Um dos grandes méritos do estilo gótico consistiu na construção de igrejas que foram maravilhas de ordem no sentido mais profundo da palavra: uma ordem resplandecente de fé, bom senso, sublime elevação de espírito e graça encantadora. Mas esta ordem – de que a nave de Coutances, no cliché, dá uma idéia tão perfeita – o estilo gótico a exprimiu não somente em monumentos eclesiásticos, mas também civis, indicando que não há cisão entre a vida espiritual e a temporal, a Igreja e o século. Também a vida profana deve ser inspirada, ordenada, e marcada até no que tem de mais fundo, por um ardente espírito de fé.
IDE E CONSTRUÍ UM MUNDO NOVO - MARIA É O PERFEITO EXEMPLO DE VIDA EM MEIO AO MUNDO
Plinio Corrêa de Oliveira
Está encerrado o ano de 1958. E impõe-se a velha e quase diríamos gastíssima praxe do retrospecto, seguido de um olhar ansiosamente interrogativo para 1959. Seria inútil tentar fugir a essa praxe, por mais rotineira que pareça. Ela nasce da própria profundeza da ordem natural das coisas. Foi Deus que criou o tempo, e quis que, para os homens, fosse ele dividido em anos. Esta duração anual, unidade sempre igual a si mesma, é admiravelmente proporcionada à extensão da existência humana e ao ritmo dos acontecimentos terrenos. Quis a Providência que a inexorável cadência dos anos proporcionasse aos homens, nos dias que servem de ponte entre o ano velho e o ano novo, a ocasião para um exame atento de tudo quanto neles e em torno deles se foi mudando, para uma análise serena e objetiva dessas mudanças, para uma crítica dos métodos e rumos velhos, para a fixação de métodos e rumos novos, para uma reafirmação dos métodos e dos rumos que não podem nem devem mudar.
De algum modo, pois, cada fim de ano se parece com um Juízo, em que tudo deve ser medido, contado e pesado, para a rejeição do que foi mau, a confirmação do que foi bom, e o ingresso em uma etapa nova.
A praxe dos retrospectos e das conjeturas de fim e começo de ano é, pois, iniludível.
Conformando-nos com esta disposição da Providência, escrita na própria ordem natural das coisas, entreguemo-nos ainda uma vez, sob o olhar de Maria, a esta tarefa de medir, pesar e prognosticar. Prognosticar, sim. Pois se habitualmente Deus a ninguém revela o futuro, a mente alguma deu o dom de fazer por si mesma prognósticos infalíveis, quis entretanto que o intelecto do homem tivesse o lume suficiente para estabelecer conjeturas prováveis, que podem servir de elemento precioso para a direção das atividades humanas.
Naturalmente, um coração católico não pode deixar de ver no ano de 1958 três notas principais. Foi o ano de Lourdes, em que as alegrias, as lutas, até as decepções foram iluminadas pela luz sobrenatural e suave que nasce da gruta sagrada. E foi na suavidade dessa luz que se extinguiram mansamente os dias de Pio XII, foi com o conforto de sua claridade que as multidões choraram o Pontífice que tanto as amou e a quem tanto amavam, foi o esplendor dessa luz que brilhou nos albores do pontificado de João XXIII, inundando-os de promessas e de bênçãos: 1958 ficará para nossos corações como o ano de Lourdes, o ano da morte de Pio XII e do advento de João XXIII.
Mas, se destas alturas baixarmos as vistas sobre os acontecimento que mais especialmente se relacionam com a sociedade temporal, o que presenciamos em 1958? Foi este um ano bom? Um ano ruim?
A esta pergunta pode-se dar, conforme os pontos de vista, tantas respostas, valendo umas e outras tanto e tão pouco, que se cai em pleno caos. Pois cada ano traz forçosamente modificações boas e modificações más. E o grande problema consiste na fixação de um critério para determinar e ponderar o bem e o mal.
Ora, a fixação deste critério, para um católico, não pode constituir objeto de dúvida. A civilização cristã é a ordenação de todas as coisas temporais conforme a doutrina da Igreja. Em outros termos, é a ordenação de todas elas segundo a natureza de cada uma, em conformidade com o seu fim último, de maneira que a proporcionada cooperação entre todas redunde na realização do plano da Providência, que é a glória de Deus tanto nesta existência como na outra, isto é, no tempo e na eternidade.
Na ordem temporal, pois, o problema dos problemas consiste em saber em que medida os acontecimentos de 1958 contribuíram para favorecer e desenvolver a civilização cristã, ou pelo contrário, para a minar e derruir.
Sem negar a legitimidade de considerações de outra natureza, feitas de acordo com outros pontos de vista, é preciso reconhecer que elas têm uma importância secundária, em face da que acabamos de fazer. E que em última análise as mesmas só tem sentido se consideradas em função do grande problema que apresentamos linhas acima. Com efeito, a civilização cristã pode ser comparada à pérola preciosa de que fala o Evangelho (Mat. 13, 46). Para adquiri-la, devemos vender tudo. Pois de nada nos servem todas as riquezas, se não tivermos o bem inestimável da civilização cristã. Do que dá bem provas nossa triste era atômica, em que o homem tem a superabundância dos recursos materiais, e estes lhe são espiritual e materialmente danosos porque seu uso não é regulado pelos princípios da Igreja.
Este julgamento do ano de 1958 só pode ser feito tendo-se em vista a situação concreta em que nos encontramos. A civilização cristã existiu no Ocidente, com grande esplendor e plenitude. Di-lo o Santo Padre Leão XIII em palavras memoráveis:
“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Naquela época, a influência da sabedoria cristã e a sua divina virtude introduzia-se nas leis, nas instituições, nos costumes dos povos, em todas as classes e em todas as relações da sociedade civil. Então a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, estava por toda a parte florescente, graças ao favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados. Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e amigável reciprocidade de bons ofícios. Assim organizada, a sociedade civil deu frutos superiores a toda a expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada, como está, em inúmeros documentos, os quais nenhum artifício dos adversários poderá corromper ou obscurecer” (Encíclica “Immortale Dei”, de 1º de novembro de 1885).
Esta civilização magnífica entrou em crise, através de um longo e doloroso processo histórico cujas principais etapas foram, no campo ideológico, o naturalismo, o cepticismo e o hipercriticismo dos humanistas, as negações do protestantismo, mais tarde o iluminismo e o deismo, para chegar hoje em dia ao ateísmo e ao panteísmo; e, no campo temporal, as concepções absolutistas e césaro-papistas dos legistas, o laicismo e o igualitarismo político e social da Revolução Francesa, o ateísmo e o igualitarismo social e econômico do comunismo.
Atualmente, do antigo edifício da civilização cristã, o que resta? Muito pouca coisa. Em carta dirigida a Sua Eminência o Cardeal D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Mota, Arcebispo de São Paulo, o Exmo. Revmo. Mons. Ângelo Dell’Aqua, Substituto da Secretaria de Estado do Vaticano, falando com a alta responsabilidade de seu cargo, dizia que “em conseqüência do agnosticismo religioso dos Estados” ficou “amortecido ou quase perdido na sociedade moderna o sentir da Igreja”. Quando a raiz está como que completamente cortada, tudo quanto possa persistir de frutos e de flores na árvore tem uma vida que mais se poderia chamar pós-vida. O pouco que da civilização cristã ainda resta na civilização pós-cristã (chamemo-la assim) de nossos dias – alguns hábitos, costumes e tradições, este ou aquele modo de sentir e de pensar, uma ou outra disposição legislativa – tem o mais das vezes certo aspecto de sobrevivência mais ou menos anacrônicas do passado.
Não negamos, é claro, que muitas almas – em número talvez até crescente em relação a cem anos atrás – continuam a viver numa ardente união com a Santa Igreja, dando mostras de uma fidelidade heróica que por vezes nada fica a dever aos mártires do Coliseu. Tudo isto não obstante, é verdade que no plano dos costumes sociais, da cultura, das instituições políticas, da vida econômica, o retrocesso é cada vez maior.
E assim, para 1958, o importante consiste em saber se o retrocesso
(continua)