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"Por orgulho, repelem toda sujeição"

Plinio Corrêa de Oliveira

"Odiai o erro, amai os que erram", escreveu Santo Agostinho. Grande, sábia, admirável sentença. Entretanto, quantas aberrações, quantas traições, quantas capitulações vergonhosas se tem abusivamente cometido em nome dela!

Há pessoas cândidas - ou covardes - que imaginam as idéias como entes dotados de existência física própria e autônoma, os quais se incubam misteriosamente nas pessoas. Pode-se mover guerra às idéias sem atacar as pessoas, mais ou menos como se pode combater a doença infecciosa sem combater o doente. A guerra é contra o bacilo, tão somente.

Este modo de ver, muito generalizado, infelizmente, em nossos dias, beneficia largamente nossos adversários, pois desarma toda a nossa reação.

A verdade e o erro não são algo de extrínseco ao espírito humano como as fichas na gaveta de um fichário. A inteligência, pelo contrário, tende a assimilar este e aquela, por um processo que tem sido merecida e frequentemente comparado à digestão. Se alguém come pão ou carne, a digestão incorpora ao organismo uma parcela da substância destes alimentos, que ficam fazendo parte da pessoa. Analogamente, se alguém aceita uma doutrina, esta de tal maneira pode chegar a marcar sua personalidade, que se diria figurativamente que tal homem personifica aquela idéia. Como pretender destruir o pão já digerido por uma pessoa, sem ferir a esta última em sua carne? E como se pode atacar uma idéia sem atingir em certa medida quem a personifica, quem ipso facto lhe dá vida, atualidade e possibilidades de difusão?

O orgulho é o pai de todas as heresias, e mormente o haveria de ser da heresia que contem em si o suco de todas as outras, isto é, o modernismo. Daí dizer São Pio X, dos modernistas, que “por orgulho repelem toda sujeição”. “Non serviam”, brado que o Príncipe das trevas inspira a todos os seus sequazes, mas que São Miguel Arcanjo cobre com o hino triunfal de sua eterna humildade: “Quis ut Deus”. - No clichê: cena do Apocalipse numa tapeçaria do castelo de Angers, século XIV.

Não. A sentença de Santo Agostinho é de sentido óbvio. Ela preceitua que desejemos a humilhação e a derrota do erro, bem como a conversão e a salvação de quem erra. Ela recomenda que usemos, para com quem erra, de toda a suavidade possível. Ela não nos proíbe de utilizar, contra aquele que erra, uma justa severidade, quando isto se torna necessário para o bem da Igreja e a salvação das almas. Nesse sentido, não chega aquela sentença a ponto de inutilizar no católico a capacidade de ação e de luta contra os fautores do erro ou do mal. Muito pelo contrário, os Santos souberam sempre conciliar as duas obrigações fundamentais e aparentemente contraditórias, de amar o próximo e de o combater quando a isto impele o zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas.

É disto que nos deu admirável exemplo na Encíclica "Pascendi", contra o modernismo, o Papa São Pio X.

Em nosso ultimo artigo ( 1 ), expusemos a doutrina modernista, em suas grandes linhas, baseando-nos no monumento de objetividade e lucidez que é aquele imortal ato pontifício. Enganar-se-ia, entretanto, quem supusesse que a "Pascendi" foi um mero documento doutrinário. São Pio X não combateu apenas no campo das idéias, mas, com admirável energia e perspicácia, desmascarou os próprios fautores do erro, e traçou o lamentável perfil moral do modernista, denunciou suas táticas, e pôs a nu a vastidão de sua conspiração. A Encíclica não menciona nomes, mas é riquíssima em dados sobre a personalidade do modernista. Em outros documentos, São Pio X chegou aos nomes. Por exemplo, com os importantes decretos em que foram nominal e pessoalmente atingidos os principais chefes do movimento.

É para que nossos leitores possam medir em toda a sua admirável extensão a severidade com que o Santo Pontífice se houve nesta emergência, que consagramos ao assunto mais um artigo.

Fazendo-o, chamamos a atenção deles para a oportunidade flagrante do exemplo que lhes apontamos. São Pio X foi beatificado e mais tarde canonizado pelo Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante. Quis o Papa, sob cujo pontificado de importância imorredoura vivemos, que seu Antecessor servisse de modelo para os homens do século XX muito especialmente, e não para os mortos que jazem na sepultura, ou as crianças que ainda estão para nascer. Foi para isto que ele fez brilhar na honra dos altares esse grande luzeiro.

Agir como São Pio X, eis o que nos recomenda com sua suprema autoridade o imortal Pontífice Pio XII.

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Do que no último artigo expusemos, se depreende que, para os modernistas, a Igreja, com sua doutrina, seus Sacramentos e sua Hierarquia, pode ser vista de dois modos diversos. Um é o dos espíritos incapazes de perceber nas coisas mais do que sua aparência, e que nas enunciações doutrinarias não conseguem ir além do sentido literal, próprio e direto. Estes são os broncos.

Mas há também os espirituais. Seu intelecto, mais subtil e lúcido, lhes proporciona perceber que as fórmulas dogmáticas e as enunciações doutrinárias devem ser entendidas "cum grano salis". Seu valor é todo relativo. Elas não exprimem verdades objetivas e definitivas, e, pelo contrário, deslizam como nuvens de contornos variáveis e curso rápido, no firmamento da vida espiritual.

A luta entre os broncos e os intelectuais, no seio da Igreja, é inevitável e será eterna, dizem os modernistas. Do lado dos broncos está, pela mesma natureza de suas funções, a autoridade eclesiástica. O próprio do modernista é agir no sentido de impor silêncio aos broncos, e arrastar a Hierarquia na via das reformas.

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Daí decorre que, para os modernistas, a autoridade eclesiástica deve exercer uma ação mais ou menos negativa na Igreja. A grande missão propulsora toca ao laicato, e em alguma medida aos elementos "evoluídos" da Hierarquia. Salienta-o muito bem a Encíclica "Pascendi": "A força conservadora, na Igreja, é a tradição, e a tradição é a autoridade religiosa que a representa. Esta o faz tanto de direito, quanto de fato. De direito, porque a defesa da tradição é como um instinto natural da autoridade; de fato, porque, pairando sobre as contingências da vida, a autoridade não sente, ou sente fracamente, os estímulos do progresso. A força progressista, pelo contrário, é a que corresponde às necessidades, e se encontra latente, como um fermento, nas consciências individuais, principalmente nas que estão em contacto mais íntimo com a vida. Discernis aqui, Veneráveis Irmãos, o fator de progresso? Ora, em virtude de um tal ou qual compromisso ou transação, entre a força conservadora e a força progressista, é que se realizam as mudanças e os progressos. Isto se dá quando as consciências individuais, pelo menos algumas dentre elas, reagem sobre a consciência coletiva; esta, por sua vez, faz pressão sobre os depositários da autoridade, até que por fim eles cheguem a uma composição; e, feito o pacto, ela vela por sua execução" ( 2 ).

Percebe-se, por este trecho, que o modernista é fundamentalmente revolucionário. Para ele, a autoridade tem, na ordem natural das coisas um mero papel de freio, papel secundário que muito facilmente se transforma em verdadeiro estorvo. A ação principal é do laicato, ao qual incumbe, por meio de sucessivas pressões, guiar a autoridade.

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Assim, quando a autoridade eclesiástica condena algum modernista, não constitui isto, para ele motivo de vergonha entre os seus correligionários: "Compreende-se, à vista do exposto, a surpresa dos modernistas quando são repreendidos ou punidos. O que se lhes exprobra como uma falta é precisamente o que se lhes afigura um dever sagrado. Em contacto íntimo com as consciências, conhecem-lhes as necessidades com mais precisão e segurança do que a autoridade eclesiástica; por assim dizer, encarnam eles tais necessidades. Em conseqüência, desde que possam falar ou escrever, valem-se disto publicamente, no que comprem um dever. Que a autoridade os repreenda como lhe aprouver: tem por si sua consciência e uma experiência íntima que lhes diz com certeza que só merecem louvores e não reprimendas. Ademais, ponderam, todo progresso se faz com crises, e as crises fazem necessariamente vítimas. Vítimas, eles o serão como os Profetas, como Jesus Cristo. Contra a autoridade que os maltrata, não tem amargura: em última análise, ela desempenha seu papel de autoridade. Os modernistas se limitam a deplorar que a autoridade se conserve surda a suas objurgatórias, porque daí decorrem entraves para as almas que caminham em demanda do ideal. Mas chegará certamente a hora em que será preciso não mais tergiversar, porque é possível contrariar a evolução, porem não é possível detê-la. E os modernistas seguem assim seu caminho; repreendidos e condenados, continuam, dissimulando sob aparências mentirosas de submissão uma ousadia sem limites. Curvam hipocritamente a cabeça, enquanto com todos os seus pensamentos, todas as suas energias, prosseguem, mais audaciosamente do que nunca, no plano traçado.

"Este procedimento constitui um propósito firme e uma tática: quer porque eles sustentam que é necessário estimular a autoridade, e não destruí-la; quer porque lhes importa conservar-se no seio da Igreja para nela agir, e para

(continua)