Esta gravura de um livro editado em 1660 representa a chegada do Jesuíta André de Oviedo, nomeado Patriarca da Etiópia, e seus Coadjutores, à corte do Preste João. Note-se a idéia fantasiosa que o artista fazia dos costumes abissínios.
A demanda do Preste João: Cento e Cinquenta Anos de “Cristãos Atrevimentos”
Plinio Vidigal Xavier da Silveira
O zelo vela propagação da Fé foi um dos fatores que mais contribuíram para que os povos ibéricos encetassem grandes navegações na segunda metade do século XV. À procura de especiarias, os portugueses abriram o caminho marítimo para as Índias; em busca de novas terras para a Coroa, eles chegaram ao Brasil; sempre, em todas essas conquistas, animava-os um ideal religioso, que os incentivava a mais "cristãos atrevimentos" (Lus., canto VII, est: 14) .
Um reino cristão perdido na África moura
Em nenhum episódio histórico, talvez, se manifesta com tanta dramaticidade esse intuito de difundir a Fé, tão marcante nos grandes descobrimentos, quanto na épica demanda do Preste João.
Os cruzados haviam levado para Portugal notícias de que, algures, na África, havia um grande reino que, cercado por povos muçulmanos que lhe moviam contínua guerra religiosa, permanecia na fidelidade à doutrina cristã e aos Mandamentos. Esse reino era riquíssimo, fertilíssimas as suas terras, felicíssimo o seu povo: a lenda assim nascida o transformara num país maravilhoso.
O Senhor dessa espécie de paraíso terrestre morava num palácio magnífico. Defronte havia um espelho mágico através do qual, num instante, o Soberano poderia ver todos os seus vastos domínios. Tal era o seu poder, que dignitários da mais alta hierarquia, Reis, Bispos e nobres, se sentiam honrados em exercer em sua corte as mais modestas funções. Os portugueses chamavam-no o Preste João — o único Rei cristão na África maometana.
Em 1487, El-Rei D. João II fazia partir os primeiros mensageiros em busca desses irmãos na Fé que viviam isolados. Anos depois, em 1512, seu sucessor D. Manuel, o Venturoso, enviou nova missão à procura do Preste João, desta vez com uma carta do Rei. O êxito desse empreendimento permitiu que se chegasse ao exato conhecimento da existência de um vasto império cristão nas terras que hoje chamamos de Abissínia. Suas riquezas nem de longe se aproximavam do que dizia a lenda; o palácio encantado do Imperador era uma grande tenda que se deslocava pelo país, pois a corte nunca ficava mais do que alguns meses num mesmo sitio. O Preste João tinha doze anos, motivo por que a madrasta de seu pai, Helena, governava como regente.
Respondendo a carta de D. Manuel, a Rainha Helena expunha a situação de seu império: a luta contra os mouros vizinhos desgastava continuamente as energias do povo abexim; já não havia esperanças de resistir por muito tempo. Mas, continuava a Regente, "he ho tempo achegado da promessa que disse Christo & Sancta Maria sua madre, que disserão que no derradeiro tempo se alevantaria ho rey da parte dos frãcos, & este daria fim aos mouros". Com a carta seguia um presente para El-Rei, "boa cruz do lenho em que foy crucificado nosso senhor Jesu Christo", e uma oferta de aliança: "se vos ouverdes por bem, do que nos teremos muyto contentamento quererdes nos dar vossas filhas para nossos filhos, ou tomardes nossos filhos pera vossas filhas".
Em socorro dos irmãos na Fé
Dos Reis, um de raça branca e outro de raça negra, um no auge do prestigio graças à "conquista, navegação e comercio" empreendidos em todos os mares por seus súditos, outro à beira da catástrofe diante do poder mouro que o ameaçava, tinham entre si um forte traço de união: a Fé. Para preservá-la na Abissínia, partem os primeiros socorros enviados por D. Manuel, e em 1520 uma armada portuguesa chega ao porto etíope de Maçuá.
D. Rodrigo de Lima, comandante das tropas que dali se embrenharam pelo interior do país, em busca do Preste João, teve o primeiro contacto direto com o Imperador. Lebna Dengel Dawit, então com vinte anos, já se tinha libertado da tutela da Rainha Helena; já era famoso por seus feitos militares: três anos antes infligira fragorosa derrota ao Emir Mafuz, o terrível chefe mouro, cuja cabeça guardava como troféu.
D. Rodrigo voltou para Portugal. Um genro do Emir Mafuz, Ahmed-Ibn-Ibrahim-el-Ghazi - chamado o Granhe, isto é, o Canhoto - reorganizou o exército mouro, aliou-se aos turcos e recomeçou a devastar a Etiópia. Lebna Dengel, derrotado, refugiou-se no interior com um punhado de homens, após ter perdido em combate muitos dos mais nobres de seus súditos.
"Até por isso fenecerdes a vida"
Anos dessa resistência trouxeram a morte a Lebna Dengel. Deixou um filho, Galavdevos, que subiu ao trono. Seu irmão na Fé, D. João III, enviou nova armada em seu socorro. D. Estevão da Gama, filho de Vasco da Gama, a comandava. Chegando ao Mar Vermelho, desembarcou ele quatrocentos homens, sob as ordens de seu próprio irmão, D. Cristovão da Gama, então com 24 anos de idade.
Entregando ao jovem comandante uma bandeira de damasco branco, com uma cruz de veludo vermelho no centro, D. Estevão disse: "Senhor Irmão — aquy vos entrego esta bandeyra d'El Rey nosso senhor, com a divisa de Christo e vola encarrego quanto posso, e volo mando sobre a benção de nosso bom pay, vos a guardeis e enxalceis quanto em vos for, com todas vossas fôrças até por isso fenecerdes a vida". Ao que D. Cristovão respondeu: "Senhor Governador, espero na paixão de Christo que em quanto viver meus feytos sejão tais que El Rey nosso senhor vos muyto agradeça de encarregardes me neste trabalho, de que o tempo será testemunho".
Os quatrocentos soldados portugueses partiram, Abissínia a dentro, em socorro de Galavdevos. Movidos por uma tal disposição de prestar auxílio aos seus irmãos perseguidos, grandes feitos os esperavam. O ilustre capitão, D. Cristovão da Gama, não assistiria à vitoria final. Ferido em combate, caiu prisioneiro dos infiéis e foi levado à presença do Granhe. Cruelmente torturado — arrancaram-lhe, uma a uma, as pestanas e sobrancelhas, despiram-no, insultaram-no e flagelaram-no, com a maior brutalidade - foi-lhe oferecida a liberdade se pedisse perdão, reconhecesse os erros de sua Religião e se dispusesse a combater com os seus homens, do lado mouro, contra os cristãos.
Maior afronta não poderia sofrer um cavaleiro português. A resposta de D. Cristovão, que lhe custou a vida, espelha bem a heróica disposição de espírito desses verdadeiros cruzados: "Mouro, se tu conhecesses quem são portugueses, nom falarias cousas do vento. De mim podes fazer tua vontade, porque estou em teu poder, mas sabe certo, indaque me desses a metade do teu reyno, hum só portugues nom faria vir para ti; porque os portugueses nom costumam viver com os mouros, que são sujos, e imigos da santa fé de Christo, meu Senhor".
Morto D. Cristovão, a luta continuou. Reorganizando suas forças após a derrota em que caíra prisioneiro o grande filho de Vasco da Gama, o Imperador Galavdevos voltou a atacar os maometanos, conseguindo uma vitória decisiva. Instaurada a paz, selada com tanto sangue generoso a aliança entre abexins e portugueses, uma grande e amarga desilusão aguardava estes últimos.
O Preste João também era "inmigo da santa fé de Christo"
No convívio pacífico, depois de eliminado o inimigo comum, os lusos puderam examinar melhor a religião dos abissínios. Já então sabiam que estes eram cismáticos. Consideravam, porém, com otimismo a possibilidade de levá-los a reconhecer o Papa como representante de Jesus Cristo na terra. A mesma devoção à Virgem, a semelhança das imagens, pareciam autorizar a esperança de suplantar algumas discrepâncias aparentemente pequenas nos ritos e nos costumes. Mas logo se desiludiram os portugueses; a divergência era muito mais séria: a religião abexim era herética.
Contaminados por perigosas idéias que haviam penetrado desde os primeiros séculos no seio dos povos católicos africanos, os filhos da Etiópia professavam numerosos erros teológicos, aceitavam a poligamia e tinham os mais estranhos ritos, como o batismo universal que se renovava anualmente.
A incansável tenacidade do povo lusitano não esmoreceria a essa altura. El-Rei de Portugal manda pedir aos remanescentes do pequeno exército de D. Cristovão da Gama que permaneçam no Império do Preste João, e envia uma missão de Jesuítas, tendo à frente um Bispo, D. André de Oviedo, o primeiro filho da Companhia de Jesus que aceitou - porque naquelas condições era cruz e não honraria - a plenitude do Sacerdócio.
Mas o ambiente se modificava rapidamente na Abissínia. Ao lado das questões políticas, que permanentemente agitavam o país, começam a surgir as divergências religiosas provocadas pelo êxito do apostolado jesuíta e exploradas contra o Preste João por seus inimigos. Num combate com mouros, que continuamente faziam novas investidas, morre Galavdevos, que era sumamente grato aos seus salvadores. Sobe ao trono seu irmão, Adamas, que apresenta a morte de seu antecessor como um castigo por ter ele permitido a livre ação dos Sacerdotes católicos. Adamas, que persegue a estes, é mais tarde deposto. O segundo de seus sucessores vem a ser o primeiro Imperador a se converter para o Catolicismo. E, por decreto, ordena a conversão de todo o seu povo.
Susenyos, o Preste João convertido, vê surgirem perturbações e desordens em resposta ao seu decreto; não consegue moderar as manifestações. Aumentando o clamor público, ele não se conforma em ver que seu ato traz tanto sofrimento à nação abexim. Renega então sua nova Religião, tendo permanecido católico durante quatro anos. A igreja nacional é restaurada.
Em 1634, quase cento e cinquenta anos depois da primeira missão que D. João II fizera partir em busca do fabuloso reino cristão da África, os Jesuítas foram expulsos da Etiópia.
* * *
Os portugueses salvaram os abexins do domínio mouro; depois perceberam que os irmãos na Fé que tinham ido procurar e socorrer na Abissínia, na realidade praticavam a heresia. Tentaram convertê-los; mas, quando tudo parecia bem encaminhado, viram a obra fracassar e foram lançados fora do país.
O reino maravilhoso do Preste João renegara a Fé: escolheu a heresia, e nela permanece até hoje.
VERDADES ESQUECIDAS
DEUS CASTIGA OS BONS, QUANDO NÃO LUTAM CONTRA OS MAUS
São Bernardo
Do sermão pregado em Vézelay, na Borgonha, em favor da segunda Cruzada, convocada pelo Bem-aventurado Papa Eugenio III:
Vos o sabeis: vivemos num tempo de castigos e de ruínas; ...As leis da pátria e as leis da Religião já não têm força para reter o escândalo dos costumes e o triunfo dos maus. O demônio da heresia sentou-se na cátedra da verdade. Deus amaldiçoou seu santuário. Vós todos que me escutais, apressai-vos em acalmar a cólera do Céu, e não imploreis mais sua bondade com vans gemidos; não vos mortifiqueis mais com o cilício, mas cingi-vos de vossos invencíveis escudos: o estrépito das armas, os perigos, as dificuldades e as fadigas da guerra, eis a penitencia que Deus vos impõe. Ide expiar vossas faltas com vitórias contra os infiéis, e que a libertação dos Santos Lugares seja o nobre prêmio do vosso arrependimento.
Se vos viessem, anunciar que o inimigo acaba de entrar em vossas cidades, que ele arrebatou vossas esposas e vossos filhos, profanou vossos templos, quem de vós não correria logo às armas? Pois bem! Todos esses males e outros ainda muito maiores aconteceram; a família de Jesus Cristo, que é a vossa, foi dispersada pela espada dos pagãos; bárbaros destruíram a morada de Deus e dividiram a sua herança. Que esperais para reparar tantos males e para vingar tantos ultrajes? Deixareis que os infiéis contemplem em paz as destruições e as rapinas que fizeram na casa do povo cristão? Pensai que seu triunfo será um motivo de dor inconsolável para todos os séculos, e de eterno opróbrio para a geração que o sofreu. Sim, o Deus vivo encarregou-me de anunciar-vos que castigará todos os que não O defenderem contra seus inimigos. Todos; pois, às armas! Que santa cólera vos anime ao combate e que no mundo inteiro ressoem estas palavras do Profeta: Ai daquele que não ensanguentar sua espada!
Se o Senhor vos chama a defendê-Lo, não imaginareis, sem dúvida, que sua mão se tornou menos poderosa: ... Mas Deus considerou os filhos dos homens e quer oferecer-lhes o caminho de sua misericórdia; sua bondade fez surgir para vós o dia do perdão. Ele vos escolheu para instrumento de suas vinganças; somente a vós quer ser devedor da ruína de seus inimigos e do triunfo de sua justiça. Sim, o Deus Onipotente vos chama a expiar vossos pecados defendendo sua gloria e seu nome. Guerreiros cristãos, eis combates dignos de vós, combates onde a vitória vos atrairá as bênçãos da terra e do Céu, onde a morte mesma será para vós como outro triunfo. Ilustres cavaleiros, lembrai-vos dos exemplos de vossos antepassados que conquistaram Jerusalém e cujos nomes estão escritos no livro da vida. Tomai a cruz, cruz que por si mesma é pouca coisa, mas se a levardes com devoção, ela vos há de valer a conquista do reino de Deus. — (apud "História das Cruzadas" de Joseph-François Michaud, trad. do Pe. Vicente Pedroso, Editora das Américas, livro VI, vol. 2.°, p. 234).