMO INTEGRAL III

Pe. A. Messineo, S. J.

Ter-se-á notado como em nossa exposição, além do conceito evolutivo da história, reaparece com frequência também o de civilização, o que manifesta ser, este, outro dos fundamentos em que repousa o humanismo integral. Cumpre, pois, fixar nele, embora rapidamente a atenção. Civilização e cultura, para Maritain, são sinônimos, e indicam "o desabrochar da vida propriamente humana, não só quanto ao desenvolvimento material suficiente para levar aqui na terra uma vida reta, mas também e principalmente quanto ao desenvolvimento moral, ao desenvolvimento das atividades especulativas e práticas (artísticas e éticas), que merece ser chamado, de modo próprio, desenvolvimento humano" (1).

A cultura e a civilização, portanto, são efeito das meras forças da natureza, porque correspondem à vocação desta; são, todavia, realizadas pelo espírito e pela liberdade, que acrescentam o seu esforço ao da natureza. Sob o aspecto filosófico, a distinção entre natureza, de uma parte, e espírito e liberdade, de outra, poderia suscitar alguma perplexidade; é mais oportuno, porém, deixá-la de lado para nos determos no essencial, isto é, na relação entre civilização e Religião, ponto importante do sistema humanístico maritainiano. Afirmada a essência puramente humana da civilização, não se pode evitar de inferir sua separação da Religião e da Revelação, e desta forma começa a vacilar o conceito tradicional de civilização cristã. Não antecipemos os desenvolvimentos do sistema. Ouçamos primeiro o que nos ensina seu próprio construtor.

A Religião, assevera ele, não é elemento constitutivo da civilização, de nenhuma civilização. No mundo antigo, particularmente no mundo pagão, foi ela confundida com vários elementos da civilização, porque se apresentava ligada a uma determinada cultura, inimiga das outras culturas; mas não pode ser considerada assim, pelo cristão. Para o cristão, completa Maritain, "a verdadeira Religião é essencialmente sobrenatural e, porque sobrenatural, não é do homem, nem do mundo, nem de uma raça, nem de uma nação, nem de uma civilização, nem de uma cultura, mas é da vida íntima de Deus. Transcende a toda civilização e a toda cultura, e estritamente universal" (2).

Ter-se-ia desejo de subscrever sem reservas esta sublime transcendência atribuída de modo especial à Religião Cristã, mas a mente fica preocupada com as consequências que daí podem decorrer, e a mão se detém. Antes de tudo, a partir da distinção nítida traçada entre civilização e Religião — tenha-se presente o que foi afirmado sobre a exclusão da segunda de entre os elementos que compõem toda e qualquer civilização — poder-se-ia deduzir que a Religião permanece fora do tempo e da história. Com efeito, se a história consiste num processo evolutivo rumo a tipos de civilização essencialmente diferentes, e se esse movimento progressivo se verifica no tempo, — admitida a separação entre Religião e civilização em virtude da eminente transcendência da primeira, resulta logicamente que esta, não sendo elemento de nenhuma civilização, não tem também nenhuma incidência na história e nenhum influxo direto sobre sua evolução no tempo. A Religião, portanto, estaria fora da história e fora do tempo.

Surge então a questão do modo por que e do caminho pelo qual a religião, e particularmente a cristã, cumpre sua função de fermento civilizador no plano histórico. Maritain responde a essa questão, e sua resposta esclarece melhor um segundo aspecto do humanismo integral. O espiritual e o temporal, a Religião e a cultura, afirma ele, não podem conceber-se a não ser como duas ordens inteiramente distintas, se bem que a menos perfeita permaneça essencialmente subordinada à mais perfeita. Assim pois, o influxo da superior sobre a inferior, da religião sobre a cultura, ocorreria com a descenção dos valores religiosos ao plano humano e temporal, mas, note-se bem, a fim de se tornarem elementos de civilização deverão eles temporalizar-se e particularizar-se, perdendo sua transcendência e universalidade.

No plano da história, portanto, não atuaria o Cristianismo enquanto Religião revelada e transcendente, nem o Evangelho na sua pureza originaria de palavra divina transmitida ao homem, nem a ordem da graça e das realidades superiores nela contidas, mas um Cristianismo e um Evangelho esvaziados de seu conteúdo sobrenatural e naturalizados, temporalizados. Apenas sob esta forma é que um e outro podem tornar-se elementos de civilização e entrar como componentes do humanismo integral. Em outros termos, Religião e cultura estão colocadas em dois planos paralelos que nunca se encontrarão, por mais que se estendam ao infinito, porque a primeira está fora do tempo, como ordem transcendente da graça, e a segunda está no tempo, e no tempo se desenvolve com o progresso histórico. Só se estabelece uma relação entre as duas ordens mediante a queda de alguns elementos da ordem superior, que, entretanto, descendo à inferior perdem a sua sacralidade e se tornam humanos.

Estes seriam, como os chama Maritain, reflexos evangélicos sobre o temporal. Não pode haver dúvida acerca do significado desta frase. Com ela quer-se dizer que o Evangelho, em sua essência de levedo divino e sobrenatural, não fermenta diretamente a sociedade e não faz parte dos componentes da civilização, de nenhuma civilização. Em vez dele, age no plano humano um substitutivo que se obtém através da perda do seu caráter originário, através da transformação dos seus princípios em princípios humanos, temporais e limitados, de conteúdo profano.

A gravidade da conclusão a que a distinção entre cultura e Religião conduziu Maritain poderia fazer duvidar da exatidão da interpretação dada por nós ao seu sistema de humanismo integral. Mas a dúvida é dissipada pelo conceito de cristandade profana, outro pivot da sua concepção humanista. Distingue ele, ainda, entre Cristianismo e cristandade. A cristandade, segundo a definição expressamente dado por Maritain, não seria senão um regime comum temporal, cuja estrutura traz impressa a marca da concepção cristã da vida, e, como regime temporal, continua também separada do Cristianismo, que conserva o sentido de Religião sobrenatural e de complexo de verdades reveladas (3). Não abrange a cristandade tão somente os que professam a verdadeira Religião, mas inclui em seu seio homens que aderem aos mais diversos cultos, e até ateus, indiferentes ou agnósticos, desde que admitam algumas verdades humanas descobertas pela razão no decurso do processo evolutivo da história, sob o estimulo do Evangelho, e respeitem os valores escondidos no mistério da natureza humana (4). Para pertencer à cristandade não importa o modo como o homem subjetivamente se comporte com referência à Religião e às suas relações com Deus; só importa que ele reconheça e respeite os valores imanentes na pessoa humana, e em tal caso pode dizer-se cristão, porque as verdades naturais por ele admitidas são um reflexo do Cristianismo no temporal. E por isso esta cristandade de novo cunho é denominada temporal e profana.

Existe uma estranha coincidência entre a concepção de Maritain até aqui descrita, e a exposta por Benedetto Croce num artigo, depois publicado novamente em opúsculo, que a seu tempo provocou tanto rumor: "Perché non possiamo non dirci cristiani".

Também Croce parte de um conceito evolutivo da história, em virtude do qual o pensamento cristão deveria, em épocas sucessivas, ser revisto e levado mais além e mais para o alto. Os gênios que fundaram o Cristianismo, escreve ele, Jesus, Paulo e o autor do quarto Evangelho, com seu próprio exemplo pareciam pedir "que o ensinamento por eles ministrado fosse não só uma fonte de água que jorra a fim de nos banhar para sempre, ou semelhante à videira cujos sarmentos dão frutos, mas obra incessante, viva e plástica, que domina o curso da história e satisfaz as novas exigências que eles não formularam e que se teriam gerado mais tarde no seio da realidade" (5).

E como este progredir, que é ao mesmo tempo transformação e acréscimo, não se pode realizar sem melhor determinar, corrigir e modificar os primeiros conceitos, acrescentando-lhes novos, devem ser considerados continuadores efetivos da obra religiosa do Cristianismo os que promoveram progressos substanciais no pensamento e na vida. Merecem, pois, o nome de cristão, de operários da vinha do Senhor, "não obstante algumas aparências anticristãs, os homens do humanismo e do Renascimento, que compreenderam a força da poesia e da arte, da política e da vida mundana, reivindicando-lhes a plena humanidade contra o sobrenaturalismo e o ascetismo medievais; e, sob certos aspectos, os homens da Reforma, enquanto ampliaram para um significado universal a doutrina de Paulo, desligando-a das referências particulares, das esperanças e das expectativas de seu tempo; os severos fundadores da ciência físico-matemática da natureza, com os inventos que proporcionaram novos meios à civilização humana; os propugnadores da religião natural, do direito natural e da tolerância, precursores das ulteriores concepções liberais; os iluministas da razão triunfante, que reformaram a vida social e política, removendo o que restava do feudalismo medieval e dos privilégios medievais do Clero, dissipando espessas trevas de superstições e preconceitos, e acendendo novo ardor e novo entusiasmo pelo bem e pelo verdadeiro bem como um renovado espírito cristão humanitário; e, depois deles, os revolucionários práticos que da França estenderam sua ação a toda a Europa; e em seguida os filósofos, que se esforçaram por dar forma crítica e especulativa à idéia do Espírito, substituída, pelo cristianismo, ao antigo objetivismo" (6).

O leitor nos perdoará a longa citação, mas era ela necessária para demonstrar de que modo as atitudes de um filosofo como Croce, imanentista, negador de toda transcendência, cético em matéria de Religião, e mesmo notoriamente hostil à Igreja, coincidem com as de outro filósofo que se declara católico e crente. Para ambos, são e podem dizer-se cristãos todos os que admitem alguns valores humanos ou contribuíram de qualquer maneira para o seu desenvolvimento histórico; para ambos, a fim de se ser considerado cristão não é necessária a fé num depósito doutrinário imutável, a adesão total a um complexo de verdades reveladas, nem se exige o lávraco da graça regeneradora, mas basta ter trabalhado para o chamado progresso da civilização humana na arte, na política e nas instituições sociais.

Como ensina ainda Maritain, seguindo talvez inconscientemente a pauta de Croce, o que importa à vida política do mundo e à solução da crise da civilização não é o "Cristianismo como credo religioso e caminho para a vida eterna", mas "o Cristianismo como fermento da vida social e política dos povos", não o "Cristianismo como tesouro de verdade divina, conservada e propagada pela Igreja, mas o Cristianismo como energia histórica em ação no mundo". O Cristianismo, acrescenta ele para esclarecer melhor o sentido das proposições precedentes, "age desta forma, não nas alturas da teologia, mas nas profundezas da consciência profana e da existência profana, não raro assumindo formas heréticas e até mesmo de revolta, em que parece negar-se a si mesmo, como se os fragmentos da chave do Paraíso, caindo em nossa mísera vida e misturando-se com os metais da terra, tivessem mais êxito em ativar a história deste mundo. Não foi dado a crentes integralmente fiéis ao dogma católico, mas a racionalistas, proclamar na França os direitos do homem e do cidadão, a puritanos desfechar na América o golpe de misericórdia na escravidão, a comunistas ateus abolir na Rússia o absolutismo do lucro privado" (7).

Qualquer comentário seria prejudicial. O arrazoado é claro e o significado, nítido. Em resumo ele se concentra na afirmação de que a Religião não opera, nem pode operar diretamente na formação da civilização; esta é efeito da consciência profana e se realiza na existência profana. Na história agem tão somente forças humanas, às quais a Religião presta auxilio, não como credo religioso e caminho para a vida eterna, mas como fragmento caído do Paraíso e que se misturou com a terra para ter eficácia sobre o progresso humano.

Pode-se entender agora o que é preciso divisar na expressão humanismo integral. Admitidas as premissas em que nos firmamos, não deve este ser entendido de outra forma senão como afirmação integral dos valores humanos enquanto tais, numa sociedade profana e na existência profana, e especialmente da liberdade, na qual o homem tomou consciência de si mesmo. E, visto que estes valores são valores de civilização — a qual é essencialmente diferente nas diversas épocas, segundo a variedade essencial dos princípios informadores — não se lhes pode atribuir a imutabilidade eterna dos valores cristãos, transcendentes e universais. São eles, portanto, valores puramente humanos, naturais e não sobrenaturais, e o fato de terem sido compreendidos melhor (conforme a teoria do nosso filósofo) sob o estimulo do Evangelho na mente humana, não os eleva um só centímetro acima do plano natural. De resto, mesmo aqueles reflexos evangélicos em que ainda se poderia distinguir uma conexão com a ordem superior da graça, ao descerem do alto, segundo o próprio Maritain, tornam-se profanos e temporais, o que significa que perdem a transcendência e se transformam em elementos puramente naturais de civilização.

Resulta então que o humanismo integral não é um humanismo intrinsecamente cristão, não é o humanismo do homem regenerado pela graça, da sociedade fermentada e santificada através do homem, das relações cuja lei deriva de uma natureza elevada e pertence à ordem transcendente da Revelação. É um humanismo só extrinsecamente cristão; a ele podem de fato aderir até o agnóstico e o ateu, o racionalista e o descrente. Na sua substancia o humanismo integral é, pois, um naturalismo integral.

(1) "Umanesimo integrale", Roma, 1946, p. 81.

(2) lbidem, p. 82; "Du régime temporel et de la liberté", Paris, 1933, p. 113.

(3) "Umanesimo integrale", ed. cit., p. 109; "Du régime temporel", ed. cit., p. 114; "Les droits de l'homme et la loi naturelle", Paris, 1942, p. 26.

(4) "Umanesimo integrale", ed. cit., pp. 134- 138; "Les droits de l'homme", ed. cit., p. 26; "Christianisme et démocratie", Paris, 1943, p. 35.

(5) "Perché non possiamo non dirci cristiani", in "La Critica", nov. 1942, p. 294.

(6) Ibidem, p. 295.

(7) "Christianisme et démocratie", ed. cit., pp. 35-36.

N.R. — As duas primeiras partes deste artigo foram reproduzidas nos números 75 e 76 de "Catolicismo".


VERDADES ESQUECIDAS

BASTA UM NADA PARA EXCITAR A PAIXÃO NOS JOVENS

De uma carta datada de 10 de abril de 1894 do Cardeal José Santo, depois São Pio X, ao Vice-Reitor do Seminário de Mântua, a respeito de uma revista recreativa então muito difundida entre as famílias católicas:

Tendo caído em minhas mãos um numero do "Giovedì", notei com verdadeira surpresa que essa revista não é escrita com a prudência e delicadeza necessárias em uma leitura destinada à juventude. Como sei que alguns alunos do Seminário são seus assinantes, peço-lhe que retenha em seu poder todos os números que publiquem de agora em diante, embora pareçam inofensivos, porque nestas coisas nunca é excessiva a circunspeção, e basta um nada para excitar a paixão nos jovens. — ("San Pio X — Cartas", tradução espanhola de José Ma. Javierre, Juan Flors Editor, Barcelona-Madrid-Valencia, 1954, p. 193).