CONFORTAI O PAPA

(continuação)

católica. Poderia haver decepção pior? Parece que não.

Entretanto houve. Foi a atitude do governo. De há tempo, vem-se notando um mal-estar entre o gabinete pedecista e certas alas da opinião católica italiana. Índice expressivo deste fato foi o pronunciamento — de natureza pessoal, mas muito importante — que recentemente teve o Emmo. Sr. Cardeal Alfredo Ottaviani, Pro-Secretario da Suprema Congregação do Santo Oficio, sobre as relações entre a Democracia Cristã e a Ação Católica. Pouco depois, o "Osservatore Romano" se queixava da inércia do governo diante das injurias gravíssimas assacadas contra o Santo Padre pelo escritor francês Roger Peyrefitte. E não é esta a primeira vez que o órgão oficioso do Vaticano lamenta que as autoridades italianas não tenham assumido, face a injurias contra o Vigário de Jesus Cristo, a atitude firme e severa que as leis lhes facultam.

Como se vê, os motivos de apreensão, para o Soberano Pontífice, não são poucos nem pequenos. Depois de Pio XII se ter sentido objeto de uma popularidade sem discrepâncias nem nuvens, como poucas vezes conheceu algum Antecessor seu, parecem acumular-se os sinais de tormenta, precisamente nos pontos do horizonte onde menos ela seria de se esperar.

Quando o processo do Bispo de Prato estiver a ponto de ser decidido em segunda instância, e a ação afinal empreendida pelo governo italiano contra o Sr. Peyrefitte estiver na iminência de ser julgada, qual será o ambiente? Ter-se-á distendido? É bem possível. Ter-se-á carregado ainda mais? Impossível não é. É diante desta dolorosa incerteza que nos encontramos. E é com ela na mente e no coração, que passaremos a Semana Santa.

Assim, pensando nos méritos infinitos da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, pediremos antes de tudo ao Divino Redentor que console e conforte seu Vigário, o Papa Pio XII. Que oriente, fortifique, ampare todos aqueles que, em qualquer esfera de influência, podem auxiliar o Papa, e lutar por ele. Que por fim o Espírito Santo baixe com uma abundância de graças maior do que nunca, sobre a ilustre nação italiana, para que, neste momento de prova, tudo quanto nela há de forças ativas e sadias se ponha sob as ordens do imortal Pontífice que rege hoje a Igreja Universal.

A despeito das tristezas da hora presente, é simplesmente incalculável o que a Itália conserva em si de tradições cristãs, de energias culturais e sociais retas, de verdadeira fé. Horas como esta, de incerteza e apreensão, podem constituir uma grande graça, que confirme no bem os rumos de um povo e desconcerte todos os planos da impiedade.

Mas de que valem estas preces, se não forem apresentadas por intermédio da Medianeira de todas as graças? Que Nossa Senhora das Dores recolha misericordiosamente estes anelos que nos são inspirados por ardentíssimo amor ao Papa e ao Papado.

Nossa Semana Santa será assim grata a Deus, porque transcorrerá num intenso amor ao Pontífice Romano, o que é maneira inexcedível de amar a Igreja e Jesus Cristo, Senhor Nosso.

(1) Cf. "Jeanne d'Arc", de H. Wallon, Paris, 1876, p. 281.


ESCREVEM OS LEITORES

TRANSMISSÃO DO PODER. DIREITO DE REBELIÃO

Sr. Pedro M. Guimarães Ferreira, Rio de Janeiro (D. Federal): “... uma pergunta: afirma Leão XIII na "Diuturnum Illud" que por meio da eleição do soberano o povo apenas o escolhe, mas não lhe confere o direito de mandar, tal direito vindo diretamente de Deus. Por outro lado, o eminente teólogo jesuíta F. Suarez nos diz que o poder vem de Deus através do povo. Pergunto: a questão está aberta entre os católicos, ou o pronunciamento de Leão XIII obriga pelo menos a um silencio obsequioso? Mais: como conciliar os ensinamentos de Leão, XIII com o direito que o povo tem em certas condições, de tomar o poder do soberano tirânico".

R— A doutrina católica afirma, com São Paulo (Rom. 13, 1 e ss.), que todo poder vem de Deus, e que quem resiste à autoridade, resiste à ordenação divina. O Apóstolo fala explicitamente do poder civil, do que governa os Estados, dirige os povos. A origem divina do poder é ponto pacífico entre os teólogos. Nem poderia deixar de sê-lo, uma vez que constitui doutrina revelada.

Onde há controvérsia é quando se estuda o modo pelo qual o soberano sobe legitimamente ao trono, ou, num outro regime político, o supremo magistrado ascende ao poder. É evidentemente impossível estabelecer uma fórmula de tal maneira geral que sirva de critério para julgar da legitimidade de todo e qualquer governo. O sistema de sucessão na magistratura suprema varia segundo as vicissitudes históricas, as circunstâncias que eventualmente influam sobre as condições de um povo, de modo que, em uma mesma nação, podem muito bem se encontrar, em diversas épocas, maneiras diferentes de se constituir o governo, e todas elas legítimas.

Na própria Igreja, a eleição do Papa não foi feita sempre, como hoje, pele Colégio dos Cardeais; outras formas de prover o trono de Pedro foram, a seu tempo, legítimas. A variação atingiu apenas o fato humano, que obedece às contingências humanas.

Por isso, nem todos aceitam uma sistematização, atribuída a Suarez, segundo a qual a legitimidade do governo se condicionaria a uma ingerência do povo. De acordo com semelhante teoria, o poder, que vem de Deus, não desce diretamente sobre o governante, mas sobre o povo; este, por sua vez, não o retém: transfere-o, de modo absoluto, ao soberano.

Esta sentença, como se pode ver facilmente, dista da opinião revolucionaria do Contrato Social. Para Rousseau, o governo não passa de mandatário do povo, podendo este, quando lhe aprouver, destituir seu mandatário e delegar poderes a outro. Segundo os autores católicos aqui considerados, o povo, uma vez determinado o governante, deve-lhe obediência como a legítimo superior, submissão igual à que lhe deveria se em nada tivesse contribuído para sua ascensão ao poder. O que se passa em diversas Ordens e Congregações Religiosas pode esclarecer melhor o assunto. É sabido que os Provinciais da Companhia de Jesus são nomeados pelo Superior Geral; e os Abades beneditinos são eleitos pelas respectivas comunidades. Pois bem: a obediência que deve o Monge a seu Abade não é menor do que a devida pelo Jesuíta a seu Provincial, nem de espécie diferente. A maneira de determinar a pessoa do superior não influi sobre o caráter da obediência que lhe devem os súbditos. O mesmo se deve dizer com relação ao poder civil, na opinião dos autores que apelam para Suarez.

* * *

Há, desta mesma opinião, uma formulação mais lógica. O povo, de fato, nunca pode reger-se a si mesmo. Tem necessidade de ser regido por alguém. Tal verificação levou, com razão, vários teólogos a mitigar a sentença atribuída a Suarez. Segundo estes últimos, o poder não vem de Deus sobre o povo, para que este o passe ao governante. A razão é exatamente que o povo, como tal, não pode governar, e Deus não faria a inutilidade de lhe dar um poder frustro. Não obstante, não está ele totalmente afastado de uma participação no governo, pois lhe compete determinar a pessoa que governa, e também, de certo modo, o sistema de governo. O poder, portanto, vem de Deus, e desce sobre o soberano, porém mediante o povo, no sentido de que a este compete determinar quem há de reger seus destinos.

Tal opinião tem foros de cidadania em Teologia, e pode ser admitida por qualquer católico. Não constitui, no entanto, doutrina da Igreja, que deva ser aceita por todos. Assim, não se podem condenar aqueles que fazem restrições a semelhante posição, no que ela tem de exclusivo. Que, em certos povos, em determinadas condições históricas, assim se proceda, nada de mais; mas parece excessivo inculcar sistematicamente essa maneira como única admissível, ou, em outras palavras, dizer que a autoridade só é legítima quando obtém o consentimento do povo. Tanto mais que, segundo o governo normal da Providência, há na sociedade pessoas mais dotadas para o mando, e que por isso mesmo têm certo direito de exercê-lo. O povo não pode desconhecer este fato. Sua função consiste, pois, não tanto em escolher arbitrariamente um entre muitos, quanto em reconhecer aquele que, na ordem concreta e natural das coisas, tem, segundo a justiça distributiva, direito ao mando.

Tais considerações — acreditamos — respondem à primeira parte da questão apresentada por nosso consulente: não há oposição entre o que afirma Leão XIII e a tese de Suarez.

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Quanto à segunda parte — a tirania que daria ao povo o direito de destituir o déspota — é preciso caminhar com muita cautela. Na Encíclica "Quod Apostolici Muneris", Leão XIII tem a seguinte afirmação: "Se acontecer alguma vez que o poder público seja exercido pelos príncipes temerariamente e ultrapassando os limites da justiça, a doutrina da Igreja Católica não permite que os súbditos se revoltem contra eles, com receio de que a tranquilidade da ordem fique mais perturbada do que antes, e por isso a sociedade sofra um prejuízo ainda maior. E quando as coisas chegarem ao ponto de já não brilhar esperança alguma de salvação, a Igreja ensina que o remédio deve ser rogado e apressado pelos merecimentos da paciência cristã e com fervorosas orações". Este ensinamento pontifício deve guiar toda consideração sobre o assunto. O mínimo que se pode concluir das palavras de Leão XIII é que o povo não tem liberdade para, em qualquer caso de tirania, sublevar-se e depor o governante. É o mínimo. Sem perder de vista, portanto, a lição do imortal Pontífice, consideremos que o soberano não possui a nação como bem particular, como parte de seu patrimônio. Ela lhe pertence como o corpo pertence à alma. Quer dizer, soberano e povo fazem um todo, como alma e corpo compõem a natureza humana, que é uma só. E embora a alma seja forma do corpo, lhe dê vida, sensibilidade, movimento, não pode dispor dele segundo seu alvedrio. Governa-o e dirige-o em vista de um fim preestabelecido pelo Senhor da natureza; e assim o aperfeiçoa e lhe proporciona a plenitude da existência que lhe é conveniente. Analogamente, o soberano é, em certo sentido, parte capital da nação, e deve dispensar-lhe o cuidado e carinho que a alma dispensa, por assim dizer, a seu corpo. Se não o fizer, se sua ação for, não somente falha, mas de fato conducente à total ruína do país, especialmente à ruína espiritual, e houver certeza moral de que a sociedade retomará o rumo normal com a substituição do que a governa, em tal caso o povo, através das classes que o representam normal e legitimamente (pois, de modo geral, o povo por si é incapaz de uma ação ordenada), tem o direito de depor o governo, substituindo-o por outro. Mas não por qualquer outro, a seu arbítrio, senão por quem tenha a capacidade e a virtude exigidas pelo bem da nação, e título que justifique sua ascensão ao poder soberano.

Assim pensam sociólogos católicos. E esta opinião não parece oposta ao ensinamento de Leão XIII. Com efeito:

1) não há que temer "que a tranquilidade da ordem fique mais perturbada do que antes, e por isso a sociedade sofra um prejuízo ainda maior", pois, ex hypothesi, a substituição só se permite quando há certeza moral de que a tirania acabe e a sociedade retome sua rota natural;

2) do mesmo modo, na hipótese por nós figurada, "as coisas" não chegaram "ao ponto de já não brilhar esperança alguma de salvação";

3) esta opinião não pressupõe o conceito revolucionário de que o governo emana do povo e, portanto, pode este retomar o poder que delegou. De fato, a hipótese: a) não atribui em princípio a qualquer parte do povo a iniciativa, senão somente às classes sociais que normalmente o devem orientar; b) não permite que essas classes tomem o poder para si sem atenção ao bem comum, mas sim que substituam o governante por outro que apresente títulos para o cargo. Supõe, isto sim — e é conforme à realidade — que o povo não está sujeito ao arbítrio do soberano, como a coisa a seu criador. O governo é uma das partes da nação com as obrigações inerentes ao seu oficio.

NOSSA la PÁGINA

Calvário de Pleyben, no Finisterra, Bretanha.


«O cristão, defensor ardoroso da ordem providencial do universo»

“É assim que São Paulo via o cristão no mundo quando lhe mostrava os adversários de Deus e o exortava a revestir sua armadura a fim de resistir aos embustes do demônio, cingindo os rins com a verdade e revestindo a couraça da justiça”.

No número passado publicamos a introdução e as duas primeiras partes da Mensagem de Natal pronunciada por Sua Santidade o Papa Pio XII no dia 22 de dezembro do ano findo. Trazemos agora ao conhecimento de nossos leitores a terceira e última parte dessa importante alocução, cujo texto traduzimos do "Osservatore Romano" de 27 do mesmo mês (edição em língua francesa) .

Os subtítulos são de autoria desta redação.

III - JESUS CRISTO, LUZ E VIDA PARA OS HOMENS A FIM DE ESTABELECER A HARMONIA NO MUNDO

1. — A luta entre o bem e o mal

A onipotência dAquele que "faz tudo aquilo que quer" (Sl 115, 3), assistido por sua sabedoria infinita que "se estende com força de uma extremidade à outra e governa todas as coisas com doçura" (Sab. 8, 1), estabeleceu a grande lei da harmonia, que enche o mundo e lhe explica os acontecimentos. O Espírito de Deus, que nas origens presidiu do alto à criação, como que se difundiu nela; e quando na plenitude dos tempos, por obra do Amor misericordioso, o próprio Verbo Eterno, ao encarnar-Se, inseriu-Se nela pessoalmente, tomou posse dela visível e definitivamente. "Jesus Cristo, ontem e hoje; e Ele também eternamente" (Hebr. 13, 8). O universo se apresenta desse modo como uma sinfonia admirável, ditada pelo Espírito de Deus e cujo acorde fundamental brota da fusão das perfeições divinas: a sabedoria, o amor, a onipotência. "Domine, Dominus noster, quam admirabile est nomen tuum in universa terra" (Si. 8, 2)!

Todavia, para os que, com o Salmista, têm ouvidos para ouvir na alegria, a sinfonia divina que ressoa no mundo, e para os cristãos mais que todos os outros, a criação não é somente um fato estético oferecido ao homem para seu prazer, para suscitar unicamente o louvor de seu Autor supremo. Já no princípio, Deus, ao estabelecer o homem numa dignidade superior à de todas as obras de suas mãos, lhe havia submetido todas as coisas, mesmo os céus, a lua e as estrelas, modelados por seus dedos (cfr. Sl. 8, 4), numa palavra, o mundo, a fim de que nele trabalhasse e conservasse sua harmonia (cfr. Gen. 2, 15). Mas Jesus Cristo mesmo, que é testemunha e penhor da harmonia do mundo, demonstrou pelo exemplo de sua vida e de sua morte que contribuição ativa, laboriosa, deve o homem trazer à conservação dessa harmonia, a seu desenvolvimento e — quando ela falta — a seu restabelecimento. A obra de restauração realizada por Jesus Cristo foi por Ele próprio definida como uma luta contra o "príncipe deste mundo", e seu epílogo como uma vitória: "Ego vici mundum" (Jo. 12, 31; 16, 33) .

A sinfonia divina do cosmos, particularmente na terra e entre os homens, é confiada por seu Autor supremo à própria humanidade, a fim de que esta, como uma imensa orquestra, distribuída no tempo e multiforme em seus meios, mas unida sob a direção de Jesus Cristo, a execute fielmente, interpretando com a maior perfeição possível seu tema único e genial. Deus, com efeito, entregou ao homens seus desígnios, a fim de que os ponham em ato, pessoal e livremente; empenhou a plena responsabilidade moral deles e exigiu, quando necessário, fadigas e sacrifícios, a exemplo de Jesus Cristo. Sob este aspecto, o cristão é, em primeiro lugar, um admirador da ordem divina no mundo, aquele que ama sua presença, e tudo faz para vê-la reconhecida e afirmada. Ele será, pois, necessariamente seu defensor ardoroso contra as forças e as tendências que lhe contrariam a realização, quer se escondam nele mesmo — as más inclinações — quer provenham do exterior — Satanás e suas superstições. É assim que São Paulo via o cristão no mundo quando lhe mostrava os adversários de Deus e o exortava a revestir sua armadura a fim de resistir aos embustes do demônio, cingindo os rins com a verdade e revestindo a couraça da justiça (cfr. Ef. 6, 11 e 14). A vocação para o Cristianismo não é, pois, um convite de Deus apenas ao comprazimento estético na contemplação de sua ordem admirável, mas o chamado obrigatório a uma ação incessante, austera e dirigida para todos os sentidos e visando todos os aspectos da vida. Sua ação se desenvolve, antes de tudo, na plena observância da lei moral, qualquer que seja o seu objeto, pequeno ou grande, secreto ou público, de abstenção ou de realização positiva. A vida moral não pertence a tal ponto à só esfera interior, que não toque também, por seus efeitos, a harmonia do mundo. Nenhum acontecimento há, mesmo inteiramente particular, em que o homem esteja de tal modo sozinho, de tal modo individual e confinado em si mesmo, que suas determinações e seus atos não tenham repercussões no mundo que o envolve. Executor da sinfonia divina, nenhum homem pode presumir que sua ação é um negócio que lhe diz respeito exclusivamente. A vida moral é sem dúvida, em primeiro lugar, une fato individual e interior, mas não no sentido de um certo "Interiorismo" e "Historicismo" pelo qual alguns se esforçam em enfraquecer e rejeitar o valor universal das normas morais.

2. - A participação do homem nessa luta

A cooperação na ordem do mundo, pedida por Deus ao cristão em geral, deve igualmente evitar um espiritualismo que desejaria interdizer-lhe toda intervenção nas coisas exteriores e que, adotado outrora no campo católico, ocasionou graves prejuízos a causa de Jesus Cristo e do Divino Criador do universo. Como, pois, seria possível sustentar e desenvolver a ordem do mundo se se deixasse plena liberdade de ação aos que não a reconhecem ou não querem que ela se fortaleça? A intervenção no mundo para sustentar a ordem divina é um direito e um dever que fazem intrinsecamente parte da responsabilidade do cristão e lhe permitem empreender legitimamente toda e qualquer ação, privada pública ou organizada, capaz de atingir seu fim.

Para fugir a esta responsabilidade, não basta alegar pretextos subtis inventados para escusar a inércia de alguns, cristãos, ou sugeridos por injustificada inveja dos adversários, em particular se se afirma que a ação do cristão no mundo mascara uma avidez do poder estranha à fé cristã, ao espírito de Jesus Cristo, excita a aversão pela fé cristã naqueles que já estão mal dispostos, provém da desconfiança para com Deus e sua Providência onipotente, e reflete a arrogância dá criatura. Há mesmo alguns deles que insinuam ser sabedoria cristã o retorno à pretensa modéstia de aspirações das catacumbas. Prudente seria, pelo contrário, voltar à sabedoria inspirada do Apóstolo Paulo, que, escrevendo à comunidade de Corinto com ousadia digna de sua grande alma, mas fundada sobre a plena soberania divina, abria todos os cantinhos à ação dos cristãos: "Tudo é vosso... tanto a vida quanto a morte, tanto as coisas presentes quanto as futuras: pois tudo vos pertence. Vós, porém, sois de Cristo e Cristo é de Deus" (1 Cor. 3, 21). Ele deveria até considerar como um opróbrio o fato de se deixar ultrapassar pelos inimigos de Deus em ardor no trabalho, em espírito de empreendimento e mesmo de sacrifício. Não existem terrenos fechados nem direções interditas à ação do cristão: nenhum domínio da vida, nenhuma instituição, nenhum exercício de poder podem ser proibidos aos cooperadores de Deus para sustentar a ordem divina e a harmonia do mundo.

3. — "Ghetto" católico?

Esta intervenção não sugere de modo algum a idéia de uma ação que se mantenha separada e, por assim dizer, cheia de ciúme em relação a contribuição de outrem. Já por diversas vezes temos dito que os católicos podem e devem admitir a colaboração com os outros se a ação destes e o entendimento com eles são capazes de contribuir verdadeiramente para a ordem e a harmonia do mundo. Todavia, é necessário que os católicos se capacitem primeiro daquilo que podem e daquilo que querem; é preciso, portanto, que sejam preparados espiritual e tecnicamente para o que se propõem a si mesmos. Em caso contrário, não trarão nenhuma contribuição positiva e menos ainda o dom precioso da verdade eterna à causa comum, e ocasionarão dano evidente à honra de Jesus Cristo e às suas próprias almas.

Isto dito, não é justo atribuir ao espírito de "intolerância" e de segregação, frequentemente chamado "ghetto", o fato de os católicos se esforçarem por basear a escola, a educação e a formação da juventude sobre um fundamento cristão; de se esforçarem por instituir organizações profissionais católicas, favorecer a influência organizada dos princípios cristãos até mesmo no domino político e sindical, quando a tradição e as circunstâncias o aconselham. Não foi apenas a "idéia" cristã puramente abstrata que criou no passado a elevada civilização de que justamente se ufanam as nações cristãs, mas também as realizações concretas dessa idéia, isto é, as leis, as ordenações, as instituições fundadas e promovidas por homens que trabalhavam para a Igreja e agiam sob sua direção ou pelo menos sob sua inspiração. A Hierarquia católica não teve exclusivamente o cuidado de que a luz da fé não se extinguisse, mas, por obras concretas de governo, de disposição, de escolha e designação de homens, constituiu este conjunto complexo de organismos vivos que, ao lado de outros que não lhe pertencem, estão na base da sociedade civil.