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FILÓSOFOS NA RETAGUARDA

Para evitar os atos de violência dos comunistas, cumpre impedir a pregação ideológica que os insufla

(continuação)

verdadeiro renegado, mandando mesmo emissários para consultar os filósofos árabes sobre numerosas questões que desejava esclarecidas. E é importante assinalar que, rejeitando o regime de liberdades locais, característico do poder descentralizado vigente na Idade Media, esse Imperador se esforçava por instituir em seus domínios mediterrâneos a monarquia absoluta. Precursor do Estado leigo "vitalmente cristão", Frederico II não reconhecia à Igreja senão a missão de salvar as almas por um apostolado puramente espiritual, sem ingerência alguma no âmbito temporal.

Príncipes cristãos como este e como Felipe o Belo, não somente iniciaram a centralização totalitária do poder, mas suspiravam com inveja dos Sultões que não tinham acima de si uma autoridade espiritual a indicar-lhes o caminho reto, tanto do ponto de vista das verdades reveladas, quanto da própria lei natural. E se formos estudar as origens medievais do igualitarismo e do totalitarismo hodiernos, nós as acharemos na influência dos muçulmanos, cuja concepção do mundo sob o angulo filosófico, social e político, pouco a pouco ia dominando extensos setores da Cristandade. Entre os árabes vigorava uma mistura violenta de demagogia e de autocracia. "Os súditos se acham dominados pela tendência à independência; sofrem um jugo que facilmente quebram. O chefe, enquanto não é destronado, é onipotente. Nenhuma classe intermediaria ou instituição estável filtra a autoridade do senhor; o califa exerce um poder sem contrapeso e demite vizires e funcionários segundo os caprichos de seu bel-prazer. Como os califas, Alá não deve encontrar diante de si nenhum limite à sua vontade... " (Bernard Landry, obra cit., p. 97).

UM PRECURSOR DAS TRÊS REVOLUÇÕES

De Roger Bacon passamos a Guilherme de Ockham, o pai do nominalismo ou do "separatismo" introduzido em nossa vida intelectual, com a degradação muito árabe do intelecto ao nível de nossas operações sensíveis. O universo nominalista é um universo descontínuo de objetos justapostos. Os seres nada possuiriam que os una ou explique, e a consequência dessas idéias desagregadoras de Ockham vem a ser, numa última etapa, o sensualismo, o liberalismo, o individualismo, com passagem pelo panteísmo.

Não é para estranhar, portanto, a admiração que Lutero votava a Ockham, cujas obras, segundo Melanchton, ele conhecia profundamente e reputava superiores às de São Tomás e de Duns Scott. Eis porque "os autores modernos que consideram Ockham como precursor da revolução religiosa do século XVI, assim como da revolução filosófica do século XVII, têm razão em seu julgamento" (Pe. Geny, S.J., em "Brevis Conspectus Historiae Philosophiae", apud Pe. Denis Fahey em "The Mystical Body of Christ and the Reorganization of Society", p. 247).

A ação nefasta de Ockham, entretanto, não se circunscreveu ao campo filosófico, mas se desenvolveu também no setor prático ou político. É ele igualmente famoso por sua atuação contra o Papado e, em particular, por sua luta contra João XXII e em favor do então nascente absolutismo dos Soberanos.

Filósofos nominalistas, e legistas que se apegavam ao Direito Romano formam o fundo de quadro da ação que nos séculos XIV e XV se delineia em favor das tendências e erros revolucionários, que dali por diante progridem sem cessar.

O plano de uma organização racionalista e laica da humanidade, que é em resumo o ideal que filósofos ocidentais como Ockham herdaram diretamente do pensamento árabe, caminhou para sua realização graças, especialmente, a dois comparsas do pai do nominalismo: João de Jandun e Marsílio de Pádua. Todos os três, perseguidos por causa de seus desvios doutrinários, encontraram refúgio nos domínios de Luís da Baviera, ao tempo em que esse Imperador se achava em luta contra o Papa João XXII.

João de Jandun e Marsílio de Pádua levaram consigo, para oferecê-la ao seu protetor, a obra "Defensor pacis", por eles composta para mudar a ordem religiosa, social e política então vigente na Cristandade. Mudança que o futuro veria processar-se através das etapas da revolução religiosa do século XVI, da revolução filosófica e política do século XVIII e da revolução econômica e social do século XX.

O LAICISMO OPRESSOR

Expõem esses inovadores, embora com outra terminologia, a moderna doutrina liberal do sufrágio universal. O Soberano absoluto, de poder sem limites, seria eleito por todos os súditos: não somente pelos sábios, senão também pelos ignorantes. A própria escolha da profissão não ficaria ao arbítrio de cada um, mas seria atribuição do legislador supremo, daquele que condensaria em si mesmo o poder e a soberania popular. Influenciados pelas concepções políticas e sociais dos árabes, João de Jandun e Marsílio de Pádua são os teóricos da centralização do poder político, em oposição ao sistema das autonomias locais características da sociedade feudal.

Mas há um tropeço. É a Igreja. É o Sucessor de São Pedro, que continua a ser o fundamento desse divino edifício contra o qual as portas do inferno não hão de prevalecer. Para a implantação do império totalitário que avassalaria o mundo, cumpria destruir a influência do Papado, guardião da Revelação e da lei natural, cumpria abalar em seus alicerces a doutrina da supremacia do poder espiritual e da união da Igreja e do Estado. A Igreja, para Marsílio de Pádua, não seria uma sociedade perfeita, nem, muito menos, superior à sociedade civil. A doutrina eclesiástica dos dois gládios seria, segundo João de Jandun e Marsílio de Pádua, a negação da antiga crença na soberania do povo. Devia-se combater um poder tão desmedido que chegava ao ponto de querer depor Imperadores e Reis. A Igreja, como Nosso Senhor Jesus Cristo, teria simplesmente o papel de médico: fazer o diagnóstico e prescrever o tratamento. Aí se deteria sua ação. Não poderia forçar o doente a tomar o remédio, por não possuir nenhum poder coercitivo. Os Bispos exorbitariam de seus poderes ao lançar penas de excomunhão, pois caberia ao legislador civil tomar quaisquer providências que envolvessem consequências temporais. A Igreja deveria apenas aconselhar, e ficaria reduzida a uma simples cátedra em que a verdade é proclamada. E assim colocado o poder espiritual em curto-circuito, põem João de Jandun e Marsílio de Pádua no poder temporal todos os elementos para plena explicação e garantia da vida do homem sobre a terra. A sociedade civil possuiria na soberania popular, ou em sua esfera própria, o princípio de toda autoridade.

O ESTADO, MERO COMISSARIADO DO POVO

Temos assim explicadas as origens do laicismo hodierno. E se bem analisarmos as idéias dos dois autores citados, veremos que nelas se acha em germe a doutrina da igualdade de direitos dos vários credos religiosos. E na Igreja, como no Estado, o povo seria soberano. A Hierarquia Eclesiástica seria de instituição humana, e São Pedro não teria nenhuma supremacia sobre os outros Apóstolos. Pregam também, os dois filósofos, a preponderância do Concílio sobre o Papado, coerentes com sua doutrina de que só o povo é soberano. O Concílio tudo decide, inclusive a nomeação dos Bispos, quando estes não são designados diretamente pelo chefe supremo que é o Imperador. Os Sacerdotes também seriam eleitos pelo sufrágio dos fiéis, ou escolhidos pelo representante destes, o legislador supremo.

É uma Igreja democrática-liberal. E as idéias desses dois inovadores, levadas às suas últimas consequências, não descambam apenas para a separação da Igreja e do Estado, como tese desejável, mas para o domínio da Igreja pelo Estado, como efeito lógico dos poderes totalitários que conferem ao chefe da nação através da mística do sufrágio universal ou da soberania popular.

* * *

Eis-nos chegados ao ponto de concluir. Os erros desses filósofos e desses inovadores políticos que surgiram do seio da Cristandade no ocaso da Idade Média foram os marcos orientadores da pseudo-Reforma protestante, da Revolução Francesa, da revolução soviética, desse prurido de igualitarismo e de totalitarismo que vem avassalando a humanidade. E que este exemplo nos elucide na percepção de toda a periculosidade da mentalidade liberal, que contamina até ambientes católicos, tolhendo qualquer esforço na defesa de princípios.

O Vice-Presidente Nixon, apedrejado e cuspido em um dos países da América do Sul que recentemente visitou, declarou à imprensa que a liberdade de opinião tem limites. Pode ser exercida livremente pela palavra falada ou escrita. Mas não deve ser traduzida em atos de violência.

Pode-se, portanto, derramar petróleo por todo o mundo. Pode-se ajuntar lenha para imensas fogueiras ideológicas. Pode-se mesmo trazer à mão a caixa de fósforos que é a pregação da ação direta. Mas não se pode riscar esse fósforo e deitá-lo ao combustível! O bom senso nos diria, entretanto, que esses atos de violência pressupõem a pregação previa da doutrina subversiva que os insufla. É claro que se deve opor violência à violência. Mas assim como o heroísmo dos cruzados foi frustrado pelo contrabando ideológico que do mundo muçulmano passou para o lado cristão, assim também hoje, se não nos opusermos com todas as nossas energias à infiltração revolucionaria, igualitária e socialista, no campo do pensamento e da pura atividade intelectual, dentro em breve seremos cuspidos, pisoteados, apedrejados por uma avalancha de vítimas de uma deformação ideológica que a nossa incúria terá deixado grassar em nosso próprio meio. Só desse modo artificial e livremente consentido é que o comunismo entre nós constituirá um problema.

Não acreditamos na força incoercível do fato histórico ou da evolução social. Por detrás de cada movimento ideológico, repetimos, se acham cérebros pensantes. A nossa Cruzada contra o comunismo tem várias frentes. Devemos levar a ofensiva ao campo do mal. Mas não sejamos tão pouco solertes a ponto de permitir que o adversário se insinue dentro de nossas fileiras, para destruir a vontade de resistir de nossas tropas. Pior que o inimigo declarado é o que nos vem apunhalar pelas costas, através de uma propaganda ideológica que, sem usar a palavra socialismo ou comunismo, na realidade promove entre nós reformas e medidas administrativas, ou mesmo uma aberta propaganda de idéias, que terminam por pacificamente introduzir um ambiente e uma concepção de vida que são aqueles justamente contra os quais lutamos.


"Congregado Mariano, Chefe de Família e Médico Exemplar"

No dia 11 de maio p.p., realizou-se em Santos a comemoração do Dia Mundial do Congregado Mariano.

A solenidade foi presidida pelo Exmo. Revmo. Sr. Bispo Diocesano, D. Idilio José Soares, contando com o comparecimento do Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S. V. D., Bispo de Jacarezinho, do Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, e de pessoas gradas do movimento católico daquela cidade paulista.

Durante a sessão, o Exmo. Revmo. Sr. Bispo D. Idilio José Soares fez solenemente entrega ao Prof. Dr. Antonio Ablas Filho, Presidente da Federação das CC.MM., das insígnias de Comendador da Ordem Equestre de São Silvestre Papa, recentemente conferidas a este - como noticiamos - pelo Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante. No ato, S. Excia. Revma. pronunciou palavras altamente elogiosas para o novo dignitário, pondo em relevo seus dotes "como católico, como congregado mariano, como chefe de família e como médico exemplar".

Em seguida, foi o Com. Antonio Ablas Filho saudado pelo Sr. Marino Leite e pelo Dr. Aluisio Machado de Almeida, respectivamente em nome das associações religiosas da Diocese e da classe médica santista. Por fim, saudou-o o Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira em nome dos numerosos amigos e admiradores com que conta S. Sa. em São Paulo como em tantas outras cidades do país.

Passando à segunda parte do programa, o Exmo. Revmo. Sr. Bispo D. Geraldo de Proença Sigaud, S. V. D., pronuncio a conferência cujo texto publicamos na l.a pag. deste número.

Terminados os demorados e calorosos aplausos que se seguiram as palavras do ilustre Antistite, o Exmo. Revmo. Sr. Bispo Diocesano de Santos exaltou as qualidades de inteligência e coração com que o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud se vem destacando como estudioso dos problemas de Ação Católica, e agradeceu em nome de todos a sua esplêndida conferência.


OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX

A VIDA DE SOCIEDADE FAVORECEU 0 PROGRESSO DO CATOLICISMO

Fernando Furquim de Almeida

Na Inglaterra do século XIX, frequentes almoços, jantares e outras reuniões sociais serviam de pretexto para se discutirem os assuntos palpitantes do momento. Essa intensa vida de sociedade era dominada pelos salões mantidos pelas senhoras da nobreza, que recebiam em seus palácios, em dias fixos da semana, o que a nação tinha de mais representativo na aristocracia, na política ou nas letras. Entre todos tinha a primazia o salão de Lady Holland, cujo marido era um dos chefes do Partido Liberal. Lady Holland só recebia os políticos “whigs” ou quem não fosse inimigo declarado deles. Sua rival era Lady Blessington, grande dama de origem irlandesa, que em Gore House acolhia todos os que não podiam, por suas convicções políticas, ser recebidos par Lady Holland.

O salão de Gore House se caracterizava mais pelo tom literário, e era frequentado por políticos eminentes, como Lord Durham e o então jovem Disraeli, por dandies afamados como o Conde d’Orsay, ou por escritores em pleno gozo dos favores da moda. Um instantâneo de uma noite em casa de Lady Blessington dá bem idéia do ambiente que ali reinava: "Havia franceses que se impacientavam com sua pouca prática da língua inglesa, mas um deles não se impacientava com nada, compreendia tudo, e tranquilamente corria por todo o salão seu olhar finamente observador. Era um homem de aspecto muito pouco heróico, o Príncipe Luís Bonaparte".

Nos salões, o luxo e a elegância se aliavam à conversa séria, e frequentemente os mais graves problemas políticos eram resolvidos nessas reuniões. Era natural, pois, que as questões religiosas fossem nelas um tema habitual. O’Connell levara para a Câmara dos Comuns, depois de sua ruidosa eleição, um grupo brilhante de compatriotas seus que, a propósito e sem propósito, provocavam discussões intermináveis sobre a sua terra e sobre a liberdade da Igreja Católica. Essas discussões logo dominavam completamente a conversa, dado o interesse suscitado em toda a Inglaterra pelo movimento que eles representavam. Um desses deputados, Sheill, lugar-tenente de O’Connell, depois de um almoço em casa de Lord Milnes, durante o qual já se falara longamente sobre o Catolicismo, chegou a desafiar os presentes para um debate sobre a questão da Irlanda.

Os irlandeses tinham também seu salão próprio, onde cultivavam as tradições de sua terra. Era o de Lady Fingall, que François Rio assim descrevia em carta para a esposa: "Se estivesse com melhor humor, faria uma narração entusiasta de uma recepção onde encontrei muitos irlandeses e irlandesas, Sheill entre outros. Thomas Moore cantou algumas de suas melodias nacionais com tal sucesso e exaltação, que não pude resistir. Sentia-me emocionadíssimo e fui apertar-lhe a mão, declarando que era inegavelmente a mais bela noite que tinha passado em Londres".

Não era a política o único assunto sério a interessar os salões ingleses. Quase todos os seus frequentadores haviam cursado as universidades de Oxford e Cambridge. A vida intelectual intensa desses dois centros de cultura se refletia na sociedade, que tinha como tema habitual de conversa os estudos que ali predominavam. Ora, o Movimento de Oxford lançara a moda da Teologia, e não havia quem não tivesse opinião sobre os mais intrincados temas teológicos e filosóficos. Não se pode imaginar até que ponto a vida social inglesa concorreu para o grande progresso que teve o Catolicismo no país, durante o século XIX. Esse ambiente era favorável ao apostolado, e o grande número de conversões de aristocratas dá uma idéia do valor e da excelência do trabalho que nele os católicos ingleses desenvolveram.

Um dos grandes apóstolos desse meio foi François Rio, admirável "causeur" que trazia da França o entusiasmo que a renovação religiosa lá suscitara. Filho de "chouan", Rio, quando criança, chefiara a resistência de seus pequenos companheiros do Colégio de Vannes ao Império de Napoleão. Os Cem Dias fizeram-no organizar um batalhão de meninos, que haviam fugido de seus lares para se apresentarem ao exército realista que combatia o usurpador. Foram colocados numa posição que se previa que não seria atacada, mas que na realidade sofreu uma rude investida, repelida com bravura pelas crianças. O episódio é conhecido como a "Pequena Chouannerie", e valeu a Rio a Legião de Honra, concedida por Luís XVIII. Sua mocidade foi depois influenciada por Montalembert, de quem era íntimo amigo, e que o encaminhou para os estudos de arte religiosa, nos quais se distinguiu a ponto de vir a ser um dos iniciadores da atual orientação dessa disciplina. Casando-se com uma inglesa, Miss Jones, de antiga família tradicionalmente católica, a alta sociedade britânica o recebeu de braços abertos. Sua admirável ação nos salões de Londres ainda não está convenientemente estudada.

Conversando em 1883 com um padre francês que lhe perguntava se Rio era conhecido na Inglaterra, o Cardeal Manning deu-lhe a seguinte resposta: "Vós o chamais compatriota, e de fato ele o é por sua origem e suas primeiras armas, mas sua influência foi maior na Inglaterra do que na França. Estamos habituados a considerá-lo como um dos nossos, e atualmente ele é por certo mais bem apreciado entre nós do que entre vós. Era uma bela alma, como artista e como cristão".


NOVA ET VETERA

ORDEM TEMPORAL A SERVIÇO DA IGREJA

Celso da Costa Carvalho Vidigal

Em nosso último artigo chamamos a atenção de nossos leitores para o respeito que a sociedade medieval manifestava em relação às instituições e às pessoas eclesiásticas, patenteando assim sua preocupação pelos problemas ligados à vida eterna. Hoje sublinharemos alguns aspectos da organização social então vigente que mostram que esta não apenas facilitava, mas ainda estimulava o amor e serviço de Deus.

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Um primeiro ponto a analisar é o caráter tipicamente hierárquico da sociedade na Idade Média. A idéia de autoridade presidia a todas as relações entre senhores e súditos. Ao contrário do que acontece hoje em dia - quando a tendência mais generalizada é a de confundir os mandatários do povo com os seus mandantes, os empregadores com os seus empregados nivelando-os todos numa igualdade aliás sem fundamento - na época que nos ocupa, a nota mais marcante nos contactos entre um homem e os seus subordinados era a nitidez com que se afirmava a diferença entre eles. Mas, ao lado disso, havia mais uma característica que hoje geralmente não encontramos nas relações entre os homens: o afeto que ligava senhores e súditos. Aqueles sentiam um interesse pessoal pela sorte destes, e reciprocamente. Reinava entre os homens um espírito de verdadeira caridade evangélica, e por isso havia compreensão mutua. A castelã zelava pelo bem-estar dos rendeiros de seu esposo. Quem necessitasse de auxilio ia buscá-lo no castelo de seu senhor, e ia com a certeza de obtê-lo. Encontramos aí uma das mais belas formas de caridade, da qual Santa Isabel da Hungria é exemplo magno.

O moderno serviço social não passa de remédio para as deficiências de nossa civilização: o orgulho que atira empregados contra patrões, e o endurecimento do coração de tantos destes últimos, impedem as classes altas de exercer plenamente a caridade e impõe a criação de instituições anônimas que possam suprir essa falta.

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Outro aspecto a considerar é a maneira como essa organização hierárquica tornava mais fácil, e quase obrigatória, a pratica da Religião verdadeira. O Catolicismo era professado pelo senhor, e o espírito de obediência contribuía para atrair os súditos a professá-lo também. E não havia mesmo lugar para outra religião, pois os senhores velavam porque não houvesse propaganda herética em seus domínios. Houve por certo heresias, mas a própria rapidez com que, em geral, foram extirpadas demonstra a pujança católica do mundo medieval. A ordem reinante fazia com que os vassalos exigissem de seus superiores a integridade da Fé, ao mesmo tempo que estes exigiam daqueles a fidelidade à Religião revelada. Nada disso se veria, não fosse o prestigio da autoridade e o mútuo respeito entre senhores e súditos. E porque essa situação foi rompida é que, no século XVI, Carlos V não conseguiu impor aos Príncipes do seu Império a unidade de Fé, e a heresia protestante pode ser espalhada e difundida.

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Também desperta a atenção, na Idade Média, a ausência de mitos destinados a justificar a ordem social. As relações sociais eram de natureza marcadamente pessoal. A obediência era devida pelo súdito a um senhor concreto, e a fidelidade se relacionava sempre com uma pessoa determinada (nesse particular, como nos outros, as exceções que se verificavam não prejudicam a regra). No respeito das obrigações que assumiam uns para com os outros, os suseranos e vassalos encontravam a justificação da sociedade que constituíam. E por isso mesmo nunca se pretendeu, na Idade Média, que a Igreja devesse conservar-se distante das questões políticas. Pelo contrário, via-se nEla o árbitro necessário em todas as contendas graves; e como poderia ser de outro modo se a coesão das sociedades resultava de juramentos que eram feitos tomando a Deus por testemunha, e se a Igreja é a única representante legitima de Jesus Cristo na terra?

Foram os Tempos Modernos que criaram o Estado-mito, que já não é um organismo, mas antes um conglomerado de indivíduos. E isso se deu com a substituição do feudalismo pelas monarquias absolutas, e depois pelo Estado liberal-democrático e totalitário dos dias de hoje. Ora, o Estado tem atualmente interesses que muitas vezes o colocam em campo oposto à Igreja; e como ele é um mito que deve ser cultivado, a Igreja é que é prejudicada, o que quer dizer que os homens são prejudicados. Felipe IV, o Belo, Rei da França, indigno neto de São Luís, foi um precursor do estatismo moderno, e não deixa de ser um símbolo o fato de ter mandado mãos sacrílegas ultrajarem o Papa Bonifacio VIII.

O problema da educação sempre existiu: o aprimoramento do homem pelo exercício de suas faculdades mais nobres tem sido objeto de cuidados em todas as épocas. Essa tarefa coube primordialmente à Igreja, durante a Idade Média. A educação só pode ser completa quando o seu elemento básico é a Religião revelada. A cultura autentica deve conter em si a verdade católica mais genuína, para que possa dar ao homem uma direção segura. Dessa verdade somente a Igreja é detentora e, por isso, nada mais justo do que Lhe confiar a direção das escolas. Foi assim que coube à Igreja orientar as Universidades medievais, afastando delas tudo aquilo que, sendo pernicioso e daninho, arriscava corromper a civilização magnífica então em formação. De outro modo não teria sido possível a elaboração desse prodigioso monumento da sabedoria humana que é a escolástica, no centro da qual se encontra a figura de São Tomás de Aquino. E hoje não veríamos tantos erros disseminados pelo mundo, se a educação não houvesse sido arrebatada por violência à Igreja e entregue ao poder "soberano" do Estado.

Nas produções artísticas de cada época se refletem as fontes de inspiração dos homens que nela viveram. Observando o que se conservou da arte medieval, - percebemos o seu caráter nitidamente sacral. Os temas tratados são geralmente episódios da Escritura, da vida dos Santos, pontos da doutrina católica. Dificilmente encontramos algo que se distancie muito disso, a não ser representações de batalhas ou de cenas da vida cotidiana. E mesmo esses temas de atualidade se apresentam quase sempre marcados com algum sinal religioso. Isso demonstra uma atitude de profundo realismo com relação à vida: ocupado com Deus, o homem não despreza seus problemas diários. Imagem talvez impossível numa obra de arte dessa época é a de um deus pagão, de uma ninfa ou de um fauno, como nos quadros renascentistas.

Tudo isso revela para onde estava voltado o homem da Idade Média.

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Não poderíamos afirmar que o mundo tenha perdido e esquecido todos os valores da cultura medieval: se nossa civilização ocidental ainda é cognominada de cristã, é porque conservou muito daquilo que os séculos XII e XIII possuíam em grau eminente. A impressão que o batismo deixa no homem é muito forte para que o pecado a apague inteiramente: o mesmo se poderia dizer das civilizações. Porém, não é menos certo que estamos atualmente dentro de uma corrente que nos afasta do ideal da civilização católica. Devemos esperar por dias melhores; mas só poderemos alcançá-los como consequência de o mundo reaproximar-se de seu Senhor, e essa reaproximação só se poderá verificar quando a Igreja readquirir a preeminência que outrora Lhe foi reconhecida na vida social.