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COMPANHIA DE JESUS

"A PUREZA DA DOUTRINA, O VIGOR DA DISCIPLINA, A AUSTERIDADE DA VIDA VOS PRESERVEM DO CONTAGIO DO MUNDO"

(continuação)

sobre seus filhos, como um bom pai é obrigado a fazer, e não os deixem apartar-se pouco a pouco da reta senda da fidelidade.

Vosso Instituto descreve sabiamente esse ofício dos Superiores, em particular dos Superiores locais, no que diz respeito à saída dos súditos para fora da casa religiosa, a suas relações com estranhos, ao envio e recebimento de correspondência, às viagens, ao uso ou administração do dinheiro, e até mesmo ao cuidado, que devem ter, de que todos executem fielmente os exercícios de piedade, que são como que a alma tanto da observância religiosa quanto do apostolado. Regras excelentes para nada servem se aqueles a quem compete urgir sua execução não se desincumbem de seu encargo com força e constância.

OBSERVANCIA DA PERFEITA POBREZA

“Vós sois o sal da terra" (Matt. 5, (( 13): que a pureza da doutrina, o vigor da disciplina, unidas à austeridade da vida, vos preservem do contagio do mundo e façam de vós discípulos dignos dAquele que nos resgatou pela Cruz.

Ele próprio vos advertiu: "Quem não carrega sua cruz e não vem em meu seguimento não pode ser meu discípulo" (Luc. 14, 27). Dai decorre que vosso Pai Inácio vos exorte a "aceitar e desejar com todas as forças o que Cristo Nosso Senhor amou e abraçou" (Exame geral, c. 4, n. 44; Summ. Const., n. 11); e "para melhor chegar a esse grau de perfeição tão precioso na vida espiritual, que cada um trabalhe, com toda a aplicação de que é capaz, para procurar no Senhor a máxima abnegação de si mesmo e uma mortificação contínua em todas as coisas, tanto quanto for possível" (Exame geral, c. 4, n. 46, Summ. Const., n. 12). Ora, na procura das novidades que presentemente preocupa tantos espíritos, é de temer que o princípio primeiro de toda a vida religiosa e apostólica, a saber, a união do instrumento com Deus (cf. Const., p. X, n. 2), venha a tornar-se menos claro, e que "nossa confiança seja fundada" de preferência "sobre os meios naturais que... dispõem o instrumento a ser útil ao próximo" (cf. Const., p. X, n. 3), contrariamente à economia da graça em que vivemos.

A levar esta vida crucificada com Cristo deve concorrer em primeiro lugar a fiel observância da pobreza, tão intensamente desejada por vosso Fundador; e não somente a pobreza que exclui o livre uso das coisas temporais, mas sobretudo aquela a que esta dependência está também ordenada, isto é, o uso muito moderado das coisas temporais, unido à privação de bom número de comodidades que os que vivem no mundo podem legitimamente reivindicar.

Certamente aplicareis para a maior gloria de Deus, com a aprovação de vossos Superiores, os meios que tornam vosso trabalho apostólico mais eficaz; mas ao mesmo tempo vos privareis espontaneamente de muitas cosas que não são de nenhum modo necessárias ao vosso fim, e que não servem senão para agradar e lisonjear a natureza. Assim o fareis a fim de que os fiéis vejam em vós os discípulos de Cristo pobre, e reservem talvez esmolas mais abundantes para finalidades úteis à salvação das almas, em lugar de dissipá-las em prazeres fáceis. Não convém a Religiosos permitir-se férias fora das casas de sua Ordem, a não ser por razões extraordinárias, empreender a título de repouso viagens agradáveis, sem dúvida, mas custosas, possuir para seu uso pessoal e exclusivo instrumentos de trabalho, quaisquer que sejam, em vez de deixá-los para uso e serviço de todos, como o exige a natureza do estado religioso. Quanto ao supérfluo, suprimi-o com simplicidade e coragem, por amor da pobreza e para buscar essa mortificação continua em todas as coisas, que é própria a vosso Instituto. É necessário considerar como tal o uso, tão espalhado em nossa época, do fumo sob suas diversas formas. Sendo Religiosos, cuidai, segundo o espírito de vosso Fundador, que esse costume seja abolido entre vós. Que os Religiosos não preguem somente por palavras, mas também pelo exemplo, a preocupação pela penitência, sem a qual não há esperança fundada de salvação eterna.

FIDELIDADE AOS EXERCICIOS ESPIRITUAIS

Todas estas recomendações que vos fazemos, embora não sejam conforme a natureza, e lhe pareçam pelo contrário difíceis e excessivas, tornar-se-ão, não somente possíveis, mas fáceis e agradáveis no Senhor, se fordes fiéis à vida de oração que de vós espera vosso Pai e Legislador (Const., p. VI, c. 3, n. 1). E vossos exercícios de piedade serão animados pelo fervor íntimo da caridade se fordes fiéis à oração mental prolongada, tal como as Regras aprovadas de vossa Ordem a prescrevem para cada dia. Os Padres que se dedicam ao trabalho apostólico devem antes de tudo vivificar toda a sua ação por uma consideração mais profunda das coisas de Deus, e por um mais ardente amor de caridade para com Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo, e sabemos pelos preceitos dos Santos que esse amor se nutre principalmente da oração mental. Vossa Ordem se afastaria certissimamente do espírito desejado por vosso Pai e Legislador, se não permanecesse fiel à formação recebida nos Exercícios Espirituais.

MONARQUICA A FORMA DE GOVERNO DA COMPANHIA

Ninguém entre vós reprovaria ou rejeitaria qualquer novidade que fosse, pela simples razão de se tratar de novidade; desde que, no entanto, ela fosse útil à salvação e à perfeição de vossas almas e das do próximo, coisa em que consiste o fim de vossa Companhia (cf. Exam. ger., c. 1, n. 2, Summ. Const., n. 2). É pelo contrário inteiramente conforme ao Instituto de Santo Inácio e constitui tradição entre vós o aplicar-se de todo o coração a todas as empresas novas que o bem da Igreja reclama e a Santa Sé recomenda, sem ter receio de nenhum esforço de adaptação. Mas deveis ao mesmo tempo conservar firmemente e defender contra todos os esforços do mundo e do demônio as tradições cuja sabedoria decorre, seja do Evangelho, seja do conhecimento da natureza humana decaída. É o caso da ascese religiosa que vosso Fundador aprendeu e recebeu das Ordens antigas.

Entre os pontos substanciais de primeira ordem de vosso Instituto (Epit. Inst., n. 22), que não podem ser modificados nem pela própria Congregação Geral (1. c. 23 § 1), mas unicamente pela Sé Apostólica, porque aprovados "in forma specifica" pela Carta Apostólica "Regimini militantis Ecclesiae", de 27 de setembro de 1540, de Nosso Predecessor Paulo III (Institutum S. I., Florença 1892, vol. I, p. 6), encontra-se este: "A forma de governo da Companhia é monárquica, definida pelas decisões de um só Superior” (Epit. Inst., n. 22, § 3, 4.°). E esta Sé Apostólica, sabendo bem, que a autoridade do Geral é como que o eixo sobre que repousa a força e a sanidade de vossa Ordem, longe de crer que seja preciso fazer qualquer espécie de concessão acerca deste ponto ao espírito da época atual, quer, pelo contrário que esta autoridade plena e monárquica, que não depende senão da autoridade suprema da Santa Sé, permaneça inacabada, mesmo se, salvaguardada inteiramente a forma monárquica, o seu encargo for oportunamente aliviado.

JESUÍTAS : "AUT SINT, UT SUNT, AUT NON SINT"

Numa palavra, "aplicai-vos todos com constância a nada negligenciar daquilo que podeis atingir de perfeição, com a graça divina, na observância inteira de todas as Constituições e da Regra própria a vosso Instituto" (Const., p. VI, c. 1, n. 1; Summ. Const., n. 15). Atribui-se a Nosso Predecessor de piedosa memória, Clemente XIII, esta palavra que, senão literalmente, pelo menos quanto ao sentido, exprimia certamente o seu pensamento, quando se pedia que ele permitisse à vossa Ordem afastar-se do Instituto fundado por Santo Inácio: "Aut sint ut sunt, aut non sint" (Pastor, Geschichte der Paepste, Bd. XVI, 1, 1931, S. 651, Anm. 7). Tal é e continua sendo também o Nosso pensamento: que os Jesuítas sejam tais como os formaram os Exercícios Espirituais, tais como os querem suas Constituições. Outros na Igreja, sob a direção da Hierarquia, tendem louvavelmente a Deus por um caminho diferente em certos pontos; para vós, vosso Instituto é o "caminho para Deus" (cf. Formula Instituti, in Litt. Apost. Pauli III, "Regimini militantis Ecclesiae", de 27 de setembro de 1540, n. 1; Institutum S. I., Florença 1892, vol. I, p. 4). A regra de vida tantas vezes aprovada pela Santa Sé, as obras de apostolado que a Santa Sé vos recomenda particularmente, eis o vosso programa, em colaboração fraterna com os outros obreiros da Vinha do Senhor, que, todos, sob a direção da Santa Sé e dos Bispos, trabalham para o advento do Reino de Deus.

Como penhor da luz do Espírito Santo sobre os trabalhos de vossa Congregação, e de efusão da graça divina sobre todos e cada um dos membros de vossa Companhia, com a afeição de um coração paternal concedemos-vos a Benção Apostólica".


«Inimicitias Ponam»

F. M. A.

"Inimicitias ponam inter te et Mulierem, et semen tuum et semen illius" (Gen. 3, 15), foi a sentença divina que traçou o esquema da história da humanidade. Após a queda original, o tempo se tornou o cenário da luta entre o poder das trevas e os filhos da luz, entre Satanás e seus asseclas, e a Igreja de Cristo e seus fiéis.

Guerra sem quartel, mas nem sempre cruenta. Muito mais ideológica do que sanguinária. Sim, porque é no campo moral, e não no espaço material, que se contam as suas vitórias.

Em geral a contenda entre os dois adversários obedece a um ritmo binário. Há, primeiro, uma preparação do ambiente, mais ou menos longa. É a fase da difusão das idéias falsas, sorrateira e subtil. Não se faz às claras, nem com termos evidentes. O demônio, o pai da mentira, sabe que, para perturbar as consciências, O melhor método é criar a confusão. Ele é mestre em pescar em águas turvas. Preparado o ambiente, saturado o meio social de orientações atraentes na roupagem de que se vestem suas imprecisões, agitadas bem as consciências, há a segunda fase, o estouro. Mais ou menos como a formação de um abscesso. Começa ele de maneira imperceptível, depois cresce, avoluma-se, já não se contém, vem a furo, mostra-se à luz do dia com toda a sua hediondez.

Mas não termina a luta. Passado o estouro, retorna a calma, calma aparente, pois sob seu manto as hostilidades continuam. Voltam a primeira fase, à preparação de um novo tumor. A Igreja é militante; sua vitória total só se dará no fim do mundo.

Às vezes são as hostes de Satanás que provocam a erupção; e é o mais frequente. A bofetada de Nogaret, emissário de Felipe, o Belo, em Bonifacio VIII, marcou o "non serviam" dos Estados em relação à Igreja de Cristo, havia muito preparado pelo crescente orgulho dos Príncipes, sustentado pela rebelião ideológica dos heresiarcas do século XIII.

De então para cá, a harmonia real, objetiva, profunda, baseada em princípios comuns lealmente admitidos, não se recompôs mais entre os dois poderes.

A Revolução Francesa foi outro golpe espetacular das forças do mal. Esperavam estas obter uma vitória decisiva. Não o conseguindo, novamente as frentes se recompuseram, e a guerra continuou nos bastidores. Tem-se a impressão de que o inimigo resolveu então adotar nova tática. Corroer o adversário internamente. Esse trabalho lento veio se desenvolvendo sempre mais, de sorte que no alvorecer deste século já se falava claramente, em certos meios católicos, de nova apologética, nova concepção dos dogmas, nova idéia de Deus e da Fé, novos métodos exegéticos, etc.. Uma nova Igreja, enfim, que nada tem de comum com a antiga, a não ser a roupagem. Mais ou menos como essas velhas imagens de madeira, internamente corroídas por inteiro pela broca, mas que ainda conservam a forma e o brilho exterior.

Não se poderia esperar que o inimigo expusesse a risco essa situação estrategicamente inigualável, furando o tumor.

Tocou, desta vez, à Igreja a iniciativa.

E veio à luz essa monumental Encíclica de um dos maiores Papas da história, São Pio X: a "Pascendi Dominici Gregis", de 8 de setembro de 1907, cujo cinquentenário estamos celebrando neste ano.

Com pena magistral, o Santo Pontífice caracteriza nela o modernista, sua piedade austera, Seu orgulho empedernido — mais ou menos como as Monjas de Port-Royal, das quais dizia Mons. Perefixe, Arcebispo de Paris: "puras como Anjos, orgulhosas como demônios" – sua hipocrisia dissimulada, sua intenção pérfida métodos coleantes, parecendo errar por acaso, e, no entanto, obedecendo a uma entrosagem, executando um plano, cujo fim era nada menos do que destruir a Igreja, viciando o que Ela tem de fundamental: a raiz da Fé.

Segue-se uma exposição da doutrina modernista.

Síntese soberba do que esparsa e dolosamente difundiam os fautores de tais novidades. Por ela se pode ver que os modernistas nada, absolutamente nada deixavam de pé do que constitui a estrutura do Catolicismo. Aderindo ao agnosticismo e ao imanentismo da chamada Filosofia Moderna, pregavam uma religião sentimental, individualista, sem conteúdo dogmático, de valor meramente simbólico, e, pois, sem autoridade legítima, nem sanções eficazes.

Para se avaliar o alcance do ato augusto de São Pio X, considere-se o furor com que essa Encíclica foi recebida nos arraiais visados. Com um libelo imundo, responderam eles ao Papa. É o famoso programa desses hereges.

O pior é que o espírito modernista, de independência em relação ao Magistério eclesiástico, particularmente o do Santa Padre, o Papa, não morreu com a condenação pontifícia. A Encíclica "Pascendi" é de uma clareza meridiana. Pela exposição ordenada e metódica da doutrina modernista, lembra São Tomas de Aquino. No entanto, um autor católico de renome comenta: "Entre as Encíclicas pontifícias, poucas há tão graves como a Pascendi; há também poucas tão difíceis de se compreender"...

Que é isto, senão um mal contido desagrado pela publicação de um documento cujo golpe certeiro tornou impossível qualquer escamoteação?

Pois esse espírito modernista se nota em muitas atitudes de hoje diante dos problemas religiosos; mas sobretudo na tendência à autonomia em relação à Santa Sé.

Motivo que torna muito atual o documento pontifício de meio século atrás, e altamente oportuna a comemoração de seu cinquentenário.


OS CATÓLICOS IRLANDESES NO SÉCULO XIX

CAUSAS DO VIGOR DO CATOLICISMO NA IRLANDA

Fernando Furquim de Almeida

A rapidez da conversão da Irlanda e o vigor das raízes que o Cristianismo deitou em seu solo são geralmente explicados por duas razões principais. De um lado o fato de estarem os irlandeses, ao tempo da evangelização, divididos em pequenos clãs, de modo que a conversão do chefe arrastava todo o grupo. E de outro lado a circunstância de não ter o país sofrido influência romana, e São Patrício ter podido legar lhe uma legislação de fonte exclusivamente cristã.

Lendo a história da ilha, no entanto, não se pode deixar de aduzir uma terceira razão, que indubitavelmente é a mais importante. São Patrício formou a alma do povo no amor à austeridade, ao sofrimento — à cruz, numa palavra. Os monges irlandeses que, feitos missionários, se espalharam por todo o Ocidente vestidos de lã grosseira e tonsurados transversalmente de uma orelha à outra, andavam a pé, quase sempre em grupos de doze. Á semelhança dos Apóstolos, jejuavam perpetuamente e se impunham disciplinas árduas. Rezavam longas horas com os braços erguidos em cruz, e, no inverno, muitas vezes permaneciam longamente mergulhados em água gelada. São Columbano, fundador do Mosteiro de Luxeuil, na França, compendiou em suas regras o ascetismo irlandês. Nesse código monástico a obediência era absoluta, perpétuo o silêncio, e as menores faltas se castigavam com chibatadas, que variavam de seis a duzentas, conforme a culpa. Por exemplo, o monge que conversasse com uma mulher, sem ter junto de si uma terceira pessoa, era condenado a cem golpes de flagelo ou a dois dias de jejum a pão e água.

Foi a esses religiosos que Carlos Magno pediu auxílio para a restauração da Igreja no Ocidente; foram eles que povoaram de mosteiros a Irlanda e toda a Europa; foram eles que ajudaram a construir a Idade Média. É quase incalculável o número de santos em suas fileiras. Era natural que o inferno se revoltasse contra eles e manifestasse seu ódio de modo até sensível.

São Columbano e São Galo tentavam a fundação de um mosteiro no Suíça, mas os habitantes da região não queriam auxiliá los. Para se alimentar, eram obrigados a caçar pássaros selvagens e pescar no lago de Bregentz, em cujas margens tinham estabelecido uma pequena comunidade. Uma noite, estando São Galo numa barca, vigiando as redes, ouviu o demônio da montanha chamar o demônio dos águas.

Eis me aqui — respondeu este último.

Levanta te e vem ajudar me a expulsar estes estrangeiros que me enxotaram de meu templo. Juntos, conseguiremos afastá los.

De que maneira? — replicou o demônio das águas. — Aqui está um deles, a quem quis romper as redes e nada consegui. Ele reza sempre e não dorme nunca. Teremos muito trabalho e nada obteremos.

São Galo ergueu se, fez o sinal da cruz e disse aos dois espíritos infernais: "Em nome de Jesus Cristo, ordeno vos que vos retireis destes lugares sem fazer mal a ninguém". E correu a despertar seu santo Abade, que repousava. São Columbano chamou os monges para rezar o ofício. Antes de ser entoado o primeiro salmo, começaram no cimo dos montes das redondezas os urros dos demônios, e à medida que o ofício prosseguia, o terrível alarido foi se extinguindo ao longe, como o estrépito de um exército em debandada.

A devoção ao Vigário de Cristo era outra constante entre os monges irlandeses. Sua concepção da primazia da Sé Romana está admiravelmente condensada neste início de uma carta de São Columbano ao Papa, datada de Milão, onde então se encontrava o Santo:

"Nós, irlandeses, que habitamos as extremidades do mundo, somos discípulos de São Pedro e São Paulo e dos outros Apóstolos que escreveram sob o ditado do Espírito Santo. Não haurimos senão a doutrina apostólica e evangélica. Nunca nenhum de nós foi herege, judeu ou cismático. O povo que veio aqui, o qual suporta o peso de muitos concidadãos heréticos, é invejoso, perturba se como um rebanho amedrontado. Perdoa-me, portanto, se, nadando por entre esses escolhos, disser algumas palavras ofensivas aos ouvidos pios. A liberdade nativa de minha raça me dá essa ousadia. Entre nós não é a pessoa, é a razão que prevalece. O amor da paz evangélica far me á dizer tudo. Estamos ligados à Cátedra de Pedro, pois, por maior e mais gloriosa que seja Roma, é por essa Cátedra que ela é grande e gloriosa entre nós. Ainda que o nome da antiga cidade, glória do Ausonia, se tenha espalhado pelo mundo como alguma coisa de soberanamente augusta, graças à grandíssima admiração dos povos, para nós não sois grandes e augustos senão depois da Encarnação de Deus, depois que o Espírito de Deus soprou sobre vós, e depois que o Filho de Deus, sobre o carro conduzido pelos dois ardentes corcéis de Deus, Pedro e Paulo, fendeu as ondas dos povos para chegar até vós. Mais ainda, por causa desses dois grandes Apóstolos de Cristo, sois quase celestes, e Roma é a cabeça das igrejas do mundo inteiro, salvo na singular prerrogativa do lugar da divina Ressurreição".

A Irlanda progrediu em paz, gozando os frutos da evangelização de São Patrício, até fins do século VIII, quando os dinamarqueses invadiram a ilha por vários pontos. Durante duzentos anos assolaram eles o país, até que em 1014 o rei supremo, Bian Boru, conseguiu expulsá los. Infelizmente, esse valente guerreiro foi morto na batalha que assegurou a vitória final sobre os invasores. Assim perdeu a Irlanda o chefe que poderia pacificá la. De fato, a facção autóctone que tinha apoiado os estrangeiros continuou a luta depois de terem estes se retirado. Em 1169, Dermot, Rei do Leister, pediu à Inglaterra que o auxiliasse na revolta contra o rei supremo.

Desde então a Inglaterra foi pouco a pouco se apossando do ilha. Os Tudor, principalmente Henrique VIII, abateram completamente o poder dos príncipes locais, e à força introduziram o protestantismo. No entanto, apesar de mais fracos, de estarem divididos e de não contarem com a proteção de nenhuma potência estrangeira, os irlandeses não permitiam que a Inglaterra lhes dominasse a pátria. Mantinham se em constante estado de revolta. A ocupação inglesa estava destinada a um completo malogro, quando Oliver Cromwell destronou o infeliz Carlos I. O ditador enviou uma expedição à Irlanda, que a submeteu a ferro e fogo. Para evitar qualquer veleidade de revolta, distribuiu entre os seus generais as terras confiscadas aos vencidos.

Pobres, humilhados, oprimidos, sujeitos praticamente à escravidão, viveram os irlandeses até o início do século XIX. Sua emancipação principiou com o aparecimento, na cena política, de Daniel O’Connell, jovem advogado nos tribunais de Dublin.


NOVA ET VETERA

COMUNISMO PARA CRIANÇAS

J. de Azeredo Santos

Dizia Lenine que "não é difícil ser revolucionário quando a revolução já estalou e se acha em seu apogeu, quando todos e cada um aderem à revolução por entusiasmo, por moda e às vezes por interesse pessoal e desejo de fazer carreira. Ao proletariado custa muito, acarreta duras penas, provoca verdadeiros tormentos desfazer-se, depois de seu triunfo, desses revolucionários. É infinitamente mais difícil — e muitíssimo mais meritório — saber ser revolucionário quando a situação não permite ainda a luta direta, franca, a verdadeira luta de massa, a verdadeira luta revolucionaria, saber defender os interesses da revolução (mediante a propaganda, a agitação, a organização) em instituições não revolucionarias e a meúdo sensivelmente reacionárias, na situação não revolucionaria, entre massas incapazes de compreender de imediato a necessidade de um método revolucionário de ação" (V.I. Lenine em "La enfermedad infantil del izquerdismo en el comunismo", Lautaro, B. Aires, p. 126/127). Seria nisto que consistiria "a missão principal do comunismo contemporâneo da Europa Ocidental e na América" (p. 127).

Por outras palavras, nesta fase pré-revolucionária, a missão principal caberia 'à chamada "linha auxiliar" ou "progressista" do Partido Comunista, e não aos ferrabrases da ação direta ou aos militantes ativistas que se dedicam de modo declarado e aberto à causa do credo vermelho.

Membro caboclo da "linha auxiliar"

Eis porque julgamos altamente meritório o trabalho de esclarecimento que vem de ser realizado pelo Exmo. Revmo. Mons. Sales Brasil por meio de sua obra "A literatura infantil de Monteiro Lobato, ou Comunismo para crianças" (Livraria Progresso Editora, Salvador, 1957).

Escritor de estilo atraente e vivo, o maior perigo dos livros de Monteiro Lobato se acha justamente na qualidade de sua produção intelectual, pois ninguém perderia tempo em combater uma sub-literatura de cordel, incapaz de seduzir o grande público. Entretanto, a esses méritos literários, junta-se enorme onda de propaganda feita em torno do autor de "Urupês", principalmente em benefício de seus livros destinados às crianças, o que faz crescer a perniciosidade deles.

Basta enumerar os assuntos tratados nos principais capitules do trabalho de Mons. Sales Brasil, para convencer da importância dessa contribuição do infeliz escritor paulista em favor da preparação psicológica de nossas crianças para a .futura aceitação das teses marxistas: Negação de uma causa superior à matéria, negação da Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e da existência de Deus, negação da espiritualidade da alma, negação da verdade lógica, ontológica e da certeza absoluta, negação da moralidade e do pudor, da mentira e da força do direito, negação do vínculo matrimonial indissolúvel, negação da hierarquia social e pregação do igualitarismo, negação do direito à propriedade particular, negação do respeito devido aos pais e superiores, negação da polidez e das boas maneiras.

Contra o catecismo

Não tem faltado a Mons. Sales Brasil o apoio daqueles que se interessam pela saúde mental da nossa juventude brasileira. Entretanto, seu livro teve também o condão de despertar a irritação de certas alas esquerdistas de nosso mundo literário. Assim é que o Sr. Edgard Cavalheiro, autor de uma biografia de Monteiro Lobato, saiu a campo para dizer que "acoimar de comunista uma obra como a de Lobato é tolice. Rematada tolice. Ela não se enquadra, evidentemente, nas lições de catecismo. Mas está, também, muito longe de servir aos interesses de Moscou" (artigo em "O Estado de S. Paulo" de 14 de setembro de 1957).

Será, naturalmente, por estar "muito longe de servir aos interesses de Moscou" e à causa da revolução comunista, que a obra de Monteiro Lobato, por ocasião do 75º aniversaria de seu nascimento, foi objeto de estudos feitos por membros do Departamento de Literatura Mundial do Instituto Gorki, que integra a Academia de Ciências da União Soviética, conforme fotografia publicada por Mons. Sales Brasil após a página 170 de seu livro. Nesse clichê vê-se a sala de sessões daquele órgão adornada com um grande retrato do homenageado.

Mais ainda. O próprio Sr. Edgard Cavalheiro, a pagina 30 de seu livro "Urupês — Notas biográficas e críticas", esclarece-nos nestes termos sobre a literatura infantil do criador do Sitio do Picapau Amarelo: "Acontece que o autor, deixando de lado a moral do catecismo, a falsa moral, portanto, enveredou por outro mundo, sem dúvida bem mais consentâneo com as duras realidades da vida".

E é também o socialista Edgard Cavalheiro que transcreve as seguintes diretrizes seguidas por Monteiro Lobato: "A cega obediência a Deus, ao Papa, ao Padre, ao catecismo, a dogmas e regras, destrói a liberdade moral — essa conquista suprema para os homens superiores, mas perigoso embaraço para o rebanho humano" (obra citada, p. 493).

Desunião dos filhos da luz

Compreende-se que aqueles que afirmam ser falsa a moral do catecismo emprestem todo o apoio à obra nefasta de Monteiro Lobato junto às crianças. Entretanto, era de esperar que os católicos se levantassem em frente única no combate a influência deletéria dessa literatura infantil. Mons. Sales Brasil, porém, conhecendo bem o nosso meio, não participa desse otimismo e declara antecipadamente: "Não estamos iludidos: contra a idéia de qualquer luta e, pois, contra a nossa tese, hão de se levantar — quem sabe? — filhos da própria luz" (p. 317).

Assim é que temos a lamentar que o Sr. Alceu de Amoroso Lima, com seu habitual pendor para a dubiedade, haja iniciado a quebra dessa desejada unanimidade. Louva o Sr. Tristão de Ataide "vivamente a técnica" de Monteiro Lobato, distinguindo-a da "filosofia de vida" do mesmo autor, "não católica, ao contrário do que eu penso" (entrevista a "O Globo" do Rio de Janeiro, de 26 de agosto de 1957).

E acrescenta o Sr. Alceu de Amoroso Lima: "Monteiro Lobato torna-se pernicioso, por exemplo, no livro A História do Mundo, quando ele quer introduzir suas idéias filosóficas. Mas eu me separo do Padre Sales Brasil, quando ele condena Monteiro Lobato indistintamente. Não aceito sua condenação radical como não aceito a radical glorificação deste escritor. O que é preciso é fazer uma distinção e mostrar às crianças os livros que são bons, evitando-Lhes os que não o são" (entrevista citada).

Ora, acontece que Mons. Sales Brasil fundamenta de modo exaustivo por que classifica de "comunismo para crianças" a literatura infantil de Monteiro Lobato. Mostra-nos seu aspecto unitário. Tais obras são, segundo o próprio Lobato, "na essência, uma história só, em muitos episódios". Mas o Sr. Tristão de Ataide, superficial e confuso como sempre, divergindo do eminente Sacerdote baiano, deixa de esclarecer quais, na sua opinião, os livros infantis de Monteiro Lobato que podem ser aceitos como "bons", não no sentido pragmatista e rotariano da palavra, mas naquele cuja autenticidade se conforma com o princípio evangélico: "Que o vosso sim seja sim, e o vosso não, não".

As "distinções" do Sr. Alceu de Amoroso Lima, portanto, longe de delimitar os campos, cobrem-nos de densa cortina de fumaça. E vem depois certos católicos, chamados "construtivos", mostrar-nos a beleza da união dos comunistas em torno de seu programa, ao passo que os filhos da Igreja, desunidos, se perdem em distinções estéreis..