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APOSTOLADO DOS LEITOS

(continuação)

outro lado, o apóstolo leigo não se deve ofender se lhe pedem que não apresente, à missão que o mantém, exigências exageradas.

APOSTOLADO DOS LEIGOS

Evocamos em precedente ocasião a figura desses leigos que sabem assumir todas as suas responsabilidades. São, dizíamos Nós, "homens constituídos em sua integridade inviolável como imagens de Deus; homens prezadores de sua dignidade pessoal e de sua sã liberdade; homens justamente ciosos de serem iguais a seus semelhantes em tudo o que diz respeito ao fundo mais íntimo da dignidade humana; homens apegados de modo estável a sua terra e a sua tradição" (Alocução aos novos Cardeais, de 20 de fevereiro de 1946 -- Discorsi e Radiomessaggi, vol. VII, p. 393) . Um tal acervo de qualidades supõe que a pessoa tenha aprendido a dominar-se, a sacrificar-se, e que vá haurir incessantemente luz e vigor nos mananciais da salvação que a Igreja oferece.

O materialismo e ateísmo de um mundo em que milhões de crentes devem viver isolados obriga a formar em todos eles personalidades sólidas. De outro modo, como resistirão aos engodos da massa que os envolve? O que é verdade para todos o é em primeiro lugar para o apóstolo leigo, obrigado não somente a se defender, mas também a conquistar.

Isto não diminui em nada o valor das medidas de precaução, como as leis de proteção da juventude, a censura dos filmes, e todas as disposições que a Igreja e o Estado tomam para preservar da corrupção o clima moral da sociedade. A fim de educar o jovem para suas responsabilidades de cristão, importa conservar seu espírito e seu coração numa atmosfera sadia. Poder-se-ia dizer que as instituições devem ser de tal modo perfeitas, que possam por si mesmas garantir a salvaguarda do indivíduo, ao passo que o indivíduo deve ser formado para a autonomia do católico adulto como se não tivesse que contar senão consigo mesmo para triunfar de todas as dificuldades.

O apostolado dos leigos

Elaboramos aqui o conceito de apostolado dos leigos em sentido estrito de acordo com o que explicamos mais acima sobre o apostolado hierárquico: consiste na aceitação por parte dos leigos de tarefas que derivam da missão confiada por Jesus Cristo à sua Igreja. Vimos que esse apostolado permanece sempre apostolado de leigos, e não se torna "apostolado hierárquico" nem mesmo quando exercido por mandato da Hierarquia.

Daí decorre que é preferível designar o apostolado da oração e do exemplo pessoal como apostolado no sentido mais lato ou impróprio do termo. A esse respeito, não podemos senão confirmar as observações que fazemos em Nossa carta ao III Congresso Mundial da União Mundial dos professores cristãos, em Viena: "Pertença ou não a atividade profissional dos mestres e mestras católicos ao apostolado dos leigos em sentido próprio, estai persuadidos, caros filhos e filhas, de que o mestre cristão que por sua formação e devotamento está à altura de sua missão, e, profundamente convencido de sua fé católica, dá disso exemplo à juventude que lhe está confiada, como coisa espontânea e que se tornou nele uma segunda natureza, exerce a serviço de Cristo e de sua Igreja uma atividade semelhante ao melhor apostolado dos leigos" (5 de agosto de 1957). Pode-se repetir esta afirmação para todas as profissões e especialmente para as dos médicos ou engenheiros católicos, em particular na hora presente, em que são chamados aos países subdesenvolvidos e aos territórios de missão, a serviço dos governos locais ou da UNESCO e outras organizações internacionais, e dão por sua vida e pelo exercício de sua profissão o exemplo de uma vida cristã plenamente desenvolvida.

A Ação Católica apresenta sempre o caráter de um apostolado oficial dos leigos. Duas observações se impõem aqui: o mandato, sobretudo o de ensinar, não é dado a Ação Católica em conjunto, mas a seus membros organizados em particular, segundo a vontade e escolha da Hierarquia. A Ação Católica não pode tampouco reivindicar o monopólio do apostolado dos leigos, pois ao lado dela subsiste o apostolado leigo livre. Indivíduos ou grupos podem colocar-se à disposição da Hierarquia e se ver confiar por ela, por tempo fixo ou indeterminado, certos encargos, para os quais recebem mandato. Pode-se certamente perguntar então se não se tornam também membros da Ação Católica. O ponto importante é que a Igreja hierárquica, os Bispos e os Padres, podem escolher para si colaboradores leigos, quando encontram pessoas capazes e dispostas a ajudá-los.

Parece necessário, a esta altura, tornar conhecida, pelo menos em suas grandes linhas, uma sugestão que Nos foi comunicada muito recentemente. Assinala-se que reina atualmente um mal-estar lamentável, muito amplamente difundido, que encontraria sua origem principalmente no uso do vocábulo "Ação Católica". Esse termo, com efeito, seria reservado a certos tipos determinados de apostolado leigo organizado, para os quais cria diante da opinião uma espécie de monopólio: todas as organizações que não entram no quadro da Ação Católica assim concebida - afirma-se - apresentam-se com menor autenticidade, com importância secundaria, parecem menos apoiadas pela Hierarquia e ficam como que à margem do esforço apostólico essencial do laicato. Daí decorreria que uma forma particular de apostolado leigo, isto é, a Ação Católica, triunfa em detrimento das outras e que se assiste ao açambarcamento do gênero pela espécie. E muito mais, ainda, chegar-se-ia na prática a lançar o veto e fechar a Diocese aos movimentos apostólicos que não trazem a etiqueta da Ação Católica.

Para resolver esta dificuldade, consideram-se duas reformas práticas: uma de terminologia, e como corolário, outra de estrutura. Primeiramente seria necessário restituir ao termo "Ação Católica" seu sentido geral e aplicá-lo unicamente ao conjunto dos movimentos apostólicos leigos organizados e reconhecidos como tais, nacional ou internacionalmente, quer pelos Bispos no plano nacional, quer pela Santa Sé para os movimentos que visam ser internacionais. Bastaria então que cada movimento particular fosse designado por seu nome e caracterizado em sua forma especifica, e não segundo o gênero comum. A reforma de estrutura seguiria a da fixação do sentido dos termos. Todos os grupos pertenceriam à Ação Católica e conservariam seu nome próprio e sua autonomia, mas formariam, todos conjuntamente, como Ação Católica, uma unidade federativa. Cada Bispo ficaria livre de admitir ou recusar este ou aquele movimento, de mandatá-lo ou não, mas não lhe competiria recusá-lo como não sendo de Ação Católica por sua própria natureza. A realização eventual de um tal projeto requer naturalmente uma reflexão atenta e prolongada. Vosso Congresso pode oferecer uma ocasião favorável de discutir e examinar esse problema, ao mesmo tempo que outras questões similares.

Resta ainda uma palavra a dizer para concluir estas considerações de princípio, sobre as relações do apostolado dos leigos com a autoridade eclesiástica. É suficiente repetir o que já em 1951 estabelecíamos como regra geral: que o apostolado dos leigos deve, nas suas formas mais variadas, "manter-se sempre dentro dos limites da ortodoxia e não se opor às prescrições legítimas das autoridades eclesiásticas competentes" (Discorsi e Radiomessaggi, vol. XIII, p. 298). Nesse meio tempo, fomos forçado a refutar uma opinião errônea sobre a "teologia leiga", opinião que resultava de uma inexata concepção da responsabilidade do leigo (Aloc. "Si diligis", de 31 de maio de 1954 — Discorsi e Radiomessaggi, vol. XVI, p. 45) . O termo "teologia leiga" é falho de todo sentido. A norma que se aplica em geral ao apostolado dos leigos, e que acabamos de relembrar, vale também naturalmente, e mais ainda, para o "teólogo leigo"; mas se este quer publicar escritos sobre matérias teológicas, tem necessidade, também ele, da aprovação explícita do Magistério eclesiástico.

A atividade do leigo católico é particularmente oportuna nos domínios em que a pesquisa teológica flanqueia a das ciências profanas. Recentemente, por iniciativa da "Görres-Gesellschaft", um grupo de teólogos e naturalistas entraram em acordo para discutir, em encontros regulares, acerca de questões comuns que lhes interessam. Não podemos deixar de felicitá-los por tal iniciativa.

II — FORMAÇAO DOS APÓSTOLOS LEIGOS — EXERCÍCIO DO APOSTOLADO DOS LEIGOS

Alguns reparos bastarão, a respeito da formação dos apóstolos leigos.

Nem todos os cristãos são chamados ao apostolado leigo em sentido estrito. Já dissemos que o Bispo deveria poder tomar colaboradores entre os que acha dispostos e capazes, porquanto a só disposição não é suficiente. Os apóstolos leigos formarão pois sempre uma elite, não porque se conservam apartados dos outros, mas, muito pelo contrário, porque são capazes de atrair os outros e agir sobre eles. Assim se compreende que devam possuir, além do espírito apostólico que os anima, uma qualidade sem a qual fariam mais mal do que bem: o tacto.

Para adquirir, de outro lado, a competência requerida, é necessário evidentemente aceitar o esforço de uma formação seria: esta, cuja necessidade para os mestres ninguém coloca em dúvida, impõe-se igualmente para todo apóstolo leigo, e soubemos com prazer que a reunião de Kisubi ressaltou fortemente a formação intelectual. - Quanto aos leigos que se ocupam da administração dos bens eclesiásticos, sejam escolhidos com prudência e conhecimento de causa. Quando incapazes ocupam esses cargos, não sem prejuízo para os bens eclesiásticos, a culpa recai menos sobre eles próprios do que sobre as autoridades que os chamaram a seu serviço.

Na hora atual, mesmo o apóstolo leigo que trabalha entre os operários nas fábricas e empresas tem necessidade de um saber sólido em matéria econômica, social e política, e conhecerá, pois, também a doutrina social da Igreja. É conhecida uma Obra de apostolado para homens que forma seus membros num "Seminário social", que recebe trezentos participantes durante cada semestre de inverno e dispõe dos serviços de vinte conferencistas: professores de Universidade, juízes, economistas, juristas, médicos, engenheiros, conhecedores de línguas e ciências. Tal exemplo, parece-Nos, merece ser imitado.

A formação dos apóstolos leigos será empreendida pelas próprias obras de apostolado leigo, que encontrarão auxilio junto do Clero secular e das Ordens religiosas apostólicas. Os Institutos seculares lhes fornecerão também - estamos seguro disso - uma colaboração apreciável. Para a formação das mulheres para o apostolado leigo, as Religiosas já têm em seu ativo belas realizações em países de missão e noutras regiões.

Desejaríamos chamar especialmente vossa atenção para um aspecto da educação dos jovens católicos: a formação de seu espírito apostólico. Em vez de ceder a uma tendência um pouco egoísta, cuidando somente da salvação de sua alma, tomem eles também consciência de sua responsabilidade para com os outros e dos meios de os ajudar. Não há dúvida, aliás, de que a oração, o sacrifício, a ação corajosa para conquistar os outros para Deus, são garantias seguríssimas da salvação pessoal. Não pretendemos de nenhum modo, com isto, censurar o que se fez no passado, pois ali não faltam realizações numerosas e notáveis a esse respeito. Pensamos, entre outras, nos semanários católicos, que mantiveram o zelo de muitos para com as obras de caridade e o apostolado. Movimentos como a Obra da Santa Infância tiveram nesse sentido fecundas iniciativas. Contudo, o espírito apostólico se implanta no coração das crianças não somente na escola, mas bem antes da idade escolar, pelos cuidados da própria mãe. Elas aprenderão como rezar na Missa, como oferecê-la com uma intenção que abrange o mundo inteiro e principalmente os grandes interesses da Igreja. Ao examinar-se acerca dos deveres para com o próximo, elas não se perguntarão somente: "Fiz mal ao próximo?", mas também: "Mostrei-lhe o caminho que conduz a Deus, a Cristo, à Igreja, à salvação?"

Quanto ao exercício do apostolado leigo, uma vez que as reflexões expressas mais acima sobre as questões de princìpio já tocaram em diversos pontos dessa matéria, não trataremos aqui senão de certos campos de apostolado de onde provém no momento um chamado mais urgente.

A Paróquia

“Não é realmente um sinal confortador que hoje até adultos considerem uma honra o fato de servirem ao altar? E os que pela música e pelo canto contribuem para o louvor de Deus e edificação dos fiéis exercem sem dúvida alguma um apostolado leigo digno de elogios.

O apóstolo leigo empenhado no apostolado de bairro, e a quem se confia um dos grupos de casas da paróquia, deve procurar informar-se com exatidão acerca da situação religiosa dos seus moradores. As condições de habitação são más ou insuficientes? Quem teria necessidade do socorro das obras de caridade? Há casamentos a regularizar? Crianças a batizar? Como são as bancas de jornais, as livrarias, as bibliotecas circulantes do bairro? Que lêem os jovens e os adultos? A complexidade e por vezes o caráter delicado dos problemas a resolver nesse tipo de apostolado sugerem que não se empregue nesse trabalho senão uma elite selecionada, dotada de tacto e verdadeira caridade”.

Depois de tratar dos problemas de apostolado ligados a imprensa, rádio, cinema, televisão, ao mundo do trabalho, à C.E.C.A., à situação na América Latina e nas missões da Ásia e da África, o Soberano Pontífice passa à

Conclusão

Sempre houve na Igreja de Cristo um apostolado dos leigos. Santos como o Imperador Henrique II, Estevão, o criador da Hungria católica, Luiz IX da França, eram apóstolos leigos, embora no início não se tenha tido consciência disso e não existisse ainda nessa época o termo apóstolo leigo. Mulheres também, como Santa Pulqueria, irmã do Imperador Teódosio II, ou Mary Ward, eram apóstolos leigos.

Se presentemente essa consciência está desperta, e se o termo apostolado leigo é dos mais empregados quando se fala de atividade da Igreja, é porque a colaboração dos leigos com a Hierarquia nunca foi necessária até esse ponto, nem praticada de maneira tão sistemática.

Esta colaboração se traduz em mil formas diversas, desde o sacrifício silencioso oferecido pela salvação das almas, até a boa palavra e o exemplo, que provocam a estima dos próprios inimigos da Igreja, até a cooperação nas atividades próprias à Hierarquia e comunicáveis aos simples fiéis, e até as audácias que se pagam com a vida, mas que só Deus conhece e que não entram em nenhuma estatística. Talvez este apostolado leigo oculto seja o mais precioso e o mais fecundo de todos.

O apostolado leigo tem - aliás como qualquer outro apostolado - duas funções: a de conservar e a de conquistar, impondo-se ambas com urgência à Igreja no presente. E, falando bem claramente, a Igreja de Cristo não cogita de abandonar sem luta o terreno ao seu inimigo declarado, o comunismo ateu. Este combate será travado até o fim, mas com as armas de Cristo!

Ponde-vos à obra com uma fé mais forte ainda que a de São Pedro quando, ao chamado de Jesus, abandonou sua barca e caminhou sobre as ondas para ir ao encontro de seu Senhor (cfr, Mat. 14, 30-31).

Durante estes anos tão agitados, Maria, a gloriosa e poderosa Rainha do Céu, fez sentir nas mais diferentes regiões da terra sua assistência de maneira a tal ponto tangível e maravilhosa, que Nós Lhe recomendamos com uma confiança ilimitada todas as formas do apostolado leigo.

Como penhor da força e do amor de Jesus Cristo, que se difundem também no apostolado leigo, concedemos aos Eminentíssimos Cardeais aqui presentes, a Nossos Veneráveis Irmãos no Episcopado, aos Sacerdotes que participam de vosso Congresso e a todos vós, homens e mulheres do apostolado leigo, a todos os que aqui vieram e aos que trabalham no mundo inteiro, Nossa paternal Benção Apostólica".


OS CATÓLICOS IRLANDESES NO SÉCULO XIX

"CANSAR A INJUSTIÇA E FORÇAR A MÃO DA PROVIDÊNCIA"

Fernando Furquim de Almeida

No século XIX, por toda a Europa, o Catolicismo teve um grande desenvolvimento. Apesar de dificuldades de toda ordem, desde a inércia e o comodismo de muitos até as ameaças e maquinações dos adversários, os movimentos católicos, mesmo nos países protestantes, conseguiram se impor e promover um esplêndido reflorescimento da vida religiosa.

Nas Ilhas Britânicas, a profunda diferença de mentalidade entre católicos irlandeses e ingleses constituiu mais um empecilho sério a entravar o progresso da Fé. Enquanto os irlandeses tinham sabido resistir energicamente à perseguição protestante e conservar intacto o legado de São Patrício, os fiéis ingleses viram rarear suas fileiras e acabaram por aceitar passivamente a condição de párias que o sectarismo anglicano lhes impusera.

Assim, ao se iniciar o século XIX, quase toda a Irlanda permanecia profundamente católica. Espoliados de todas as suas terras, sujeitos a pesados impostos para sustentar as autoridades estrangeiras inclusive os bispos protestantes , seus filhos faziam prodígios de generosidade para que não faltassem esmolas a seu clero numeroso e pobre. Nada era capaz de abatê los, e desejavam ardentemente continuar a luta em defesa da verdadeira Igreja. Eram intransigentes, estavam dispostos a todos os sacrifícios, e permaneciam sempre na expectativa de uma oportunidade para sacudir o jugo protestante. Na Inglaterra, pelo contrário, apesar de sofrerem as mesmas injustiças, os católicos eram acomodatícios, o que, aliás, de modo algum lhes granjeava a estima dos adversários. Viviam escondidos, com eterno pavor dos hereges, e pareciam incapazes de uma reação, mesmo se tivessem as melhores possibilidades de êxito.

A Inglaterra era país de missão, estava dividida em cinco vicariatos apostólicos. O Cardeal Vaughan dizia que os católicos ingleses “pareciam os destroços de um navio que naufragara depois de violenta tempestade”, e Newmann se referia a eles como “simples punhado de indivíduos que se podiam contar como as pedras ou os restos de um grande dilúvio. Não eram encontrados senão em lugares afastados, nas vielas, nos porões, nas mansardas ou nas solidões dos campos, completamente separados da multidão; eram entrevistos na obscuridade, no meio do nevoeiro ou no crepúsculo; fantasmas fugindo, aqui e ali, dos arrogantes protestantes, senhores do terra”.

Quando Napoleão tentou abater a Inglaterra através do bloqueio continental, o Papa não permitiu que a medida se estendesse aos Estados Pontifícios. Em sinal de reconhecimento, o governo britânico suspendeu algumas das restrições impostas aos católicos, tais como a proibição de exercer profissões liberais, e outras. Não se deixando iludir por essa inesperada manifestação de benevolência, os irlandeses logo promoveram uma revolta, prontamente esmagada pela Inglaterra. O parlamento nacional foi fechado, ficando o país incorporado ao Reino Unido.

Mais, ainda. Querendo assestar um golpe de morte na causa nacional irlandesa, o primeiro ministro William Pitt propôs se separar dela a causa católica. Para isso, prometeu o chamado bill de emancipação, que restituiria a liberdade à Igreja no Reino Unido.

No projeto que apresentou ao Parlamento, o Gabinete estabelecia três condições para a libertação dos detestados “papistas”: a publicação dos documentos pontifícios dependeria do placet real; as nomeações de bispos ficariam sujeitas ao veto do governo; este receberia juramento de fidelidade dos católicos.

Os católicos ingleses viram no projeto uma verdadeira dádiva, muito superior ao que ousavam esperar. Sob a liderança de Mons. Poynter, aceitaram plenamente as condições. Os irlandeses, porém, cerraram fileiras em torno de Mons. Milner e de Daniel O’Connell, que exigiam que o bill não contivesse nenhuma restrição.

Daniel O’Connell era um jovem advogado, formado logo que a Coroa permitira aos irlandeses católicos o exercício das profissões liberais. Em pouco tempo conquistara grande nomeada defendendo em Dublin as causas de seus compatriotas contra o governo.

De 1800 a 1809, as duas orientações divergentes tentam convencer Roma, enquanto Daniel O’Connell dá início na Irlanda ao seu célebre movimento de libertação. Grande orador, seu sucesso nos meetings é incomparável. Pouco a pouco, os irlandeses se arregimentam sob sua direção e fundam sociedades que são imediatamente fechadas pela polícia, para se reabrirem logo depois com outro nome. O’Connell lembrava frequentemente ao povo que “não é só hoje e amanhã que precisamos falar; não é só hoje e amanhã que precisamos nos associar. Devemos falar sempre, associar nos sempre, escrever sempre e fazer sempre petições, até que o fim seja atingido e o direito satisfeito. É necessário cansar a paciência da injustiça e forçar a mão da Providência”. E os irlandeses falavam, escreviam, faziam petições, se associavam, e obrigavam o governo inglês a adiar a aprovação do bill de emancipação.

Com a queda de Napoleão, a Inglaterra acreditou estar suficientemente forte para impor sua vontade à Igreja. Tanto mais que Pio VII se via a braços com enormes dificuldades, não só para pôr ordem nos Estados Pontifícios, dos quais fora obrigado a afastar se por longo tempo, como também para restaurar em várias partes do mundo o Catolicismo, duramente atingido pela Revolução, pela guerra e pelo cativeiro do Papa.

Em 1814 o governo exultou: o Prefeito da Propaganda Fide, Mons. Quarantotti, de acordo com o Padre MacPherson, Reitor do Colégio escocês de Roma, publicou um rescrito aceitando o placet em matéria exclusivamente política, o veto nas nomeações de bispos e, com algumas restrições, o juramento de fidelidade.

Naturalmente o documento de Mons. Quarantotti foi recebido com entusiasmo pelos católicos ingleses, que julgavam confirmado pela Santa Sé o ponto de vista que vinham sustentando na já longa polêmica com os irlandeses. Entre estes últimos, a consternação foi geral. Não podiam eles acreditar que o Papa tivesse acolhido as condições do Gabinete, e sem demora enviaram uma missão a Roma. Verificou se então que, de fato, Mons. Quarantotti publicara o rescrito sem submetê lo ao Pontífice. Logo se reiniciaram, com novo ardor, as polêmicas sobre o projeto de bill, e o governo inglês, prudente, adiou novamente sua aprovação.


NOVA ET VETERA

CRISTIANISMO E REVOLUÇÃO

J. de Azeredo Santos

“CATOLICISMO" já se referiu, por mais de uma vez, ao extraordinário apostolado exercido pelo grupo de intelectuais e homens de ação que se congrega em torno da revista "Cristiandad", de Barcelona. Dentre esses aguerridos soldados de Cristo Rei, cujos trabalhos ultrapassam as fronteiras da Espanha para se irradiar por todo o orbe católico, conhecíamos o Prof. Francisco Canals Vidal como um profundo investigador de delicados temas relacionados com a filosofia de São Tomás de Aquino.

Confirmando, porém, o brocardo popular que nos diz que "quem pode o mais pode o menos", surpreende-nos o Prof. Canals Vidal com o livro "Cristianismo y Revolución" (Ediciones Acervo, Barcelona), em que trata das origens românticas do chamado cristianismo de esquerda. A obra reproduz o texto da tese doutoral apresentada pelo autor à Faculdade de Direito da Universidade basca.

UM PSEUDO-ULTRAMONTANO

Foi Lamennais o incontestável "patriarca" do liberalismo católico e do cristianismo de esquerda. Entretanto, não somente os seguidores de seus desvios doutrinários, mas muitos de seus adversários, costumam dividir a vida do fundador de "L'Avenir" em duas fases: uma, no início de sua ação nos meios intelectuais franceses, quando se teria mostrado partidário intransigente do ultramontanismo, do tradicionalismo, do que se convencionou chamar teocracia; outra, quando mais tarde teria resvalado para o liberalismo esquerdista, chegando à apostasia no crepúsculo de sua agitada existência.

Podem variar os pontos de vista e o modo de se apreciar Lamennais, mas em geral essa divisão é nitidamente feita. Assim, por exemplo, em sua polêmica com o Revmo. Pe. Julio Meinvielle, "Maritain desloca vantajosamente o ponto de discussão, ao buscar o erro anticristão de Lamennais, não em seu liberalismo, mas precisamente na concepção filosófica e apologética própria à sua primeira época, a do Essai sur 1'Indifférence, no momento em que era tido, pelos ultramontanos contra-revolucionários, como o mais profundo e vigoroso dos apologistas católicos" (obra cit., p. 18).

Mostra o autor como "não há, certamente, ilação objetiva alguma entre a doutrina chamada ultramontana, que, em substância, não é senão a própria afirmação do dogma católico sobre a constituição monárquica da Igreja, e as doutrinas ideais do catolicismo liberal. Mas, sem dúvida, pode-se encontrar uma continuidade entre o estranho ultramontanismo, só em aparência ultrateocrático e sobrenaturalista, que Lamennais havia edificado sobre o fundamento de sua filosofia da Raison Générale, e o sistema de pensamento expressado mais farde em L'Avenir" (pp. 18/19).

A HERESIA DOS TEMPOS MODERNOS

Não se propõe o Prof. Canals Vidal estudar o assunto de um modo sobretudo filosófico ou teológico, mas sim sociológico e cultural. E assim chega à tese central de seu Trabalho: "que o elemento cultural e socialmente constitutivo do catolicismo liberal, o que explica sua gênese, condiciona sua evolução sucessiva, ao mesmo tempo que põe conexão e continuidade em suas mais diversas e opostas atitudes, é o romantismo" (p. 20).

Só ingressando no ambiente romântico que envolveu toda a vida de Lamennais, é que "se faz compreensível o incrível paradoxo de que sua falsamente ultramontana e pseudoteocrática intransigência o impelisse às mais audaciosas e graves alianças com a Revolução" (pp. 19/20).

E aqui avulta em valor e em profundidade o trabalho do Prof. Canals Vidal. Passa a aventura lamennaisiana a simples episódio - terrível e trágico episódio iniciador de outras e lamentáveis apostasias e defecções nas hostes católicas - para vir para o primeiro plano a investigação das obscuras origens do romantismo, desse romantismo que constituiu a atmosfera cultural, deformada e doentia, da época em que viveu o "patriarca" do liberalismo católico e do esquerdismo cristão.

Lamennais “é de tal modo homem de seu tempo, e a corrente que viveu com paixão trágica tem tido tão vital influência até nossos dias, que no (seu) erro... podemos ver compendiada a heresia dos tempos modernos. Uma heresia que não é, no fundo, senão a versão definitivamente projetada em amplitude e profundidade totais sobre a vida social do mundo moderno, da secular tentação deformadora do Reino de Deus, para rebaixá-lo e fundi-lo em um horizonte mundano” (pp. 72/73).

A FUMAÇA DOS POÇOS DO ABISMO

Em 1830 dizia Victor Hugo que “o romantismo, tantas vezes mal definido, não é, considerado em seu conjunto, se não o liberalismo em literatura... A liberdade na arte, a liberdade na sociedade, eis o duplo fim a que devem tender por sua vez todos os espíritos consequentes e lógicos. É aqui que saímos da antiga fórmula social. Como sairíamos da velha formula poética?”

Nesse trecho de seu célebre manifesto do romantismo literário, o autor da "Légende des siècles" simplifica por demais as coisas. O romantismo, diz-nos o Prof. Canals Vidal, "como tudo o que não tem essência, não é objeto possível de definição" (p. 112).

Com efeito, "o romantismo, não definível como objeto de ciência psicológica ou social, é somente capaz de ser percebido, sentido, e talvez sugerido, como um modo de ser, e mais ainda como uma contingente e previsível sistematização vital de orientações e impulsos humanos em uma circunstância histórica concreta" (p. 112).

Realidade complexa, contingente, que não constitui uma "unidade essencial" ou "necessária", não quer isto dizer que o romantismo "possa considerar-se como um conjunto desconexo e plural de correntes independentes, das quais se possa falar adequadamente em separado. Há um romantismo literário e artístico, um romantismo social, e um romantismo político, precisamente porque o conjunto todo das atividades humanas aparece condicionado ou modificado pelo romantismo. A complexidade do impulso e orientação não deve fazer esquecer que precisamente por se tratar de uma realidade histórica e coletiva, não pode ela ser percebida adequadamente senão na continuidade vital que a constitui, e enquanto condiciona intimamente as atitudes e as expressões dos homens daquela geração" (p. 113).

O romantismo não é de origem francesa. É fruto de uma época e da propagação de fumaças letais que há muito tempo, por toda a parte, saíam dos "poços do abismo". Mas se lhe quisermos atribuir raízes nacionais, podemos dizer que elas são anglo-germânicas. A sutileza do espírito gaulês deu-lhe a forma própria, desenvolveu-o em todas as suas conseqüências lógicas, uma vez aceito e assimilado em seus íntimos lineamentos.

E é para a estrutura panteísta e gnóstica do romantismo que o Prof. Canals Vidal dirige nossa atenção, levantando o véu que tenta ocultar sua filiação a um erro velho e conhecido, a um erro que é o principal responsável pelos desatinos de nossa atribulada época.

Em outra oportunidade voltaremos ao assunto.