ESTRUTURA MECÂNICA OU COLABORAÇÃO ORGÂNICA
(continuação)
ano de 1943 elevou sua voz para alertar seus companheiros da A. C. sobre os riscos que a associação corria.
VOLTA À NORMALIDADE, NO CLIMA DO APÓS-GUERRA
Alguém colocado muito alto, a cujos olhos perspicazes se abria o panorama da Ação Católica Italiana e mundial, tinha sucedido a Pio XI: o Cardeal Eugenio Pacelli, o Papa atual. Sua Santidade conhecia de perto a história da antiga Ação Católica federativa e a evolução da Ação Católica Italiana, com seus prós e contras tão variáveis na mutabilidade das circunstâncias modernas. Via, do alto do Vaticano, o grave equívoco cometido em muitos países, que, sem terem os problemas do fascismo, organizavam o seu laicato de acordo com o esquema italiano. E sentia também o mal-estar generalizado que se propagava em todo o mundo, Itália inclusive, produzido por tal organização unitária.
Sua Santidade empreendeu a reforma da Ação Católica na Itália e nos países que lhe tinham seguido o exemplo. Logo no início de seu Pontificado, deu o primeiro passo nesse sentido. Restituiu à Hierarquia local a direção da Ação Católica Italiana, que até então era dirigida pelo Papa pessoalmente. Foi urna reforma de imensas repercussões práticas. As condições anormais do regime fascista haviam criado para a Igreja uma situação excepcional. Mas o Santo Padre estava resolvido a restabelecer a normalidade. A instituição da Comissão Cardinalícia da Ação Católica modificava o panorama na Itália.
Pouco depois da guerra, em 1948, o Pontífice reinante promulgou uma lei universal, a Constituição Apostólica "Bis Saeculari Die". Esse documento dava normas jurídicas claras para resolver o problema da natureza do apostolado das Congregações Marianas, e de sua relação com a associação denominada Ação Católica. A "Bis Saeculari Die" é a manifestação mais importante que nestes últimos tempos emanou da Santa Sé no campo do apostolado dos leigos: os restantes documentos são de autoridade inegável, mas não possuem o cunho de lei, o caráter universal, a singular clareza de formulação e precisão de conceitos que uma Constituição apostólica comporta.
Na "Bis Saeculari Die" foram corrigidos, explícita ou implicitamente, muitos conceitos errados que estavam em voga: por exemplo, a teoria da participação ontológica, do mandato hierarquizante, do monopólio do apostolado, da quase sacramentalidade do compromisso da A. C., da reforma do Código de Direito Canônico, da diferença essencial entre a associação denominada Ação Católica e as outras associações. A Santa Sé decretava autenticamente que jamais tinha havido uma Ação Católica superior essencialmente aos demais quadros do laicato, a pairar entre os Bispos e os leigos; que desde o seu início as Congregações Marianas tinham sido uma forma perfeita, modelar, de Ação Católica sob a égide de Maria Santíssima, e que não lhes faltava nenhum elemento para ser Ação Católica "pleno jure".
Implicitamente Sua Santidade declarava mais que as mesmas razões que faziam da Congregação Mariana uma forma exímia de A. C. se podiam encontrar em outras associações. E realmente, em várias oportunidades, Pio XII ensinou que outras associações realizavam "pleno jure" a Ação Católica ideal. Assim as Ligas do Sagrado Coração, que correspondem mais ou menos ao nosso Apostolado da Oração, e as Companhias dos Salesianos.
A "BIS SAECULARI DIE" E A REFORMA DOS ESTATUTOS DA A. C. B.
O Brasil tem desempenhado um grande papel na evolução jurídica da Ação Católica, e a contribuição brasileira tem sido bem superior à de outras nações.
Em 1950, Sua Santidade ordenou que fossem reformados os estatutos da Ação Católica Brasileira, de acordo com a "Bis Saeculari Die". A vida das nossas organizações de apostolado tem se passado, nestes últimos oito anos, sob o signo desta adaptação jurídica.
Vários esquemas e projetos têm sido apresentados. Duas são as tendências que se notam neste intenso esforço de adaptação do imenso organismo das associações religiosas brasileiras aos ditames da lei pontifícia.
Alguns projetos guardam a essência da organização adotada pelos estatutos de 1935, dando à Ação Católica unitária um lugar proeminente, de associação ímpar, e concedendo às Congregações Marianas a situação apenas de setor dela. Outros esquemas vão corajosamente ao cerne da questão. O Exmo. Revmo. Sr. Bispo de Campos, D. Antonio de Castro Mayer, com a visão clara que o caracteriza, alvitra uma dupla modificação no esquema geral da A. C. B.
S. Excia. propõe previamente uma mudança de nome da Ação Católica associação, a fim de que não haja equívoco ao se tratar do assunto. Realmente, quem estuda os documentos relativos à Ação Católica, nota a ambivalência do termo. Às vezes designa ele todo apostolado leigo feito sob as ordens da Hierarquia, e neste caso a Congregação Mariana é Ação Católica; e outras vezes, designa a Ação Católica unitária, e então a Congregação Mariana não é Ação Católica. Sugere o Sr. Bispo de Campos que se reserve o vocábulo "Ação Católica" para a acepção genérica, dando-se o nome de Ligas Apostólicas, ou outro, à associação ora chamada Ação Católica.
Seria a mudança da nomenclatura, com o fim de criar uma terminologia clara e unívoca. Em seguida, S. Excia. recomenda a organização da Ação Católica Brasileira como federação de todas as associações que exercem apostolado sob as ordens da Hierarquia.
Colaborando com o Sr. Bispo de Campos, em atenção a um apelo de vários Exmos. Prelados; tive ocasião de apresentar a proposta de que se considerassem como partes integrantes da Ação Católica federativa três classes de associações: 1.o) as aprovadas pela Santa Sé como associações de apostolado; 2.o), as aprovadas pelo Venerando Episcopado Nacional como associações de apostolado; 3.o) dentro da A. C. Diocesana, aquelas associações pelo Bispo fundadas e munidas do mandato apostólico.
PROVIDÊNCIAS DA SANTA SÉ PELA CONCÓRDIA ENTRE AS FORÇAS CATÓLICAS
O assunto foi apresentado oficialmente a Roma. Aquilo que, para o olhar curto de um observador menos informado, pareceria uma ousada inovação, aos olhos de quem vê o mundo do alto do Vaticano era uma idéia clara e experimentada. Realmente, o esquema italiano, adotado em geral nos países latinos, não o foi no resto do mundo. Assim pôde a Santa Sé estudar as vantagens e desvantagens de ambos os sistemas - o unitário e o federativo – e no momento azado, dar diretrizes sabias e inspiradas.
A ação da Santa Sé, porém, foi preparada de longa data. Em 1951, reunia-se, convocado pelo Santo Padre, o I Congresso do Apostolado dos Leigos. Iniciativa nova, de grande repercussão (2). Dois anos depois, criava-se a Federação Mundial das Congregações Marianas, com um Presidente nomeado pelo Papa (3). Roma colocava as pedras no tabuleiro. Afinal, em setembro de 1957, no II Congresso do Apostolado dos Leigos, o Santo Padre apresentou a solução por que tanto se anelava: Ação Católica federativa, e não unitária. É de tamanho alcance para as Congregações Marianas este passo que a Santa Sé deu, que é mister estudá-lo mais pormenorizadamente. Eis as palavras do augusto Pontífice:
"Parece necessário, a esta altura, tornar conhecida, pelo menos em suas grandes linhas, uma sugestão que Nos foi comunicada muito recentemente. Assinala-se que reina atualmente um mal-estar lamentável, muito amplamente difundido, que encontraria sua origem principalmente no uso do vocábulo Ação Católica. Este termo, com efeito, seria reservado a certos tipos determinados de apostolado leigo organizado, para os quais cria diante da opinião uma espécie de monopólio: todas as organizações que não entram no quadro da Ação Católica assim concebida - afirma-se - apresentam-se com menor autenticidade, com importância secundaria, parecem menos apoiadas pela Hierarquia, e ficam como que a margem do esforço apostólico essencial do laicato. Daí decorreria que uma forma particular de apostolado leigo, isto é, a Ação Católica, triunfa em detrimento das outras, e que se assiste ao açambarcamento do gênero pela espécie. E muito mais, ainda, chegar-se-ia na prática a lançar o veto e fechar a Diocese aos movimentos apostólicos que não trazem a etiqueta da Ação Católica.
"Para resolver esta dificuldade, consideram-se duas reformas práticas: uma de terminologia e, como corolário, outra de estrutura. Primeiramente, seria necessário restituir ao termo Ação Católica seu sentido geral e aplicá-lo unicamente ao conjunto dos movimentos apostólicos leigos organizados e reconhecidos como tais, nacional ou internacionalmente, quer pelos Bispos no plano nacional, quer pela Santa Sé para os movimentos que visam ser internacionais. Bastaria então que cada movimento particular fosse designado por seu nome e caracterizado em sua forma especifica, e não segundo o gênero comum. A reforma de estrutura seguiria à da fixação do sentido dos termos. Todos os grupos pertenceriam à Ação Católica e conservariam seu nome próprio e sua autonomia, mas formariam, todos conjuntamente, como Ação Católica, uma unidade federativa. Cada Bispo ficaria livre de admitir ou recusar este ou aquele movimento, de mandatá-lo ou não, mas não lhe competiria recusá-lo como não sendo de Ação Católica por sua própria natureza". Até aqui as palavras luminosas do Santo Padre.
O SENTIDO DA AUGUSTA SUGESTÃO PAPAL
Estas idéias esposadas pelo Sumo Pontífice têm sido aventadas e defendidas no Brasil, desde 1948, e não são mais do que a consequência clara e lógica da situação jurídica criada com a "Bis Saeculari Die". Sua Santidade propõe, pois, um uso unívoco do termo “Ação Católica”. Tal termo fica reservado ao gênero: apostolado oficial dos leigos, em contraposição ao apostolado livre dos leigos. Com isto uma grande fonte de confusão e incerteza é abolida, e torna-se possível falar e escrever, discutir e legislar sobre este assunto, sem provocar contínuos mal entendidos. Na disputa do Arianismo a Igreja manteve com implacável energia a univocidade do termo "Homo-ousios", a fim de cortar as manobras confusionistas dos adversários: assim o Papa propõe a univocidade rigorosa da palavra "Ação Católica". Ele o faz, porém, restituindo a esta o seu significado antigo e primitivo.
Na realidade, a restituição do sentido genérico do vocábulo "Ação Católica" é apenas o caminho para a realização de algo muito mais profundo: uma reforma da estrutura jurídica correspondente a este vocábulo. O Papa atinge o âmago da questão, ao propor a reforma da estrutura e ao apresentar o tipo de Ação Católica federativa em oposição à Ação Católica unitária e monopolizadora. Dizem as revistas européias que esta dupla proposta do 'Santo Padre causou imensa impressão sobre os membros do Congresso do Apostolado dos Leigos e sobre os dirigentes da Ação Católica da Itália e das demais nações que, como na América Latina, tinham adotado a fórmula italiana. Realmente, tal proposta representa o fim de trinta anos de monopólio, implantado entre as forças do laicato de vários países sob a alegação de ser esta a idéia e a vontade da Santa Sé. O discurso pontifício mostrou que, na realidade, Roma pensa de outra maneira. No Brasil, em muitas Dioceses, a palavra do Papa não causou surpresa. Era esperada e aguardada, como norma de orientação, e como resposta, seja aos muitos alvitres e exposições que os membros do Episcopado tinham apresentado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, seja às consultas dirigidas à Santa Sé, como fizeram os Bispos da Província Eclesiástica do Paraná.
ESCLARECIMENTO PRECIOSO PARA O BRASIL
A sabia proposta do Sumo Pontífice veio trazer intensa luz ao grande problema que ocupa o Episcopado Nacional desde 1948. Duas definições da Ação Católica têm sido objeto de estudos dos Srs. Bispos ao deliberarem sobre o texto dos estatutos da A. C. B. A primeira é do seguinte teor: "A Ação Católica Brasileira" (unitária) "é o apostolado oficial dos leigos no Brasil, para imediata colaboração com o apostolado hierárquico da Igreja". Nesta definição somente a associação denominada Ação Católica, unitária e monopolizadora, exerce o apostolado oficial. O segundo texto é: "A Ação Católica Brasileira é a coligação de todas as associações de leigos que, seguindo os seus estatutos regularmente aprovados pela Autoridade Eclesiástica, têm como finalidade - única ou não - o exercício do apostolado". Esta segunda definição corresponde exatamente à dupla reforma que o Papa preconiza: univocidade do termo e caráter federativo da Ação Católica. Dentro desta concepção pontifícia, a Congregação Mariana, a IOC, a JUC, etc., serão associações federadas ou coligadas, todas em pé de igualdade, recebendo desta sua coligação aquele estímulo e aquela unidade de orientação que fecundam e tornam eficazes os trabalhos das forças unidas. Cada associação conserva os seus estatutos aprovados; aquelas que ainda não os possuem, terão de redigi-los e fazê-los aprovar, a fim de receberem da Autoridade Eclesiástica a existência legal, e poderem ingressar na Federação das associações que fazem apostolado oficial. Assim a Santa Sé ensina que as organizações que outrora se chamavam fundamentais não constituem uma categoria especial, mas, juntas com as demais que antes se chamavam auxiliares, formam, em pé de igualdade, uma Ação Católica federativa.
O fim desta reforma de estrutura é duplo. Primeiro, acabar com o mal-estar generalizado e lastimável que a sobrevivência do tipo unitário, nascido da necessidade de resistir à pressão do totalitarismo, estava causando nos países que o tinham adotado. Vê a Santa Sé os inconvenientes que este mal-estar tem provocado. Se olharmos para o Brasil, podemos disto dar testemunho. Desde 1935 a harmonia desapareceu em certos setores do apostolado leigo: Movimentos promissores se estiolaram. Um exemplo: o surto do marianismo, que em 1936 avassalava o Brasil, decresceu de intensidade. Hoje, não poucas Congregações Marianas, outrora florescentes, apresentam sintomas de franco retrocesso, quer quanto ao número de seus membros, quer quanto à eficiência de seu apostolado. Mas as falanges marianas não foram substituídas.
PROMISSORAS PERSPECTIVAS DE COOPERAÇÃO
Sua Santidade vem dar remédio a todos estes males, criando um estatuto jurídico claro e adaptado à atual realidade católica. Com isto o augusto Pontífice consegue o segundo objetivo da reforma: aumentar a eficiência do apostolado. Uma vez que a forma italiana não é preconizada como ideal, podem as várias nações agrupar as forças vivas do apostolado leigo segundo sua própria realidade, sua mentalidade, suas tradições e experiências. As grandes organizações tradicionais se vêem prestigiadas e aproveitadas, e, ombreando fraternalmente com suas congêneres novas, formam um exército coordenado, em que cada tropa especializada tem seu campo próprio, e a direção central garante a eficiência do conjunto. A reforma que o Sumo Pontífice preconiza não atinge todos os povos. Alguns, como as Filipinas, os Estados Unidos, a Alemanha, a Holanda, a Índia, a Indonésia, pouco ou nada terão de mudar. Não tendo seguido o modelo unitário, escolheram o federativo. Nestes países, em larga medida, a Ação Católica foi composta com os organismos que já existiam e que foram federados, na esfera paroquial, diocesana e nacional. Foram introduzidas algumas associações novas, como, por exemplo, a JOC, mas não se criariam as quatro organizações características da Itália: Homens da Ação Católica, Senhoras da Ação Católica, Juventude Católica Feminina, Juventude Católica Masculina.. O Brasil, tendo adotado a princípio o tipo intermédio entre unitário e federativo, com a Confederação Católica Diocesana, evoluiu para o tipo unitário puro, abolindo esta Confederação Diocesana. Obediente à orientação pontifícia, nosso país marchará agora para a Ação Católica federativa, para a qual está preparado por estes dez anos de estudos e meditação que se seguiram à publicação da "Bis Saeculari Die".
Não podia esta solenidade do Dia Mundial do Congregado Mariano passar em silêncio as idéias que o Santo Padre propôs que meditássemos e estudássemos, ao dizer aos delegados do II Congresso Mundial do Apostolado dos Leigos: "A realização eventual de um tal projeto requer, naturalmente, uma reflexão atenta e prolongada. Vosso Congresso pode oferecer uma ocasião favorável de discutir e examinar este problema, ao mesmo tempo que outras questões similares".
Ao ser publicado este discurso em que Sua Santidade dá normas tão sábias e eficientes, mas, para alguns, tão inesperadas, e lendo o tópico em que o Santo Padre diz ter recebido muito recentemente uma sugestão, várias pessoas supuseram que algum Prelado estrangeiro tivesse estado em Roma e levado ao Pastor Comum suas propostas de reformas. Em vista disto, procuraram verificar as listas dos Bispos que estiveram no Vaticano e foram recebidos pelo Santo Padre nas últimas semanas antes do momentoso discurso.
Ignoro qual o resultado desta investigação açodada. O certo é que o período da Ação Católica unitária é breve dentro da história da Ação Católica mundial, pois não passa de quarenta anos, num movimento que é muitas vezes secular. As Congregações Marianas devem ver nas palavras do Papa uma aurora de esperanças de harmonia e eficácia, que desponta para elas e para todas as organizações apostólicas do laicato.
As Congregações Marianas não aspiram ao monopólio nem à primazia. Obedientes ao exemplo de Maria Santíssima, timbram em sacrificar-se com devotamento e humildade. Mas não podem deixar de saudar com júbilo a sabedoria do Sumo Pontífice que, numa hora de tantos perigos, dá normas claras para as falanges do seu exército, assinalando a cada tropa o seu lugar, e coordenando o esforço de todos.
Este ano de Nossa Senhora de Lourdes começa, pois, com raios de luz promissora. Queira a Virgem Imaculada abençoar as mentes e os corações de todos os que são responsáveis pelas organizações do laicato, a fim de que, sob o sopro do Divino Paráclito, num espírito de obediência, humildade e compreensão, se crie aquela unidade de sentimentos e de propósitos que o Santo Padre almeja, ao propor uma reforma que atinge tão profundamente os quadros estabelecidos em muitos países do mundo.
AS CC. MM. ÀS ORDENS DO BISPO DIOCESANO
Exmo. Revmo. Sr. D. Idilio José Soares. As falanges marianas da Diocese de V. Excia. Revma. Nunca morreram. Hoje elas estão em sua presença para lhe afirmar que, obedientes a V. Excia. e ao Santo Padre, abraçam as associações do apostolado dos leigos, tanto as antigas como as novas, desejando ser nas mãos do Papa, nas mãos do seu Bispo e nas mãos do Clero, um reflexo e um instrumento dAquela que o Espírito Santo caracteriza: terrível como a torre da fortaleza de David, terrível como um exército em ordem de batalha ( cf. Cant. 4, 4; 6, 3) . Eu felicito V. Excia. Revma. por contar com esta falange da fita azul. E felicito-me por poder estar presente quando um dos expoentes do marianismo de Santos, o meu caro amigo Dr. Antonio Ablas Filho, recebe, pelas mãos de V. Excia., a distinção que o Santo Padre lhe confere por seus méritos em favor da pessoa de V. Excia., que é o Pastor, e, igualmente, em favor da causa católica em toda a sua Diocese".
1. Publicado em "Catolicismo", n.o 84, de dezembro de 1957 (N. da R.).
2 Cf. "Catolicismo", n.o 12, de dezembro de 1951 (N. da R.).
3. Cf. "Catolicismo", n.o 33, de setembro de 1953 (N. da R.).
Filósofos Minavam na Retaguarda a Obra dos Cruzados
Cunha Alvarenga
Uma das contradições do mundo de hoje reside na resistência que se opõe a certos erros declarados, em matéria religiosa, social ou política, enquanto se abrem as portas para esses mesmos desvios doutrinários desde que não se apresentem com arreganhos de violência, mas antes se acobertem sob aparências pacíficas e conciliadoras, com ares de meio termo e de moderação. Para dar um exemplo: combate-se o comunismo ostensivamente, fazem-se comícios onde oradores inflamados descrevem os horrores dos campos de concentração soviéticos. Entretanto, aceitam-se sem maiores protestos muitas medidas práticas e políticas de sabor nitidamente bolchevizante, e chega-se mesmo a defender a liberdade da pregação desse erro. Mais ainda: o próprio meio ambiente favorece a acolhida de idéias comunistas, desde que venham disfarçadas.
Vamos hoje nos ocupar de uma lição da história a esse respeito. Queremos nos referir à ameaça que por muitos séculos representou o Islã para a unidade da Europa católica. Na luta defensiva contra as incursões muçulmanas e na gloriosa arremetida das Cruzadas, vemos sangue derramado aos borbotões pela causa da Igreja e da Cristandade, para impedir, pelas armas, a quebra daquela união dos povos cristãos em torno de uma mesma Fé, de um mesmo Batismo, da mesma concepção de vida que emanava da sincera aceitação da mensagem evangélica.
Qual o fundamento dessa unidade representada pela Cristandade? De São Pedro a Pio XII o católico sabe que deve obedecer a Deus mais que aos homens (At. 5, 29). E tal princípio é aplicável a todos os fiéis, portanto também aos chefes de Estado. Também eles devem obedecer a Deus mais que às suas próprias paixões e interesses.
OS PODERES DA IGREJA
A Idade Média compreendeu esta verdade e a Santa Igreja a pôde aplicar em todas as suas consequências práticas, dadas as circunstâncias do tempo. Dessa unanimidade na aceitação da concepção católica de vida nasceu como resultado natural a união entre a Igreja e o Estado.
A Igreja é, na terra, o prolongamento de Nosso Senhor Jesus Cristo: "Quem vos ouve, a Mim ouve" (Luc. 10, 16), diz o Divino Salvador. E, como sociedade perfeita, em nada depende Ela do poder civil. Pelo contrário, toda instituição humana deve ouvi-La e servi-La.
Tem a Santa Igreja na ordem espiritual um poder direto sobre toda criatura, sobre os chefes de Estado como sobre os simples cidadãos ou súditos, sobre as sociedades como sobre os indivíduos em si mesmos considerados. Dispõe, ademais, a Esposa de Cristo de um poder indireto sobre as instituições temporais, e especialmente sobre o Estado, a fim de impedir que qualquer delas obste ou dificulte a salvação das almas. O Estado, conservando sua plena independência nas coisas puramente temporais, acha-se submetido à Igreja nas coisas temporais que interessem o fim sobrenatural dos homens. Esta doutrina é imutável e a ela se referia São Pio X ao censurar a seguinte proposição revolucionaria dos modernistas: "Foi certamente lícito em outra época subordinar o temporal ao espiritual, e falar de questões mistas, nas quais a Igreja intervinha como rainha e senhora, porque se acreditava que Ela havia sido fundada, sem intermediário, por Deus, como autor da ordem sobrenatural. Mas tudo isto foi dissecado por filósofos e historiadores. Logo, o Estado se há de separar da Igreja, como o católico do cidadão" (Encíclica "Pascendi").
O princípio da união da Igreja e do Estado vigora, portanto, em qualquer época da história dos povos católicos. Não se trata de algo que se aplicava apenas à era infantil da Cristandade, e que agora, em sua idade adulta, se repudia como velharia inútil e contraproducente.
Na Idade Média estas verdades eram levadas às suas consequências lógicas. Aos olhos do homem medieval a Santa Igreja representava o próprio Deus. Considerá-La, portanto, superior ao Estado e querê-La unida a este, era afirmar que o homem deve obedecer em primeiro lugar a Deus, Criador e soberano Senhor do Céu e da terra.
Ocorre, porém, perguntar: como, dessa união da Igreja e do Estado; passamos para o regime da separação? Como da tese passamos para a hipótese de modo tão generalizado, que por assim dizer hoje em dia a hipótese se transformou em tese, isto é, tem-se como normal e preferível a separação dos dois Poderes, quando esta condição deveria ser considerada anômala e para casos de exceção?
UM CONTRABANDO IDEOLÓGICO
A dar crédito a certos historiadores e sociólogos apressados, verificar-se-ia na história das instituições humanas a mesma evolução incoercível que alguns naturalistas pretendem ver nos diversos reinos da natureza. A verdade, porém, é que por detrás dos fatos históricos há cérebros humanos em ação. Seja para o bem, seja para o mal, não têm tais fatos a inexorabilidade dos fenômenos naturais, como a lei da gravitação universal. Movida por inteligências e por vontades de homens, a causa do fato histórico é livre. Eis porque as épocas da história e seus grandes lances se distinguem pela atuação de personalidades fortes: falamos do século de Péricles, de Augusto, de Luís XIV.
Ora, o fenômeno das Cruzadas, enquadrando-se nesta regra, se caracteriza pela luta da Cruz contra o Crescente, isto é, dos fiéis contra os infiéis, ou pela defesa da Cristandade contra aqueles que a queriam escravizar, quebrando-lhe a unidade e mudando a concepção de vida que a Igreja durante séculos havia plasmado entre os povos do Ocidente.
Mas enquanto, pelas armas, heróis e santos faziam a defesa da Cristandade em Poitiers ou em São João d'Acre, infiltrava-se nela um veneno subtil sob a roupagem da filosofia árabe.
Antes que São Tomás de Aquino expurgasse Aristóteles de sua ganga pagã, os árabes já acenavam para os cristãos com as seduções da ciência peripatética, da qual se pode dizer, com São Paulo, que incha e não edifica (cf. 1 Cor. 8, 1). Assim é que Roger Bacon, deslumbrado por essa miragem do cienticismo, era grande admirador de Avicena: "De Avicena havia ele tomado a maioria das teses; como o filósofo árabe, acreditava que as inteligências humanas eram passivas e recebiam a verdade de um intelecto agente distinto; como ele, admitia que as causas segundas não faziam mais do que preparar a matéria para receber suas formas de uma causa celeste. Ora, não é impunemente que um cristão toma emprestado a um muçulmano sua concepção do mundo: as doutrinas têm um espírito, engendram uma atitude nas inteligências que as acolhem. Com as teses metafísicas se introduzem as teses sociais. Roger Bacon transformou a Cristandade, de que São Boaventura havia tão magnificamente descrito o caráter moral e evangélico, em uma organização imperialista do mundo, porque ele confiava com demasiado entusiasmo na ciência árabe de Avicena" (Bernard Landry em "L'idée de Chrétienté chez les scolastiques du XIIIe. siècle", p. 96).
Além da influência de outros filósofos árabes menores, temos a acentuar a grande voga de que gozava Averroes, com seu sistema fechado, parecido com uma ordem imutável de verdadeiro tratado de geometria, como se o universo fosse uma imensa sucessão de teoremas encadeados uns aos outros.
A INFLUÊNCIA ARABE SE GENERALIZA
“Imaginai uma sociedade latina composta de averroistas convencidos, e vereis o que aconteceria com as grandes realidades medievais do mundo ocidental: ciência e Religião, poder civil e poder religioso. Serieis logicamente obrigados a organizar por toda parte um regime de força e de guerra. A ciência se fecha; pretende bastar-se plenamente a si mesma, sem recorrer a qualquer luz superior. Quando a Religião desejar regê-la, ou, pelo menos, impor-lhe certos limites, ela gritará contra a opressão. De fato, deve-se conceder que, no sistema, uma tal intervenção da autoridade espiritual seria realmente uma opressão; porque a fé pretender impor à razão o respeito de verdades de que esta não sentirá, de modo algum, necessidade. Em seguida os Reis se arvorariam em senhores independentes, recusariam reconhecer uma autoridade superior à sua; assim, tratariam como insuportáveis abusos de poder as pretensões dos Pontífices Romanos" (Bernard Landry, obra cit., p. 117).
Ainda há mais. Esse intercâmbio com o mundo intelectual muçulmano foi facilitado grandemente por Príncipes cristãos, como o Imperador Frederico II, que se correspondia com os infiéis como
(continua)