"Ser enfeitiçado pelo ritmo é um meio ... um meio de ir ao encontro de Cristo" Philippe Lamentia.
BEAT GENERATION
Símbolo da Degradação Mental e Religiosa de uma Época
PAULO CORRÊA DE BRITO FILHO
As manchetes dos jornais quase diariamente chamam a atenção dos leitores para um problema que preocupa cada vez mais os pais, educadores e autoridades. Esta mesma questão constitui um dos temas preferidos da literatura, do teatro e do cinema, em quase todo o mundo contemporâneo. — "Juventude transviada", "Delinquência infantil", "Beat generation", "Geração coca-cola", "Geração nova", eis alguns títulos que procuram exprimir um problema imensamente complexo, que, em última análise, nada mais é do que o fruto genuíno de uma árvore má: a civilização neopagã.
"Pelos frutos conhecereis a árvore", diz Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho (Mt. 12, 33) . E, conforme acentuam alguns comentaristas, a recíproca também é verdadeira: pela árvore os frutos serão conhecidos. Como se poderia esperar, pois, que uma civilização que desde o fim da Idade Média se vem afastando dAquele que é "o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo. 14, 6) produzisse em meados do século XX uma geração mentalmente sadia e virtuosa?
Mas então, porque esta situação se tornou particularmente angustiante de alguns anos para cá, sendo já tão longo o processo de degenerescência e tão remoto o primeiro passo da apostasia? Sim, é verdade que essa decadência religiosa, moral e intelectual apresenta-se na juventude hodierna num grau que permite perguntar se já não estamos atingindo o fundo do abismo. É que as gerações anteriores prepararam a atual. Séculos se passaram, e este processo deletério não sofreu solução de continuidade. No princípio, o movimento foi lento, até chegar ao auge da aceleração em nossos dias. A natureza humana suportará por muito tempo ainda esta distorção profunda? Parece-nos que não. Neste mesmo clamor de revolta da juventude atual, que se ergue também contra os cânones fundamentais de nossa civilização tecnicizada, existe algo de verdadeiro, que ressoa confusamente como um "basta, não aguentamos mais esta deformação da natureza".
Estamos no ponto terminal de uma longa decadência da humanidade, iniciada no ocaso da Idade Média. A Renascença rompeu o equilíbrio admirável alcançado pela cultura medieval, que era teocêntrica. Entre o humanismo renascentista — que afastou Deus do centro da cultura para entronizar o homem — e o neo-paganismo, a tecnocracia atual, cinco séculos se interpõem. No entanto, a "Beat Generation" já estava, como que em germe, encubada naquele movimento. Na realidade, o processo corruptivo tem sido um só, até nossos dias, embora tenha assumido as mais variadas formas doutrinarias e artísticas. O homem que afasta Deus de sua vida, deixa de ser homem, para se transformar num escravo das criaturas.
Abstração, espírito geométrico e filosofia
Em artigo anterior(1), esta folha já abordou o grave problema da decadência mental da juventude hodierna. Nesse trabalho foi focalizado o tema da abstração, que, como se sabe, consiste no processo mental através do qual as idéias se formam, passando-se da sensação particular aos conceitos universais. Quanto maiores forem a capacidade e o operar abstrativo do homem, tanto mais ele se desprenderá da parte inferior do seu ser — a animalidade, os sentidos — para viver imerso nas idéias e nos princípios gerais. E, vice-versa, tanto mais escravizado estará o homem aos sentidos, quanto menor for sua atividade abstrativa.
Ora, não é difícil perceber que desde muito tempo se vem manifestando na história da humanidade um autêntico processo de corrupção dessa capacidade de abstrair. Indagar as origens mais remotas e profundas deste fenômeno, seria escopo mais adequado a um livro do que a um simples artigo, por sua natureza tão limitado. Contudo, procuraremos apontar sumariamente os fatores que, a nosso ver, constituem as causas primordiais deste triste estado de coisas.
O artigo a que aludimos mostrava quão pernicioso é o chamado espírito geométrico, que consiste em querer aplicar ao terreno filosófico e das ciências normativas os critérios de certeza de ordem matemática ou física. Este espírito predomina hoje em dia. A abstração metafísica parece cada vez mais incompreensível e inútil aos olhos do homem contemporâneo, especialmente da juventude, que nutre um entusiasmo crescente pela matemática, e mais ainda, pela física experimental, que se baseia primordialmente nos dados da experiência. Ouvimos certa vez um conceituado físico que, embora reconhecendo não ter a ciência a que ele se dedica conseguido explicar aquilo que seria básico para ela, como seja, a constituição íntima da matéria, enaltecia, entretanto, as realizações concretas e experimentais verificadas nesse campo científico; ao mesmo tempo, ridicularizava a filosofia, que, satisfazendo-se com meras divagações sobre as primeiras causas das coisas, nada produz de positivo. Esta concepção, tão difundida, é sintetizada naquele axioma popular: "A filosofia é a ciência com a qual, ou sem a qual, o mundo continua tal e qual".
No entanto, quer se queira, quer não, os princípios filosóficos sempre regeram a ação do homem, através de toda a história. Exatamente porque a geração presente despreza a especulação filosófica, que procura conhecer os últimos princípios de todas as coisas — e portanto a Verdade — o homem contemporâneo desviou-se desta, levado por falsos princípios filosóficos: os do pragmatismo e do materialismo. Jamais se ausentará da vida humana a filosofia, verdadeira ou falsa, mesmo que certos matemáticos protestem e alguns físicos proclamem que só lhes interessam os dados concretos da experiência. Muitas vezes eles nem têm consciência da filosofia errônea que os guia, embora esta seja tão atuante quanto as especulações aristotélicas o foram para um São Tomás.
Embora não se justifique, explica-se essa posição de tantos cientistas. Desde a infância, o homem moderno aprende a raciocinar com base apenas em fatos concretos, admitindo, quando muito, certezas de ordem matemática. De outro lado, a educação pela imagem vai substituindo as especulações. Até parece que Aristóteles, quatro séculos antes de Cristo, ao prevenir contra esse perigo, já previa a situação atual de boa parte da humanidade(2). Devido ao engolfamento na vida dos sentidos, muitos dos nossos contemporâneos tornaram-se verdadeiros aleijados mentais, incapazes realmente de atingir as esferas da abstração metafísica.
Incapacidade de expressão e degenerescência mental
Outro síntoma característico de uma verdadeira decomposição intelectual é a dificuldade de expressão que se nota na juventude hodierna, mesmo nos ambientes que pretendem passar por literários. Assim, os jovens escritores norte-americanos que se denominam "Beat Generation" (expressão cujo significado em português é "geração-morta-de-cansaço") e que se criaram em Greenwich Village, bairro existencialista de Nova York, manifestam uma monstruosa insipiência verbal. Os porta-vozes desse grupo, que se estão transformando em verdadeiros símbolos literários de toda a mocidade "yankee" — Jack Kerouac, Kenneth Rexroth e Allan Ginsberg — revelam em suas obras não apenas pobreza de idéias, mas também um primarismo em expressar-se, que faz lembrar o linguajar dos povos primitivos. As palavras vão-se sucedendo sem um nexo lógico. Eis um trecho do último romance de Kerouac, "The Subterraneans" : "Tudo começou com uma visão que tivemos em São Francisco, uma visão de moços correndo sem parar através deste país, loucos de curiosidade, sérios, lindos, beatificados, santos; beat, queria dizer que apanhou surra, caiu fora, mas cheio de paixão, de convicção. O dérangement des seas de Rimbaud; falar esquisito; ter visões místicas; romper com tradições européias, ser americano, sim americano; passar 24 horas bebendo, discutindo; morrendo por Lester Young, Wardell Gray, Lennie Tristano e outros reis do jazz cool; escrever sobre algum cara impossível, encontrado numa cidade perdida, anjo subterrâneo, místico incógnito, santo anônimo ... O ar de ter passado por grave crise interior, de não entender, de ser enganado, de chega, chega, sim, chega, não posso mais, de arriscar-se sem motivo e de perder..."
Não tencionamos mortificar por mais tempo nossos leitores com esta balbucie. A amostra já nos parece suficiente para se avaliar o quilate dessa pseudo literatura e a profunda degenerescência mental de seus autores.
Falamos em balbuciar, que é o modo de expressão próprio dos povos selvagens e das crianças. E uma das características desse linguajar primário é a repetição. Até nisso esses "bárbaros coca-colas" de Nova York aproximam-se das crianças e dos primitivos. Costumam dizer a mesma frase ou palavra duas vezes, como por exemplo: "Fui enganado, enganado" ("cheated" — enganado, é um termo muito popular entre os "beat", pois todos eles julgam-se enganados por Deus, pelos pais, pela sociedade, pelo mundo inteiro). Outras repetições frequentes: "Estou com fome, estou com fome", ou ainda: "sim, sim", "isso, isso".
É inegável que tal fenômeno de embrutecimento tem, no plano intelectual, suas raízes num defeituoso processo de abstração. Habitualmente imersos na vida dos sentidos, estes jovens são incapazes de pensar normalmente. Para isto, seria necessário que eles abstraíssem com facilidade, a partir das sensações, idéias universais, as quais deveriam ser expressas numa linguagem adequada. É verdade que a expressão verbal não é, absolutamente, indispensável ao pensamento. No entanto, além da vantagem de permitir comunicar aos outros a idéia, a palavra a esclarece, em virtude de um trabalho de análise e síntese, e lhe circunscreve mais precisamente o sentido.
Por outro lado, a palavra fixa e conserva a idéia numa imagem convencional que guarda o resultado do trabalho do espírito; de onde o filósofo inglês William Hamilton comparar os vocábulos às fortalezas que um exército conquistador edifica para consolidar os frutos de sua vitória e poder avançar com segurança. — "Os vocábulos são as fortalezas do pensamento".
Assim, a formulação adequada do pensamento é necessária, habitualmente, para elaborar conceitos de maneira normal e sadia. Daí dizer-se que, por via de regra, às formulações precisas correspondem idéias claras, verificando-se uma correlação análoga para as formulações obscuras. Ocorre, pois, como que um fenômeno de interação ou ação recíproca: a dificuldade em elaborar os conceitos e a confusão das idéias geram a impropriedade na expressão; de outra parte, a formulação deficiente traz indeterminação aos próprios conceitos, cuja delimitação fica imprecisa e confusa.
Montesquieu percebia com argúcia este problema, ao exclamar: "Não se conhece bem aquilo que se quer dizer, a não ser quando já se o disse".
Empregar, como faz a "Beat Generation", um verbo apenas — "to dig" (pegar) — para exprimir conceitos tão diversos como, por exemplo, entender, gostar, participar, estar informado à altura, é um sinal confrangedor da mais absoluta pobreza de expressão. Nunca chamar alguém pelo nome, mas somente por "man" (homem), além de uma tendência despersonalizante, revela, por parte desses jovens, acentuado espírito de excentricidade e esnobismo. Com este tratamento, pretendem reforçar a impressão de que vivem tão freneticamente e fora de si, que não acham tempo para se lembrarem de detalhes como os nomes das pessoas... Outra expressão característica: "hipsters" são os que "pegaram, que pegam", que gostam de jazz, bebem, tomam drogas e se entregam ao estudo do budismo; numa palavra, os que adotaram o modo de vida da "Beat Generation".
Ora, tudo isto, se não fosse trágico, seria pueril e até cômico. É trágico, acima de tudo, pois esses moços pseudoliteratos utilizam tais processos baratos para encobrir a lacuna monstruosa de suas inteligências, o vácuo quase infinito de suas almas. Por isto, fingem-se superiores à vida "concreta", quando não passam de escravos de vícios "concretos" e abjetos; apresentam-se como homens profundos, vivendo um drama terrível, incompreendidos pela sociedade, quando na realidade esta aparência encobre a nudez de seres vulgares que não têm seriedade nenhuma, nem mesmo em relação ao sofrimento que a vida lhes possa causar.
Jovens que passam a existência toda neste estado de superexcitação — além de se sujeitarem a todos os fatores, já apontados, que embotam neles o processo abstrativo, a capacidade de formar juízos e raciocínios — forçosamente teriam que elaborar uma linguagem cujos vocábulos inadequados, cujas repetições incessantes constituíssem uma imagem perfeita de suas almas caóticas. Enquanto a formulação rica alimenta e fortalece o pensamento, pois sugere novas imagens e relações mentais, esta gíria monstruosa, pelo contrário, entorpece o funcionamento da mente. Aliás, as letras de "rock and roll" — a produção musical genuína de tal juventude — obedecem inteiramente aos cânones dessa pseudoliteratura, porquanto não passam, na maior parte das vezes, de um conjunto de exclamações, sem nenhum nexo : "Ah! Oh! Yes! Crazy! Baby!" etc.
Gnose emocional ou pseudomística
Assim como a linguagem desta juventude é um fruto natural do desfibramento da razão, suas manifestações religiosas são reflexos do abismo moral em que jazem suas almas.
Esta folha já tem abordado diversas vezes o tema da gnose, procurando mostrar como certos princípios gnósticos, embora não explicitamente reconhecidos como tais, estão subjacentes à evolução histórica do mundo contemporâneo.
O Prof. Eric Voegelin, da Universidade de Chicago, em sua obra "The New Science of Politics", comentada largamente em vários artigos de "Catolicismo” (3), focaliza com magistral clareza o sonho gnóstico do homem moderno. Mostra como as experiências gnósticas pretendem oferecer um ponto de apoio mais firme do que a fé e a Revelação, tentando uma expansão da alma que alcance a comunicação direta com Deus. Esta expansão empregará as diversas potencias da alma humana. Daí ser possível distinguir várias vertentes gnósticas, de acordo com a faculdade predominante naquela operação de simbiose com a Divindade. Assim, temos uma gnose primordialmente intelectual ou especulativa, como, por exemplo, a heresia que apareceu com este nome nos primeiros tempos do Cristianismo, ou a gnose de Hegel e Schelling. Ela pode também apresentar-se com um acento volitivo, assumindo a forma de redenção ativista da sociedade, e é o caso de revolucionários como Marx, Hitler e Stalin. Ou, ainda, pode a gnose ser emocional e manifestar-se sob a forma de falsas místicas.
A "Beat Generation" — dotada de uma inteligência em decomposição e de uma vontade desfibrada — voltou-se para esta última forma de gnose, empregando meios que lhe são peculiares para atingir a "mística" e o "êxtase”: o "jazz" e os entorpecentes.
Entrevistado por um jornalista do "New York Post", o já citado Jack Kerouac reconheceu que o ritmo do "jazz" é um dos meios para arrebatar o homem e fazer com que ele "saia completamente de si mesmo". E o outro método consiste no uso da droga. Por isto a "Beat Generation" fuma a "marijuana" e vive nas "boîtes" : para obter, através do tóxico e do som frenético do "jazz" e do "rock and roll", "experiências místicas", "êxtases", visões fantásticas: Keroauc descreve assim um desses estados por que passou, provocado pela droga : "Eu desfalecia. Morria e caía sobre a erva, de costas. Então via o Paraíso. Via ... mas não estava mais lá. Havia apenas uma coisa... Havia um grande luar dourado, e eu não me encontrava mais lá ... mas era Deus, suponho... Era uma tal beatitude, porque não mais precisava preocupar-me em ser eu mesmo". E acrescenta: "Oh! era formidável. Voltei a mim aborrecido com a idéia de ser novamente eu mesmo, vivo, em carne e osso" .. .
Esta "visão", além de apresentar os sintomas nítidos da gnose emocional, de que falava Voegelin — o pretenso contacto experimental da alma com Deus, através de fenômenos pseudomísticos — revela uma outra característica saliente em todo panteísmo gnóstico : tendência ao aniquilamento da própria personalidade, a fim de imergir no Cosmos único, na pandivindade, para a qual todos os homens devem convergir. Desde os primórdios do Cristianismo, costumam os gnósticos apresentar essa divindade panteísta de maneiras acidentalmente diversas. O gnóstico "beat" sentiu-a a seu modo: "havia apenas uma coisa ... havia um grande luar dourado... mas era Deus, suponho". Contudo, essencialmente, a doutrina é sempre a mesma, através dos séculos. Ela é, na verdade, o veio de todas as heresias.
Um dos poetas mais conhecidos da “Beat Generation”, Philippe Lamentia, entrevistado pelo mesmo repórter do "New York Post", afirma igualmente que a música de "jazz" e a "marijuana" não constituem senão "meios de atingir o êxtase", o qual consiste numa "espécie de visão maravilhosa de Deus".
Nos primeiros séculos da Igreja havia gnósticos, como Marcion, que se diziam cristãos. Em meados do século XX um Lamentia também afirma que "acredita mais em Cristo do que qualquer outra pessoa". E "reza à Virgem Maria, também". Não vê nenhuma contradição entre Presley, o herói do "rock and roll", e a Mãe de Deus, entre o ritmo primitivo e sensual do "jazz", e a mística, pois "os sexos, como os ritmos, foram dados ao homem, constituem uma realidade". "Ser enfeitiçado pelo ritmo é um meio... um meio de ir ao encontro de Cristo".
Acrescenta ainda, no fim de sua entrevista: "a sociedade considera, talvez, gente como nós, réprobos, parias. Mas Cristo convida todo o mundo, inclusive os réprobos. Não existe, também, nenhuma contradição entre Cristo e os adeptos do be-bop e do rock'n'roll. Eles podem ser salvos".
Nirvana búdico e Paraíso "beat"
Há mais. Esses jovens entregam-se ao estudo do budismo, e seus escritos e posições religiosas refletem algo dessa doutrina.
Ela constitui, juntamente com a gnose e elementos pseudocristãos, um composto cacofônico, que na realidade não passa de uma miscelânea diabólica e preparada segundo as apetências dessa juventude degenerada.
Mas, porque Jack Kerouac e seus amigos foram escolher o budismo como um de seus ideais religiosos? Parece-nos que o motivo está justamente em que essa crença oriental contém alguns elementos que se casam bem com os anseios e a mentalidade da "geração nova".
O niilismo é essencial ao mais antigo budismo. "Tudo é vazio, tudo é insubstancial", afirmou Buda. Os budistas, sengudo Huby, em sua "História das Religiões", "não se contentam com afirmar que não vale a pena viver; que as coisas são como se não fossem; que o eu, destinado à paixão e ao sofrimento, é digno de ódio, — numa palavra, que tudo é vaidade e que devemos renunciar-nos: transportam estas negações do domínio moral, onde elas porventura brotaram, para o domínio metafísico e psicológico" (4). Os grifos são nossos.
Esta doutrina religiosa se amolda perfeitamente à tendência de autodestruição da personalidade, característica da "Beat Generation". Estes princípios impregnam a mentalidade de um Kerouac, e levam-no a exclamar para o repórter do "New York Post”: "Nós somos a visão vazia de um espírito". E pouco depois acrescenta: "Mas eu sei que somos fantasmas vazios, sentados neste lugar, acreditando que esses fantasmas são seres humanos e que se preocupam com a civilização. Não somos senão fantasmas vazios".
Neste terreno, o paralelismo com a doutrina búdica é frisante. No dizer de Huby, "os budistas, ou pelo menos o maior número deles, dizem que as sensações, os pensamentos, os atos existem em si, sem que por debaixo deles haja um ser que sinta, pense, atue, ou julgue sentir, pensar, atuar" (5).
Percebe-se também grande afinidade entre o "êxtase" búdico e os estados "místicos" experimentados pela "Beat Generation". É verdade que os meios empregados num e no outro caso são diversos. Enquanto para os budistas a "ausência de desejos", a meditação sobre o nada constituem a via para se alcançar o nirvana, Kerouac e seus correligionários empregam métodos que agem diretamente sobre os sentidos e os nervos : o ritmo alucinante e os entorpecentes.
Os representantes da "Beat Generation" excitam em si essas experiências pseudomísticas, visando atingir aquilo que Kerouac denominava "o Paraíso". Os orientais, por seu lado, têm um só objetivo final: chegar ao nirvana, que é um indefinível além, a "margem do outro mundo", a "morada inabalável", a "libertação da dor". A interpretação exata desse estado final é bastante controvertida entre os próprios budistas. Entretanto, parece claro que eles "ignoram todo ser supremo; o seu nirvana não é lugar, nem estado; acumulam as mais decisivas razões de afirmar que o nirvana é puro vácuo, desagregação duma individualidade aparente, fim do processo dos fenômenos mentais" (6) . Este estado é em si mesmo uma contradição, pois é um nada que se confunde com o infinito.
Doutrina baseada numa impostação contraditória, o budismo possui predicados para agradar uma geração que desprezou os princípios da lógica e divinizou o absurdo. Que significa esse anseio de autodestruição, esse "Paraíso" incoerente dos fenômenos pseudomísticos — símile do nirvana búdico — esse cepticismo absoluto quanto à existência de tudo, senão uma atitude antilógica fundamental, em outros termos, um endeusamento do absurdo?
Iniciações diabólicas
Em artigos anteriores, publicados em “Catolicismo” (7), abordamos um tema que fornecerá útil contributo para o presente estudo: "O demônio nas religiões pagãs". Dentre as várias questões tratadas ali, convém destacar as iniciações efetuadas nas religiões pagãs, tanto da antiguidade, como dos tempos atuais. No decorrer desses ritos, apontamos uma flagrante influencia diabólica.
Desde a mais remota era pagã, o trigo e o vinho, considerados como o princípio de toda a vida, eram tidos por símbolos de duas espécies de iniciações: uma sóbria, em que o neófito, a exemplo do grão de trigo, morre para o passado, entrando numa existência inteiramente nova e fecunda; e outra, entusiástica, originando a vida nova que, semelhante ao vinho, deve ser expressa, por assim dizer, através do sangue do iniciando, por uma sorte de fermentação calorífera.
Estas duas modalidades correspondem a duas tendências fundamentais da natureza humana: a do sacrifício e a do prazer. A iniciação da deusa Ceres greco-romana, o budismo, a ascetismo hindu, o ioguismo e a maioria dos ritos iniciáticos praticados por tribos africanas estão mais na linha dos ritos do trigo ou ascéticos, pois supõem uma renúncia aos prazeres dos sentidos. O tantrismo hindu, que consiste numa iniciação esotérica baseada na exacerbação sexual, as práticas do culto ao deus Baco
(continua)