MENSAGEM DE NATAL
(continuação)
e de Quem diz o Apostolo: "Tudo foi criado por Ele e à sua imagem; e Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por Ele" (Col. 1, 16-17). Tal a verdade salutar que brilha na humilde gruta e que desejamos ver resplandecer em vossos espíritos.
7. Jesus Cristo e as cacofonias da civilização técnica
Em particular, Cristo recém-nascido se manifesta e se oferece ao mundo atual:
1. — como reconforto dos que deploram as desarmonias e desesperam da harmonia do mundo;
2. — como penhor da harmonia do mundo;
3. — como luz e caminho de todo esforço do gênero humano para estabelecer a harmonia no mundo.
I — JESUS CRISTO, CONSOLADOR EM MEIO AS DESARMONIAS DESTE MUNDO
1. Harmonia no universo, desarmonia na vida do homem
Desde seu primeiro contacto com o universo, o homem foi arrebatado por sua incomparável beleza e por sua harmonia. O céu resplandecente de luz ou constelado de estrelas, os oceanos de extensões imensas e matizes variegados, os cumes inacessíveis das montanhas coroadas de neve, as verdes florestas regorgitantes de vida, a sucessão regular das estações, a variedade multiforme dos seres, arrancaram-lhe do peito um grito de admiração! Participante ele próprio dessa beleza, entreviu-a mesmo nos elementos desencadeados, como expressão do poderio do Criador; "Potentior aestibus maris, potens in excelsis est Dominus" (Sl. 92, 4); "Tonabit Deus in voce sua mirabiliter" (Job 37, 5). Com razão, um povo antigo de elevada civilização não encontrou palavra mais apta para designar o universo do que "kosmos", isto é, ordem, harmonia, beleza. No entanto, cada vez que o homem se contemplou a si mesmo e comparou as próprias aspirações com suas obras, prorrompeu em gemidos de desalento em virtude das contradições, desarmonias e desordens numerosíssimas que dilaceravam sua vida.
2. A técnica acentuou o contraste
Como seu antepassado, o homem moderno se debate entre a admiração extática do mundo da natureza, explorado até seus recantos mais profundos e longínquos, e a amargura do desalento que lhe proporciona a existência caótica por que ele próprio é responsável. O contraste entre a harmonia da natureza e a desarmonia da vida, em lugar de se atenuar com o desenvolvimento da capacidade de conhecer e agir, parece, ao contrário, acompanhá-lo como sombra sinistra. No isolamento de que está envolvido, o homem moderno não cessa de repetir as lamentações do sofredor de Hus: "Eis que eu brado sob a opressão e ninguém me escuta; reclamo ajuda mas não há justiça" (Job 19, 7). Pois bem! detenhamo-nos para escutar sua queixa, para melhor compreender seus sentimentos íntimos e mostrar-lhe Aquele que verdadeiramente pode dissipar suas trevas e restituir a harmonia à sua existência contrariada.
3. O pessimismo total e suas causas
Em parte da humanidade atual, a vista das desarmonias do mundo conduz a um julgamento de condenação de toda a criação, como se a desarmonia devesse ser a marca necessária dela, sua inevitável fatalidade, ante a qual não resta ao homem senão cruzar os braços e resignar-se, procurando, quando muito divertir-se com alguns prazeres efêmeros arrebatados à própria desordem reinante. Esse pessimismo total que se apodera com maior frequência das almas abertas ao otimismo mais amplo e mesmo absurdo, provém do fato de se estender a todo o cosmos e a suas leis fundamentais as incoerências inegáveis que o mundo apresenta e cuja responsabilidade faz-se recair sobre o próprio Criador.
a) O mundo moderno, oceano de horrores
Assim é que cedem aos assaltos do pessimismo total os que não sabem ver no mundo outra coisa que não seja o oceano de crueldade e dores que dilacera indivíduos e povos, e que acompanha direta ou indiretamente as realizações do progresso exterior.
b) A mania das novidades
Outros são levados a desesperar das possibilidades de restaurar a harmonia, pela atitude, grave em si, dos homens que se deixam seduzir tão fortemente pela atração das novidades que desprezam os outros valores autênticos, em particular os que sustentam a sociedade humana.
c) Barbárie progressiva
Muitos outros, enfim, capitulam, por assim dizer, diante do pessimismo total quando observam o fato lamentável de haver homens exteriormente em progresso e que se tornam interiormente não civilizados.
d) Devastações espirituais produzidas pela técnica
Se a pesquisa é levada até as raízes desses fatos, a esperança se torna ainda mais tênue porque suas causas acusam desarmonias mais profundas e prometem outras de maior gravidade. Como, pois, explicar tanta indiferença pelo direito de outrem à vida, tanto desprezo dos valores humanos, tanto rebaixamento no tom da verdadeira civilização, a não ser pelo fato de que o progresso material preponderante decompôs o todo harmonioso e feliz do homem, e como que lhe mutilou a sensibilidade a estas idéias e valores, aperfeiçoando-o unicamente numa determinada direção? A um homem nascido e educado num clima de tecnicidade rigorosa faltará necessariamente uma parte, e não a menos importante, de sua totalidade, como se ela se tivesse atrofiado sob a influência de condições hostis a seu desenvolvimento natural. Da mesma maneira que uma planta cultivada em terreno a que se subtraíram substâncias vitais manifesta uma ou outra qualidade, mas não reproduz o tipo inteiro e harmonioso, assim também a civilização "progressista", queremos dizer unicamente materialista, banindo certos valores e elementos necessários à vida das famílias e dos povos, acaba por privar o homem da faculdade autêntica de pensar, de julgar e de agir. Esta, com efeito, para captar o verdadeiro, o justo, o honesto, para ser, numa palavra, "humana", exige a máxima extensão, e isto em todos os sentidos. O progresso técnico, pelo contrário, quando aprisiona o homem em seus elos, separando-o do resto do universo, especialmente do espiritual e da vida interior, conforma-o a suas próprias características, das quais as mais notáveis são a superficialidade e a instabilidade. O processo desta deformação não parecerá misterioso se se considerar a tendência do homem a aceitar o equívoco e o erro, quando estes lhe prometem uma vida mais fácil. Examinai, por exemplo, a substituição equivoca de valores realizada pelo progresso admirável da velocidade mecânica. Fascinado por ela e transpondo as vantagens da rapidez do movimento a coisas que não esperam sua perfeição como consequência de mudanças rápidas, mas, pelo contrário, adquirem a fecundidade na estabilidade e fidelidade às tradições, o homem "das velocidades doidas" tende a se tornar na vida como que um caniço agitado pelo vento, estéril em obras duradouras e incapaz de se sustentar a si mesmo e aos outros. Equívoco semelhante resulta do desenvolvimento, admirável em si, da eficácia dos sentidos, a que os prodigiosos instrumentos modernos de pesquisa dão o poder de ver, ouvir, medir o que existe, o que se move e se transforma, quase que nos últimos recantos do universo. Orgulhoso de um poder a tal ponto acrescido, e quase inteiramente absorvido pelo exercício dos sentidos, o homem "que tudo vê" é levado, sem se dar conta, a reduzir a aplicação da faculdade plenamente espiritual de ler no interior das coisas, isto é, da inteligência, a tornar-se cada vez menos capaz de amadurecer as idéias verdadeiras de que se nutre a vida. Igualmente as aplicações múltiplas da energia material, admiravelmente aumentada, tendem dia a dia mais a encerrar a vida humana num sistema mecânico que faz tudo por si mesmo e a sua própria custa, diminuindo assim os estímulos que antes o constrangiam a desenvolver sua energia pessoal.
4. Só em Jesus Cristo há esperança de salvação
Há pois profundas desarmonias no homem novo criado pelo progresso; mas, muito embora cheias de perigo, não justificam elas o desespero dos pessimistas exagerados, nem a resignação dos inertes. O mundo pode e deve ser reconduzido à harmonia primitiva que foi o tema do Criador nas origens, quando Ele fez sua obra participar de suas perfeições (cfr. Eccli. 16, 25-26). O apoio supremo desta esperança se encontra no mistério do Natal: Jesus Cristo, Homem-Deus, autor de toda harmonia, visita sua obra. Como poderia a criatura desesperar do mundo se o próprio Deus não desespera? Se o Verbo Divino, por Quem foram feitas todas as coisas, Se fez carne e habitou entre nós, a fim de que resplandecesse finalmente sua gloria de Filho Unigênito do Padre (cfr. Jo. 1, 3 e ss.)? E como a gloria do Criador e Restaurador de todas as coisas poderia resplandecer num mundo que fosse fundado necessariamente sobre as contradições e desarmonias?
O pessimismo desses tais e sua resignação inerte não poderão jamais ser aceitos pelo Cristianismo, porque se opõem à idéia cristã do homem. Desde o princípio São Paulo se levantou contra o preconceito dos antigos, "segundo o qual a sorte dos homens era dirigida fatalmente pelas forças e movimentos da natureza. Por isto observava ele: não somos submetidos às forças da natureza, mas a Cristo que nos tornou livres e herdeiros de Deus (cfr. Gal. 4, 3-4). Toda a redenção e toda a liberdade nos vêem pois de Cristo, e não da natureza, que sempre — e hoje talvez mais, sob o império da técnica — está pronta para impor seus grilhões. O homem moderno, de sua parte, está mais exposto a voltar a ser escravo da natureza, porque, em oposição ao homem antigo, que lhe estava submetido por ignorância e fraqueza, ele está sujeito à sua forte pressão em virtude do vasto conhecimento que dela tem e da aplicação de suas energias, e portanto prestes a lhe tributar, por assim dizer, um culto de adoração e de agradecimento pelas maravilhas que nela descobre e os benefícios imediatos que dela retira.
Os apelos do Apóstolo no sentido de romper os grilhões da escravidão imposta pela natureza, através da escolha de Cristo e da adesão a Ele, são pois mais reais do que nunca. Ele, e não outro, é vosso Deus. Autor e Senhor da natureza, vosso Libertador e Salvador. Por Ele sois destinados a "vos tornardes filhos de Deus" (Jo. 1, 12), e não escravos dos elementos deste mundo; sois chamados, não a aperfeiçoar parcialmente esta ou aquela faculdade, mas a restaurar no homem inteiro a imagem perfeita de Deus, harmonia Ele próprio, e fonte de toda a ordem no cosmos.
5. Dependência necessária do temporal ao eterno
Porém, estas verdades fulgurantes, capazes de restaurar a dignidade do homem e de reanimar-lhe as esperanças, são repelidas pelos que não chegam a estabelecer uma relação de necessidade entre o eterno e o temporal, entre o Criador e as criaturas, e pelo contrário apartam Deus do mundo por se tratar de seres muito diferentes e muito distantes um, do outro, e portanto sem laços recíprocos. Todavia, a vinda do Filho de Deus à terra demonstra visivelmente as relações íntimas que ligam o contingente ao eterno. O mundo e o homem não teriam nem razão nem possibilidade de subsistir se não participassem do Ser eterno de Deus criador. O mundo criado e finito, navegando necessariamente no oceano da eternidade divina, segue-lhe, se assim podemos dizer, o curso e as leis. Com razão Santo Agostinho, bem como muitos outros sábios antigos e modernos, afirmam que o mundo, se bem que criado e contingente, é regido por uma lei suprema e eterna de onde ele mesmo tira consistência e dignidade. Com efeito, é esta lei eterna que eleva a criatura, de si finita, à dignidade de reflexo do infinito e do eterno. Ela o faz em virtude da ordem essencial inscrita em todas as coisas, e da coerência e harmonia íntimas de que está cheio o mundo.
6. Sem o reconhecimento desta dependência, toda ordem é impossível
Mas se for rejeitado o conceito mesmo da eternidade de Deus e da sua possibilidade de tornar as criaturas participantes de algo dEle próprio, será vão falar de ordem e harmonia do mundo. Com tais negações, contudo, não se extingue no homem a sede de harmonia, ordem e felicidade. O homem se vê então forçado a elevar à categoria de valor supremo o que resta, isto é, seu ser concreto finito. Colocado fora da ordem exterior do mundo e de toda a harmonia do mundo, deve escolher uma vida que não é senão uma preocupação contínua a respeito de sua existência e como que um caminho rumo à morte, embora ela retire um certo orgulho afetado de sua natureza finita. O homem moderno que não se sente ligado essencialmente ao eterno cai na adoração do finito, em meio ao qual se move e trabalha, consciente, se assim podemos nos exprimir, de si e de todo ser.
7. A ação do homem deve ser conforme à ordem universal
Mas isto é uma representação falsa da realidade, que pode causar ilusão mas não saciar a sede de verdade e as aspirações íntimas. Se os homens querem a satisfação destas, dirijam-se a Belém, onde o Verbo Eterno feito carne habitou entre nós para nos ensinar que toda atividade humana deve tirar da eternidade toda a orientação, toda a sua produtividade e sua segurança. Se a essência mesma do homem é ser imagem de Deus, também sua ação Lhe deve ser conforme, como o ensina a sabedoria quando afirma que "o agir segue o ser".
A ação do homem sobre a terra não está pois condenada à desarmonia, mas, ao contrário, destinada a manifestar a harmonia eterna de Deus. Desse modo o Verbo de Deus Encarnado liberta o homem da escravidão, salva-o do estéril fechar-se sobre si mesmo, devolve-lhe a esperança nas vias do progresso.
II — JESUS CRISTO, PENHOR DA HARMONIA NO MUNDO
1. O desígnio harmonioso da criação
De acordo com o conceito cristão de um cosmos modelado pela sabedoria criadora de Deus, e consequentemente unificado, ordenado e harmonioso, se ergue, talvez distanciada de diversos séculos, a previsão de um acontecimento solene, quando "nos céus novos e na nova terra" (cfr. 2 Pedr. 3, 13), "tabernáculo de Deus entre os homens para habitar com estes... Ele enxugará toda lágrima de seus olhos; e não haverá mais morte nem luto, nem gritos, não haverá mais dor, porque as primeiras coisas são passadas" (Apoc. 21, 1-4) ; noutros termos, as desarmonias presentes serão vencidas. Mas isto significa que a realização do desígnio harmonioso da Criação está completamente adiado? Deus, que no próprio ato de o criar, "deu ao homem o poder sobre todas as coisas que estão na terra" (Ecl. 17, 3), teria retirado sua palavra? Não, certamente. Bem ao contrário de tirar do homem o poder de dominar a terra, Deus lho confirmou no dia em que revestiu de carne humana seu Filho Unigênito, tendo "decidido reunir na plenitude dos tempos, em Cristo, todas as coisas, as que estão nos Céus e as que estão sobre a terra" (Ef. 1, 10). De sorte que Jesus Cristo, Verbo Encarnado, Deus-Homem, vindo ao mundo, desde o primeiro instante de sua existência visível, atesta que o domínio do mundo pertence em graus diferentes a Deus e ao homem, e que não poderá em consequência ser obtido a não ser no Espírito de Deus.
Em Jesus Cristo, na verdade, habitou o próprio Espírito divino (cfr. Col. 2, 9) que no princípio do tempo disse : "Que a luz seja. E a luz foi" (Gen. 1, 3); o mesmo Espírito divino que, impresso como selo indelével sobre todas as coisas criadas, é para todas, inanimadas e vivas, o elo que estabelece sua unidade, o gérmen da ordem, o acordo fundamental.
2. A espiritualidade da alma e a filosofia na cultura
Mas antes mesmo de conceber uma idéia explicita da perfeita harmonia de que é fecunda a presença de Cristo no mundo e sua conaturalidade com o homem, poderia o homem perceber em seu próprio espírito, imagem do Espírito de Deus, o elo que une e solda interiormente as coisas umas às outras. Esta feliz síntese foi, com efeito, atingida já pelos antigos filósofos de Atenas e Roma, e, com maior clareza, pelas luzes da filosofia cristã, entre outros por Santo Agostinho e pelo Aquinate. De qualquer modo, a técnica sozinha é insuficiente para reconhecer e desenvolver o gérmen divino de unidade que as coisas ocultam. Há hoje homens de ciência que crêem poder fazer abstração, ao menos por método, desta verdade, isto é, fazer como se o espírito não existisse, nada tivesse a propor, e interdizer-lhe a entrada nos laboratórios e a presença nas pesquisas. Impregnados de materialismo e sensualismo, esperam a solução das questões, unicamente de seus instrumentos e de seus cálculos, da observação atenta dos fatos, da verificação e coordenação exterior dos fenômenos. Outros, é verdade, admitem uma certa conexão, mas lógica, como dizem, à maneira de relações matemáticas, imaginando que a ordem do mundo, ainda que subtraída à égide do espírito, pode apesar de tudo ser obra da ordenação física de cada uma das partes, como numa gigantesca máquina de calcular.
Se a filosofia não bastasse para demonstrar a inconsistência de tal opinião, a própria ciência lhe daria o desmentido. Se, de fato, se observa como procederam os melhores pesquisadores e como as invenções e descobertas de máxima importância nasceram, deve-se admitir a presença ativa do espírito: é dele que provém a percepção de um laço interno que une fatos frequentemente heterogêneos, dele a finura penetrante da observação e da análise, dele o vigor da síntese que representa ao espírito a realidade verdadeira e leva a formar o julgamento definitivo.
Eis pois como a presença do espírito no agir humano é inegável e como não é possível silenciar seu testemunho no mundo, a não ser em virtude de preconceitos e da superstição: é ele testemunha de unidade, ordem, harmonia, que provêm de Deus, e sem as quais mesmo as fórmulas matemáticas aplicadas nas ciências não representariam a realidade.
Espírito e harmonia são pois testemunhas recíprocas: tal como à abundancia do espírito corresponderá sempre a abundancia da harmonia, assim também toda dissonância, onde quer que se verifique, nas ciências, nas artes, na vida, indica algum entrave à plena efusão daquele.
3. O absurdo e o mal na vida cultural
Tal reciprocidade de relações aponta à reprovação os que no domínio literário e artístico propagam o culto da desarmonia, e, como eles mesmo o afirmam, do absurdo. Que seria feito do mundo e do homem se o gosto e a estima da harmonia se perdessem? É, no entanto, isto que visam os que tentam revestir de beleza e sedução o que é vergonhoso, pecaminoso, mau. E bem mais, para além da estética sua ofensiva fere a própria dignidade do homem, que, imagem do Espírito divino, é essencialmente feito para a harmonia e a ordem. Não se nega todavia que o próprio mal possa ser representado sob a luz da arte verdadeira, desde que, entretanto, sua representação apareça ao espírito e aos sentidos como uma contradição, oposta ao espírito, como o sinal de sua ausência. A dignidade da arte resplandece tanto mais quanto em maior grau reflete ela o espírito do homem, imagem de Deus, e, consequentemente, manifesta mais sua fecundidade criadora, sua plena maturidade, quando desenvolve o tema divino da unidade e da harmonia por suas ações e pelos diferentes aspectos de sua vida.
4. Jesus Cristo no cosmos e na cultura
Contudo, por mais evidente que seja o testemunho do espírito do homem em favor da harmonia do mundo, por mais fecunda que possa ser sua ação no desenvolvimento dos embriões da ordem, a história e a vida demonstram que ele padece de uma insuficiência e de uma fraqueza intrínseca, para cuja cura foi necessário, nos desígnios do amor infinito do Criador para com sua criatura, que o Espírito mesmo de Deus se tornasse visível e se inserisse no tempo. Eis Jesus Cristo, Verbo Divino feito carne que vem ao mundo como à sua morada à sua propriedade, "in propria venit" (Jo. 1, 11).
O título desta propriedade é o título dos títulos: a criação. O mundo reflete pois, em sua extensão e em sua universalidade, extensive et diffusive, como diz São Tomás (S. Th. 1 p., q. 93, a. 2, ad 3um), a eterna bondade e verdade do Criador; e deste modo a relação de Cristo com o mundo surge penetrada de luz claríssima.
Da mesma maneira, o Criador pôs o homem, imagem de seu Espírito, no mundo a fim de que ele fosse seu senhor, pelo conhecimento, vontade, ação, tornando sua, em intensidade e em profundidade, intensive et collective (S. Th., 1. c.), a semelhança que tem com a verdade e a bondade eternas difundidas através do mundo. Aí também, consequentemente, a relação do homem com o mundo goza da clara luz do Espírito eterno comunicada pelo Criador à Criação. A Encarnação conserva assim e aumenta a dignidade do homem e a nobreza do mundo, sobre o fundamento da mesma origem no Espírito Divino, fonte de unidade, ordem e harmonia.
Se, ao invés, se retira este fundamento do espírito, e como decorrência a imagem (no homem) e o vestígio (nas criaturas desprovidas de razão) do Ser divino eterno nas coisas criadas, perde-se por isto a harmonia nas relações do homem com o mundo. O homem se reduziria a um simples ponto de localização de uma vitalidade anônima e irracional. Ele não mais estaria no mundo como em sua própria casa. O mundo se tornaria para ele algo de estranho, obscuro, perigoso, sempre exposto a perder o caráter de instrumento e transformar-se em seu inimigo.
E quais seriam as relações reguladoras da vida em sociedade sem a luz do Espírito divino e sem levar em conta a relação de Jesus Cristo com o mundo? A esta questão responde infelizmente a amarga realidade dos que, preferindo a obscuridade do mundo, se declaram adoradores das obras exteriores do homem. Sua sociedade não consegue, graças à disciplina de ferro do coletivismo, senão manter a existência anônima de uns ao lado da dos outros. Bem diferente é a vida social fundada sobre o exemplo das relações de Jesus Cristo com o mundo e com o homem: vida de cooperação fraterna e de respeito mútuo do direito de outrem, vida digna do princípio primeiro e do fim último de toda criatura humana.
5. O pecado original e seus efeitos na ordem universal
Mas a obscura e profunda desarmonia, raiz de todas as outras, que o Verbo Encarnado veio iluminar e recompor, consistia na ruptura produzida pelo pecado original, que arrastou em suas amargas consequências toda a família humana e o mundo, sua morada. O homem decaído, tendo o espírito obscurecido, não vê mais ao seu redor um mundo submisso, dócil instrumento de seu destino, mas como que a conjuração de uma natureza rebelde, executora inconsciente do decreto que deserdava seu primeiro senhor. Todavia, no homem e no mundo nunca se extinguiu a espera de um retorno à condição primeva, à ordem divina; e, segundo a frase do Apóstolo, ela se exprime pelos gemidos de todas as criaturas (cfr. Rom. 8, 22), pois, mau grado a escravidão do pecado, o homem permanece sempre a imagem do Espírito divino, e o mundo a propriedade do Verbo. Jesus Cristo veio para reanimar aquilo que a queda havia mortificado, sanar o que ela havia ferido, iluminar o que ela obscurecera, tanto no homem quanto no mundo, restituindo ao primeiro seu domínio sobre a natureza, conforme o Espírito de Deus, e subtraindo o outro ao abuso culpável do homem. Todavia, se a ruptura foi curada em sua raiz, certas consequências, dúvidas, dificuldades e dores continuam sendo a herança da natureza humana. Mas até mesmo para estes frutos do pecado Jesus Cristo é penhor de redenção e restauração.
6. Os efeitos da Redenção na ordem universal
A luz sobrenatural que resplandece na noite de Natal em Belém se projeta como novo arco-íris de pacificação sobre o porvir inteiro do mundo, "submetido à vaidade, não por sua vontade, mas pela do que a sujeitou na esperança" (ibid. 20). A esperança é ainda Jesus Cristo, que, depois de ter libertado o mundo da escravidão do pecado, libertá-lo-á também da escravidão e da corrupção, restituindo-o à liberdade dos filhos de Deus. A vida do homem e o curso do mundo estão intimamente penetrados desta espera. Se é verdade que até a alvorada do dia eterno os homens não verão a harmonia inteiramente reconstituída; se o suor e as lágrimas devem ainda banhar seu pão; se os gemidos das criaturas devem ainda repercutir sob o sol, sua tristeza não será uma tristeza de morte, mas uma angústia de mãe, segundo a fórmula tão expressiva do Divino Mestre: quando a hora é chegada, ela esquece de boa vontade toda dor porque um homem veio ao mundo (cfr. Jo. 16, 21) . O nascimento, ainda que doloroso e lento, de uma vida nova, de uma humanidade em constante progresso na ordem e harmonia, é o fim atribuído por Deus a história "post Christum natum", e todos os filhos de Deus reconduzidos à liberdade deverão para isto contribuir pessoal e ativamente.
7. O imanentismo evolucionista e a concepção católica da Historia
É portanto vão esperar a perfeição e a ordem do mundo de um certo processo imanente, de que o homem ficaria como espectador estranho, conforme afirmam alguns. Este obscuro imanentismo é a volta à antiga superstição, que deificava a natureza; e não pode basear-se, como se pretende, na história, senão falsificando artificialmente a explicação dos fatos. A história da humanidade no mundo é coisa bem diferente de um processo de forças cegas; é um acontecimento admirável e vital da história mesma do Verbo Divino; teve seu início nEle e se cumprirá por Ele no dia da volta universal ao primeiro princípio, quando o Verbo Encarnado oferecerá ao Padre, como testemunho de sua gloria, sua propriedade resgatada e iluminada pelo Espírito de Deus. Então, numerosos fatos, especialmente da história, que parecem presentemente desarmonias, se revelarão como elemento de autêntica harmonia: tal, por exemplo, o fato de que sobrevêm sem cessar novas coisas ao passo que as antigas desaparecem. Umas e outras, com efeito, participaram e participam de algum modo da verdade e da bondade divinas, e a natureza passageira de uma coisa ou de um fato não lhes tira, quando eles a têm, a dignidade de exprimir o Espírito divino. O mundo inteiro, de resto, é assim, como observa o Apóstolo: "A figura deste mundo passa, com efeito" (1 Cor. 7, 31), mas sua destinação final à gloria do Padre e ao triunfo do Verbo que se acha na origem de todo o seu desenvolvimento, confere ao mundo e lhe conserva a dignidade de testemunha e de instrumento da verdade, da bondade e da harmonia eternas". -- Publicaremos no próximo número a última parte desta Mensagem.
SÃO FRANCISCO DE SALES compara os corações firmes e sobrenaturais aos rochedos que circundavam certo lago mitológico. Quanto mais as tormentas faziam avultar a massa das águas, tanto mais cresciam os rochedos. E assim as águas nunca extravasavam. Do mesmo modo a alma fiel. Ela cresce com as tentações e provações. Por isto, confortada pela graça de Deus, nunca haverá nela extravasamentos.
Mutatis mutandis, pode dizer-se o mesmo do amor que o verdadeiro católico tem ao Papa. Quanto maiores as provações em que este se vê envolto, tanto maior o amor que lhe dedicam os fiéis.
Por isto, e com verdadeira ternura que o orbe católico considera a figura veneranda do Santo Padre Pio XII, crescendo em anos, e caminhando em meio às provações sempre maiores que afligem a Igreja Universal. E este sentimento se aviva com o transcurso dos aniversários de seu nascimento e de sua eleição, no dia 2 deste mês, e de sua coroação, no dia 12.
Entretanto, é-nos mais grato, em ocasião tão festiva, desviar momentaneamente os olhos de tantos fatores de apreensão ou tristeza, para fitá-los exclusivamente sobre os motivos de alegria e esperança. Estes não são poucos. Pensemos no maior deles.
Em sua linguagem profundamente teológica, mas viva e colorida como convém a um missionário, São Luís Maria Grignion de Montfort dizia que Nossa Senhora "pour un oeuf, donne un boeuf". Pela mais insignificante das oferendas que Lhe façamos, dá-nos Ela uma imensa retribuição. Qual será então a proteção que, em recompensa, a Santíssima Virgem reserva ao Pontífice imortal que definiu o dogma da Assunção, publicou a Constituição Apostólica "Bis Saeculari", e mais recentemente pronunciou o estupendo discurso aos participantes do II Congresso Mundial do Apostolado dos Leigos?
Os presentes aniversários de Sua Santidade transcorrem em meio às celebrações do centenário das aparições de Lourdes, em relação às quais ele tem dado tantas provas de ardente e piedosa complacência. Nossas preces sobem, pois, ao trono da Virgem Imaculada, que apareceu na rocha de Massabielle, implorando para o Vigário de Jesus Cristo aquela plenitude de dons, graças e favores que de coração lhe desejamos.
SOCIALISMO, O GRANDE ERRO ECONÔMICO DAS ELITES BURGUESAS
Luiz Mendonça de Freitas
Aos observadores superficiais das tendências da economia contemporânea, parece comprovada pelos fatos a tese de que o capitalismo evolui inelutavelmente para o socialismo e o comunismo.
Realmente, uma análise apressada da política e da economia nos países de aquém cortina de ferro revela praticas socialistas absorvidas e adotadas, com a maior naturalidade, pelas elites dirigentes. Para os observadores a que aludimos, tais contaminações tenderiam a avolumar-se até que deixasse de haver diferenças essenciais entre regimes capitalistas e socialistas.
Em matéria de observações sobre a economia moderna, há ainda outro exemplo de superficialidade. É a daqueles que acreditam que a posição intermediaria entre capitalismo e socialismo pode ser tomada como situação de equilíbrio estável, definida e coerente.
Na base destas duas interpretações das tendências da economia hodierna podem ser encontradas muitas concepções teóricas erradas, que são outras tantas consequências naturais da decadência do pensar. A prova desta decadência se encontra na incapacidade de "pensar em ordens" que se nota nas classes dirigentes do Ocidente, para não falar no povo em geral. Esta forma de pensar é o oposto da casuística. Pode-se dizer que uma das características dos políticos responsáveis pelo regime econômico nos países ocidentais consiste em encarar a solução de cada problema isolada da dos demais, como se eles não fossem, todos, partes de um sistema, e a solução de cada um não devesse levar em conta os princípios que informam esse sistema. Este desprezo pelo conjunto, esta incapacidade de perceber as inter-relações e influências recíprocas dos fatos, são responsáveis pelo abandono das posições definidas e coerentes, e pelo gosto das situações intermediarias, no campo da organização econômica e social contemporânea.
Toda sociedade se organiza de acordo com certos princípios cuja observância é necessária à sua sobrevivência. Tais princípios, uma vez admitidos, não pairam acima da sociedade, mas informam suas instituições, se concretizam em modos de agir, se cristalizam em hábitos. Em nenhum desses campos pode haver alteração sem que, por via de repercussão, o sistema seja modificado. As instituições sociais mantêm-se inabaláveis, na medida em que os membros da sociedade agem em obediência aos mesmos princípios que as informam. A compreensão desta verdade elementar é o mínimo que se deveria esperar das classes dirigentes em países onde predomina a livre iniciativa. Quando elas procuram dar soluções independentes aos problemas dos salários, dos lucros, dos impostos, da propriedade, do trabalho, etc., sem investigar as recíprocas repercussões das medidas postas em prática em cada um desses setores, essas elites mostram ignorar que, dessa maneira, se introduz no sistema de liberdade de empreendimento um fator de desequilíbrio, que posteriormente pedirá ou justificará a intervenção estatal na economia.
Apresentamos no início destas considerações duas concepções erradas a respeito de regimes econômicos: 1º) o capitalismo evolui concretamente para o socialismo; 2º) existe entre esses dois sistemas opostos uma terceira posição, resultante da combinação de elementos de ambos. Pretendemos mostrar que a aceitação desta última tese, e sua adoção na prática, é que são responsáveis pela evolução apontada. Ora, se essa evolução é fruto de uma política errada, e se essa política não é abandonada pelos Estados, podemos dizer que o deslizar da generalidade dos países chamados capitalistas para o socialismo é objetivo visado por seus governos e elites dirigentes, e não resultado de um determinismo inelutável. Mas vamos examinar o assunto por partes.
Em primeiro lugar, precisemos o sentido dos termos que estamos empregando. Com a palavra "capitalismo" designamos o sistema econômico que se baseia na livre iniciativa dos indivíduos e na aceitação do princípio da propriedade privada. Como argumentamos apenas no terreno dos princípios, não vamos nos ocupar dos abusos ou explorações que surgiram na presente realização histórica desse sistema. De acordo com a doutrina católica, em si nada tem ele de contrário à justiça. Contudo, para evitar as cargas emocionais que o termo "capitalismo" costuma desencadear, daremos, sempre que possível, preferência a expressões sinônimas: sistema de livre-iniciativa, de iniciativa particular, de livre-empresa ou de livre-empreendimento.
Sistema econômico é a organização através da qual uma sociedade procura satisfazer a suas necessidades materiais, quer individuais, quer coletivas. O mundo foi criado de tal forma que os homens nunca encontram sem esforço os alimentos e outros bens necessários à sua subsistência e à sua perpetuação sobre a face da terra. Mesmo quando os bens necessários existem em abundância, é preciso transformá-los ou transportá-los antes de consumi-los. Existe sempre uma escassez, cuja superação requer esforço e organização. É mister selecionar as necessidades a serem satisfeitas, isto é, estabelecer uma escala de prioridades para o melhor aproveitamento dos recursos disponíveis, escassos em relação às exigências totais. O normal na sociedade é que se fixem certas regras de ação que dispensarão os indivíduos de estar continuamente fazendo cálculos para aproveitar melhor os seus recursos. Num sistema econômico bem organizado, é normal atingir-se um estágio onde haja certo grau de automatização da economia, altamente vantajosa, pois desse modo as energias humanas ficam livres para atividades mais nobres. Assim como a perfeição de qualquer órgão dos seres vivos consiste em exercer suas funções silenciosamente, sem necessidade de intervenções externas, também a perfeição do sistema econômico está em funcionar sem exigir uma continua atenção do Estado e das classes dirigentes da nação.
O regime de livre-iniciativa é o que melhor atende a essa exigência. Analisemos o seu funcionamento.
Vimos que o problema a solucionar é o de adequar recursos escassos à satisfação de necessidades abundantes, as quais no seu conjunto nunca se extinguem, pois a natureza humana é tal que, satisfeita uma necessidade, logo surge outra. No sistema de livre-empresa a economia é "dirigida" pelo mercado, conceito cuja compreensão é muito simples.
Por mercado se entende o conjunto das relações que se estabelecem entre compradores e vendedores. Os compradores manifestam suas preferências por certos artigos através dos preços. Os produtos muito procurados são disputados pelas pessoas desejosas de adquiri-los. Isto se realiza por meio dos preços: os produtos muito apetecidos alcançam preços elevados. O outro elemento do mercado é a oferta, ou seja, o conjunto dos vendedores. Estes exercem suas atividades visando o lucro, e naturalmente são incitados a produzir e oferecer à venda os artigos mais procurados pelos consumidores, por serem esses os que lhes permitirão lucros mais elevados. A concorrência que assim se estabelece entre os vendedores faz com que os preços baixem e as taxas de lucros sejam mais ou menos iguais em todos os setores de atividade. O sistema econômico tende desse modo para uma posição de equilíbrio, sem necessidade de nenhuma decisão administrativa do poder público.
O sistema de preços dá a medida da escassez dos bens. A hierarquia dos preços na economia de um país é função da escassez relativa de todos os produtos que são estavelmente objeto de desejos dos consumidores. Mas, para que esse regime funcione duravelmente, é indispensável que uma regra seja observada: os preços têm que
(continua)