O PROBLEMA DA PAZ
«São Escarnecidos, e na Ignomínia Adquirem a Gloria»
(continuação)
garantida por Deus e atestada pela história. Considere-se bem este ponto: sem a Religião seria impossível haver moralidade e ordem pública num Estado. Pois a Religião forma os espíritos para a justiça, a caridade e a obediência às leis justas; proscreve o vício; induz os cidadãos à virtude, e lhes regula a conduta pública e privada; ela ensina, enfim, que a melhor distribuição da riqueza não se obtém pela violência nem pela revolução, mas por leis justas, graças às quais o proletariado, que ainda esteja desprovido dos recursos necessários e convenientes, possa ser elevado a uma condição mais digna, por meio de uma feliz solução dos conflitos sociais. A Religião fornece assim à ordem e à justiça uma contribuição mais eficaz do que se tivesse sido instituída unicamente para procurar e acrescer o bem-estar desta vida.
Razões de grave preocupação:
a) Perseguição incruenta
Considerando, pois, a situação presente com a disposição de espírito que Nos eleva acima das paixões humanas e Nos inclina a amar com paterno amor os povos de todas as raças, Nós Nos encontramos em presença de dois motivos de grande preocupação. De um lado, vemos que em muitos países a lei cristã e a Religião Católica estão privadas do lugar que lhes compete. Multidões, principalmente nos ambientes menos instruídos, são facilmente atraídas por erros largamente disseminados, e frequentemente revestidos de aparências de verdade: por meio de publicações de todo gênero, de espetáculos de cinema e de televisão, os atrativos do vício exercem uma influência nefasta sobre os espíritos, corrompem especialmente a juventude imprudente.
Muitos há que escrevem e disseminam suas obras, não para servir a verdade e a virtude, nem para a sadia distração de seus leitores, mas, com o intuito de lucro, a fim de excitar as paixões torvas ou ferir e macular pela mentira, pela calúnia e pela ofensa, tudo quanto há de sagrado, de nobre e de belo. Com frequência excessiva — dói dizê-lo — a verdade é desnaturada, e se faz publicidade em favor de realidades enganosas ou de torpezas. Todos vêem quanto tal estado de coisas prejudica a própria sociedade, e quantos prejuízos daí decorrem para a Igreja.
b) Perseguição violenta
De outro lado, soubemos com a mais viva dor que em várias nações a Igreja Católica, de rito latino e de rito oriental, está sujeita a graves vexames. Se não com palavras, pelo menos com fatos, os fiéis e o Ministros do culto são colocados diante deste dilema iníquo : abster-se da profissão e da difusão pública de sua Fé, ou sofrer prejuízos frequentemente muito pesados. Muitos Bispos já foram expulsos das respectivas sedes, ou sofreram entraves no livre exercício de seu ministério, ou foram presos, ou exilados. Em uma palavra, ousa-se tentar a realização da palavra da Escritura: "Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho serão dispersadas" (Mat. 26, 31; cf. Zac. 13, 7) .
Ademais, os jornais, as revistas, as publicações católicas estão reduzidas a um silêncio quase completo, como se a verdade dependesse exclusivamente do poder e do bel-prazer dos que mandam, e como se as ciências divinas e humanas, do mesmo modo que as artes, não tivessem o direito de ser livres para florescer com vantagem para todos.
As escolas outrora abertas pelos católicos estão interditadas e fechadas. Em seu lugar, foram instituídas outras, que não dispensam qualquer ensino religioso ou professam e disseminam, frequentemente, as máximas mortíferas do ateísmo.
Os missionários que, depois de terem deixado o lar paterno e sua doce terra natal, tinham aceito tantos incômodos para levar a outrem a luz e a força do Evangelho, foram expulsos como indivíduos nocivos e perigosos; e o Clero que permaneceu a postos, numericamente insuficiente para a extensão do território e muitas vezes objeto de ódio e perseguições, não pode bastar às necessidades dos fiéis.
Vemos com dor que, por vezes, são espezinhados os direitos da Igreja, à qual pertence escolher e consagrar, por meio de um ato da Santa Sé, os Bispos destinados a governar legitimamente o rebanho dos fiéis. E isto para o maior prejuízo destes últimos, como se a Igreja Católica fosse uma instituição nacional, dependente da autoridade civil, e não uma instituição divina, destinada a acolher todos os povos.
Motivo de alegria: a corajosa resistência dos fiéis
Não obstante estas graves e dolorosas angustias, constitui, para Nosso coração de Pai, motivo de grande reconforto saber que a maior parte dos fiéis de rito latino e de rito oriental continuam apegados com todas as forças à Fé professada por seus antepassados, se bem que estejam privados dos socorros espirituais que seus legítimos Pastores lhes concederiam se não estivessem afastados ou impedidos".
O Santo Padre dirige então afetuosas e eloquentes palavras de exortação aos filhos da Igreja que vivem em tão dura situação. E as conclui com uma esplendida citação: "Sede agradáveis Aquele por quem lutais... Que nenhum de vós abandone o seu posto. Que o batismo vos sirva de arma, a fé vos seja um elmo, a caridade uma lança, a paciência uma armadura completa, que vossas obras sejam o vosso tesouro a fim de que mereçam para vós uma digna recompensa" (Santo Inácio, Ad Pol. VI, 2, P. G. 5, 723-726).
O dever da oração a Maria Santíssima
Na época apostólica - prossegue a Encíclica - "quando os cristãos sofriam perseguições particulares, todos os outros, unidos pelos vínculos da caridade, faziam subir a Deus, Pai das misericórdias, orações ardentes, com unanimidade fraterna, para que Ele se dignasse fortificá-los e fazer brilhar, o mais cedo possível, melhores tempos para a Igreja. Assim agora, Veneráveis Irmãos, queremos que os que há tanto tempo sofrem na Europa e na Ásia oriental uma situação hostil e dolorosa, não sejam privados dos socorros e do reconforto divino implorado por seus irmãos.
Em Nossa grande confiança na intercessão da Virgem Maria, desejamos ardentemente que, durante a santa novena preparatória da festa da Assunção da augusta Mãe de Deus, todo o mundo católico faça subir ao Céu orações públicas especiais em favor da Igreja perseguida".
Depois de enumerar os diversos documentos com que tem assinalado a sua devoção para com a Santíssima Virgem, o Vigário de Jesus Cristo continua:
"Esforçai-vos, pois, Veneráveis Irmãos, por vossas exortações e por vossos exemplos, para que, durante esta novena, os fiéis que vos são confiados envolvam, em grande número, com as suas orações, os altares da Mãe de Deus. Supliquem eles, com uma só voz e um só coração, Aquela que foi "para todo o gênero humano causa de salvação" (Santo Irineu, Contr. Haereses, 3, 22, P. G., 7, 959), que seja enfim concedida à Igreja uma legítima liberdade. Tal liberdade não Lhe é útil somente para proporcionar aos homens a salvação eterna, mas também para reforçar por meio de uma obrigação de consciência as leis justas, e consolidar assim os fundamentos da sociedade civil. Peçam os fiéis, de modo especial, à sua proteção materna, que os Bispos afastados de seus rebanhos ou impedidos de exercer livremente seu ministério, sejam quanto antes, como é de justiça, restituídos às suas funções; que as ovelhas desnorteadas pela perfídia, pelo erro, pelo cisma, sejam penetradas pela luz da verdade e alcancem uma concórdia e uma caridade plenas; que os que duvidam ou fraquejam recebam confirmação da graça divina, e estejam prontos a suportar tudo, de preferência a romper com a Fé cristã e a unidade católica.
Possa cada Diocese ter seu próprio e legítimo Pastor, como ardentemente desejamos, e possa este difundir livremente os preceitos cristãos em todos os lugares e em todas as categorias sociais. Que nas escolas primarias e superiores, nas fábricas e nos campos, os jovens não sejam seduzidos pelas ideologias do marxismo, do ateísmo e do hedonismo, que entravam a ascensão das almas e enervam a virtude, mas que, pelo contrário, sejam esclarecidos pela luz da sabedoria evangélica, que os incita e os conduz ao bem. Que a verdade encontre acesso por toda parte; que ninguém lhe oponha obstáculos injustos, e que todos compreendam que afinal nada pode resistir à verdade e à caridade.
Enfim, que os missionários possam regressar quanto antes para junto dos povos que eles conquistaram para Jesus Cristo por seu zelo apostólico e por seus esforços, e que desejam ardentemente fazer progredir na civilização cristã ainda que isto lhes custe trabalhos, sacrifícios e sofrimentos.
Tal é o objeto das orações que todos os cristãos dirigirão à Divina Mãe. Mas não deixem de pedir perdão pelos perseguidores da Religião Cristã, segundo a caridade que fazia dizer ao Apóstolo dos Gentios: "Bem-aventurados os que vos perseguem" (Rom. 12, 14). Não cessem de implorar para eles a graça divina e as luzes celestes que podem dissipar as trevas e estabelecer a justiça nas consciências.
Inúteis as orações sem a emenda da vida
Mas a estas orações públicas, Veneráveis Irmãos, sabeis que é necessário acrescentar a reforma cristã dos costumes, sem a qual nossas súplicas não passam de palavras vãs, incapazes de agradar a Deus. Em seu amor terno e ardente pela Igreja Católica, façam todos os fiéis subir ao Céu preces ardorosas, mas ofereçam também sentimentos de penitência, atos de virtude, sacrifícios, trabalhos, e todas as suas dores e amarguras: as que são inerentes a esta vida mortal, e também aquelas às quais convém que nos submetamos por vezes livre e generosamente.
Unindo esta renovação moral às suas orações, os cristãos tornarão Deus propício, não só a eles mesmos, como também à Santa Igreja, Que lhes cumpre amar como Mãe diletíssima. Que entre eles reproduzam, sempre que o exigirem as circunstâncias, o espetáculo descrito de modo tão maravilhoso, tão expressivo e tão belo na carta a Diogneto: "Os cristãos estão na carne... mas não vivem segundo a carne. Habitam na terra, mas sua pátria está no Céu. Obedecem às leis promulgadas, e por seu gênero de vida vão além das próprias leis. Amam a todos, e todos os perseguem. São desconhecidos e condenados, são mortos, e se sentem vivificados... São escarnecidos, e nas ignomínias adquirem a glória. Sua reputação é destruída, e entretanto presta-se homenagem à sua justiça... Comportam-se como pessoas honestas, e são punidos como malfeitores; e, enquanto são punidos, regozijam-se como se se sentissem vivificados" (Ep. ad Diogn. V : P. G. II, 1174-1175). "Em suma, para exprimir tudo isto em poucas palavras, o que a alma é no corpo, os cristãos o são no mundo" (ibid. VI, P. G. IV, 1175) .
Se os costumes cristãos florescerem como nos tempos dos Apóstolos e dos Mártires, então poderemos esperar com segurança perfeita que seremos bondosamente atendidos pela Bem-aventurada Virgem Maria, a qual não tem maior desejo do que ver reproduzidas suas próprias virtudes em todos os seus filhos; e, pela poderosa intercessão dAquela que é invocada por tantas vozes súplices, podemos igualmente esperar tempos mais pacíficos e mais felizes para a Igreja de seu Divino Filho e para a humanidade inteira.
Estes votos, estas exortações, Veneráveis Irmãos, desejamos que, pelos meios que considerardes mais eficientes, os façais conhecer em Nosso nome aos fiéis confiados a vosso cuidado".
A Encíclica termina com a Benção Apostólica, concedida de modo especial "àqueles que sofrem perseguição para defender os direitos da Igreja e por amor a Ela".
Comentando...
COMO NAS FESTAS DE COLÉGIO
Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira
Em julho último, quando se começou a cogitar de uma conferência dos "Grandes" sobre a crise do Levante, os diversos governos manifestaram o estranho desejo de que se ampliasse substancialmente o número de países participantes.
Já na proposta inicial, o Sr. Kruchev sugeria que fosse convidada a Índia. Os Estados árabes também compareceriam, por terem um interesse direto na solução do problema. O Brasil solicitou, sob os aplausos de todo o novo mundo, que a América Latina fosse admitida a fazer-se representar. O "premier" Fanfani declarou-se convencido de que a opinião da Itália "seria útil" para resolver a crise; e acrescentou, com um humor tipicamente peninsular: "Consultar-nos será um dever e, ao mesmo tempo, um prazer para os nossos aliados".
Não queremos, aqui, focalizar o ulterior desenvolvimento dessas negociações. Desejamos apenas assinalar o tom de grande confraternização rotariana que vai adquirindo a vida internacional, sobretudo desde a fundação da ONU. Julga-se que todos os países podem e devem auxiliar a resolver os problemas de âmbito mundial. Os grandes, por serem grandes; os médios, por serem médios; e os pequenos, por serem pequenos. Todos se interessam pela manutenção da paz e, portanto, têm uma colaboração a dar. Isso até lembra certas festas de colégio, em que a professora pede que cada aluno traga um doce: há lugar para todos, desde que venham com seu prato de quitutes. Depois, todos comem de tudo, e assim se faz uma bela festa...
Só há uma pessoa que ninguém pensou em convidar para a conferência dos "Grandes". Dela, não se falou. No entanto, seria a única capaz de solucionar plena e duravelmente os problemas angustiantes com que o mundo se debate. Essa pessoa é o Soberano Pontífice. Vigário de Jesus Cristo, único homem a quem foi prometida a assistência do Espírito Santo para interpretar e defender o direito divino e o próprio direito natural, deveria ser ele o árbitro das grandes crises entre as nações, acatado por toda a terra. Todavia, não só ninguém pensou em convidá-lo, como seria objeto de riso e desprezo quem aventasse tal idéia nos cenáculos internacionais.
Há muito que os homens colocaram a Igreja à margem das relações entre os Estados. Ela, que outrora guiava os povos pelas vias da justiça, é cada vez mais relegada, pelo laicismo moderno, à condição de mera entidade particular, incapaz de voz ativa na vida pública internacional. Ela, que é a única Igreja verdadeira, com a qual Nosso Senhor Jesus Cristo permanecerá até o fim dos séculos, é equiparada às igrejas falsas, e abandonada a um canto, como um objeto supérfluo, cuja incômoda presença é tolerada a contragosto.
Para solucionar os trágicos problemas que nos afligem, recorremos a todos os povos, pedindo a cada qual que contribua com as suas luzes. Só não recorremos a Jesus Cristo, que é a luz do mundo...
OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX
SOMOS-LHES INFERIORES EM TUDO, SALVO NA POSSE DA VERDADEIRA FÉ
Fernando Furquim de Almeida
Desde o primeiro contato que teve com Newman, quando ainda Reitor do Colégio Inglês em Roma, Mons. Wiseman convenceu-se de que o Movimento de Oxford conduziria à Igreja Católica muitos protestantes de boa fé. Foi mesmo o desejo de colaborar para essa conversão um dos motivos que o levaram a abandonar a carreira científica inicia-da com tanto brilho em Roma, para se dedicar exclusivamente ao apostolado em sua pátria. Na Inglaterra, Wiseman criou um movimento intelectual católico paralelo ao de Oxford. Embora não tivesse contato com este, contribuiu poderosa-mente para dissipar as últimas dúvidas de seus membros. Era pois natural que, ao abjurarem, estes recorressem ao futuro Cardeal, pedindo-lhe orientação na nova vida.
Mons. Wiseman tinha plena consciência do valor intelectual dos anglicanos que voltavam à Igreja Católica. "Estou pronto a reconhecer — dizia, em carta a um amigo — que em todas as coisas, salvo na posse da verdadeira fé, nós lhes somos inferiores. Há já algum tempo declarei aos que me cercavam que, se os teólogos de Oxford entrassem na Igreja, deveríamos estar dispostos a voltar para a sombra e passar para o segundo piano". Conhecendo Newman e seus discípulos, tão bem como as necessidades do Catolicismo na Inglaterra, o zeloso prelado não hesitou em recomendar-lhes o apostolado intelectual.
Newman, acompanhado de St. John, o fiel discípulo que não o abandonaria até o fim da vida, foi para Roma, a fim de escolher na própria capital do Catolicismo a Ordem ou Congregação em que ele a seus amigos pudessem conciliar os desejos de vida religiosa, que os animavam, com o trabalho que Mons. Wiseman lhes indicara. A princípio parecia que os Dominicanos seriam os preferidos. Lacordaire, restaurando a Ordem de São Domingos na França e dedicando-se ao apostolado intelectual, tinha encontrado muito boa receptividade naquele país, o que dava aos ingleses a impressão de serem os Pregadores a realização do ideal que eles tinham em vista. Decidiram-se, no entanto, pelo Oratório de São Felipe Nery, por julgarem-no mais adaptado às condições do Catolicismo em sua pátria.
Pio IX aprovou calorosamente a escolha. O Oratório, em Roma, era um dos baluartes do ultramontanismo. Apesar da simpatia com que os recebia, o Papa sentia alguma apreensão pela ortodoxia desses homens que acabavam de abandonar a heresia. Essa apreensão era bastante justificada. Os meios teológicos romanos, empenhados na restauração do tomismo, faziam sérias restrições a Newman, que continuava a publicar suas obras. O Pe. Perrone, por exemplo, um dos paladinos do dogma da Imaculada Conceição, dele dizia que misturava e confundia tudo: "Miscet et confundit omnia".
Resolvida a questão da vocação, Pio IX indicou o Mosteiro de Santa Croce para um rápido noviciado sob a direção de um oratoriano de Roma, o Pe. Rossi. Quatro convertidos de Oxford vindos diretamente da Inglaterra, e John Dobree Dalgaims, que se ordenara na França, constituíram com Newman e St. John o primeiro núcleo de oratorianos ingleses.
Terminado o tempo de prova e recebida a ordenação sacerdotal, os novos religiosos voltaram para a Grã-Bretanha. A 2 de fevereiro de 1848, instalava-se em Maryvale, perto de Birmingham, a primeira casa do Oratório no país. Newman era o superior, o mestre de noviços e o professor de Teologia. A pequena comunidade recebeu logo um reforço considerável com a entrada de Faber e seus Wilfredianos no Oratório.
Frederick William Faber fora dos mais entusiastas discípulos de Newman no Movimento de Oxford. Muito antes do próprio mestre, convencera-se de que estava no erro, mas não se resolvia a entrar na Igreja Católica, em parte por dificuldades naturais nesses casos, em parte por desejar uma conversão coletiva. Numa viagem que fez a Roma, foi recebido por Gregório XVI, que o exortou a não esperar pelos companheiros, lembrando-lhe a obrigação de procurar primeiro a salvação da própria alma. Contava o Pe. Faber que, depois dessa audiência, estivera duas vezes a ponto de sair de casa para fazer sua abjuração, faltando-lhe no último instante a coragem necessária.
Faber era pastor, e a vida austera que levava lhe tinha granjeado um grande ascendente sobre os anglicanos confiados à sua direção. Quando chegou o momento de sua conversão, depois da de Newman, entrou na Igreja Católica acompanhado de sete companheiros. Resolveram os oito viver juntos, constituindo uma pequena comunidade que chamaram de Irmãos da Vontade de Deus. Dedicavam-se a auxiliar os párocos, visitar os doentes e instruir as crianças pobres. Residiam numa casa de dois andares. No primeiro, tinham um salão e a cozinha. Em cima, um quarto com um crucifixo e sem qualquer adorno servia de capela; nos outros, desguarnecidos de mobília, dormiam no chão os Irmãos da Vontade de Deus.
Na sua mocidade Faber se dedicara à literatura, tendo mesmo ganho o prêmio Newdigate com o poema "The Knights of St. John". Convertido, planejou escrever uma série de vidas de santos, que serviriam de modelos para seus discípulos. Começou com a de São Wilfredo, cujo sucesso fez com que o povo chamasse os Irmãos da Vontade de Deus de wilfredianos, denominação que eles aceitaram. As hagiografias de Faber constituíram, por sua vez, a coleção de Santos Wilfredianos.
O Conde John Shrewsbury, condoído da extrema pobreza da pequena comunidade, ofereceu sua propriedade de Cotton Halt para abrigá-la. Aí permaneceu ela dois anos. A vida ascética que levavam seus membros e a direção segura do Padre Faber, que se ordenara a 3 de abril de 1847, trouxeram novos discípulos, de sorte que, quando os wilfredianos decidiram entrar no Oratório, foram dezessete noviços que Newman recebeu. A residência de Maryvale era muito pequena para abrigar tanta gente. Mudaram-se todos para Cotton Hall, onde o Oratório se instalou provisoriamente até conseguir uma casa em Birmingham, no ano de 1849.
NOVA ET VETERA
A NOVA CLASSE
J. de Azeredo Santos
Com grande atoarda publicitária acaba de ser lançada a edição brasileira do livro «A Nova Classe», de Milovan Djilas (tradução de Waltensir Dutra, Livraria Agir Editora, 1958). Essa obra teria sido escrita na prisão, na Hungria, de onde rocambolescamente saíram os originais para surgir em Nova York, em forma de livro, em fins de 1954. Para quem conhece os rigores de uma prisão comunista, essa história é de causar espécie. Cabe, portanto, perguntar: qual o interesse que teriam os agentes da revolução universal na divulgação de tal obra?
Não deixa de ser curioso o modo franco e desassombrado com que o autor faz a crítica da nova classe que surgiu por toda parte onde se implantou o comunismo. «A coletivização, diz ele, foi uma guerra aterradora e devastadora, semelhante à obra de um louco — só proporcionou lucros à nova classe, cuja autoridade consolidou» (p. 87). Mais ainda: «O comunismo atual não é apenas um partido de determinado tipo, ou uma burocracia surgida do monopólio da propriedade e da excessiva interferência do Estado na economia. O aspecto essencial do comunismo contemporâneo é, acima de tudo, a nova classe de proprietários e exploradores» (p. 89).
REGIME DE PRIVILÉGIOS
A luz da demagogia esquerdista, o intolerável nas velhas classes seriam os privilégios de que algumas delas gozavam. De saber se tais privilégios seriam legítimos, não se cuida. Eles seriam odiosos por definição. Ora, mostra-nos o autor como a nova classe burocrática e militar que conduz os destinos dos diversos países de regime comunista continua cercada de privilégios, sem porém o cavalheirismo e o refinamento da aristocracia, nem as virtudes de sobriedade e comedimento da burguesia.
Dá-nos Milovan Djilas um relato circunstanciado não somente do totalitarismo soviético, mas da essência de todo e qualquer Estado comunista onde quer que ele apareça. «No sistema comunista, a autoridade legislativa não pode, o mais das vezes, ser separada da autoridade executiva... Do mesmo modo, tem sido impossível na pratica separar a autoridade policial da judiciária. Os que prendem são os mesmos que punem e executam a punição. O círculo é fechado: o executivo, o legislativo, a polícia e a corte de justiça são os mesmos e um único organismo» (p. 129). Embora não aceitemos a doutrina da separação dos poderes, é fácil ver que tal situação, em concreto, manejada pelos líderes soviéticos, conduz à tirania. Essa ditadura, que tem por objetivo a despersonalização total do homem, se exerce sobretudo através da economia, ou seja, pela apropriação estatal dos meios de produção. Segundo o autor, graças ao confisco cada vez mais completo da propriedade, aspira o governo comunista a transformar o Estado numa horda de funcionários públicos que tudo controlem, não somente as atividades econômicas, mas toda e qualquer atividade social, mesmo de ordem intelectual. Com ponto de partida na coletivização da vida econômica, termina o marxismo por exercer a mais execranda tirania sobre o espírito. «O comunismo contemporâneo também tem elementos do exclusivismo dogmático dos puritanos na época de Cromwell, e da intolerância política dos jacobinos. Há, porém, diferenças essenciais. Os puritanos acreditavam rigidamente na Bíblia e os comunistas acreditam na ciência. O poder comunista é mais completo do que o dos jacobinos. Além disso, há diferenças oriundas das finalidades: nenhuma religião ou ditadura pode aspirar a um poderio tão completo como o dos sistemas comunistas» (p. 184). Diríamos nós que assim teria de acontecer, pois não passa, a revolução marxista, da culminação da revolução gnóstica de que os puritanos e jacobinos constituíram etapas intermediarias.
A UNIFICAÇÃO DO MUNDO
Com que finalidade Milovan Djilas disseca de modo tão sarcástico essa nova classe que ele reputa fadada a desaparecer atolada em sua própria mediocridade? Materialista, afirma que «a lei da sociedade é aperfeiçoar e expandir a produção» (p. 271). Ora, o problema que o empolga na parte final do livro vem a ser o da unificação do mundo, a que se oporia a chamada «propriedade socialista do comunismo». Seria ela o principal obstáculo a essa unificação. Guiado, porém, pelo seu preconceito materialista, acha o autor que o problema da unificação do mundo se cingiria ao da unificação da produção mundial, a ser obtida por meio de um choque entre sistemas. Nesse sentido mostra como «a crescente e decisiva participação dos órgãos governamentais na economia, em larga extensão também na propriedade, é ainda uma expressão da tendência para a unificação mundial. Tal participação se manifesta de modos diferentes nos vários países e sistemas, e constitui mesmo um obstáculo nos lugares em que — como nos países comunistas — a propriedade estatal formal oculta o monopólio e o domínio total de uma nova classe» (p. 276).
Apesar de tais ressalvas, Milovan Djilas passa a descrever os progressos da coletivização da economia sobretudo na Grã-Bretanha do Partido Trabalhista e na América do Norte do Partido Democrático. E acrescenta: «A intervenção estatal e a propriedade são hoje essenciais, e em certos lugares um fator determinante na economia» (p. 280).
NA CAUDA O VENENO
Estamos diante do chamado socialismo democrático. Através de que mágicas e de que filtros o autor de «A Nova Classe» conseguiria evitar os males inexoráveis do coletivismo com apenas o acréscimo desse elemento parlamentar ou democrático, é coisa que escapa à nossa percepção, à vista da lógica interna do sistema, que ele mesmo desvenda aos olhos dos ainda não avisados. Socialismo e comunismo se equivalem, e só os pedantes ou mal intencionados podem negá-lo.
Isto faz lembrar o que dizia Eça de Queiroz de certa família provinciana constituída por autênticos javalis ferozes e incultos. Transferindo-se para a cidade, progrediram seus membros em contacto com a civilização: tornaram-se porcos. De modo análogo, recebendo embora uns banhos de democracia ou de parlamentarismo, no gênero e na espécie o socialismo continua essencialmente o mesmo. Eis porque a Santa Igreja condena toda e qualquer espécie de socialismo. Não é somente através do Estado soviético que se manifesta o absolutismo hodierno. A representação popular e parlamentar tem sido desde a Revolução Francesa um meio não menos detestável para estabelecer o domínio tirânico sobre o povo. Não é apenas com metralhadoras e campos de concentração que se escraviza uma nação, mas também com dispositivos constitucionais, leis, decretos e regulamentos.
Continuaremos.