A PORTA DE ALCALÁ

Para “CATOLICISMO”

Rafael Gambra

(da Universidade de Pamplona)

MADRID — Quando, de passagem por Paris, nos encontramos diante do imponente Arco do Triunfo, no meio da simétrica e uniforme "Place de 1'Etoile", pensamos no que em Madrid possa assemelhar-se a este grande conjunto arquitetônico e urbanístico. E inevitavelmente nos lembramos de nossa pequena Porta de Alcalá, no centro da Praça da Independência, também circular, quase simétrica, parcialmente uniforme em seus edifícios.

Pois, efetivamente, o que mais pode parecer-se aqui com um Arco do Triunfo é esta ilustre Porta que um dia mandou construir nosso Senhor Carlos III para umbral da Cidade e Corte na sua face oriental, a que se volta para a parte maior da Espanha. Sobretudo depois que os muros que circundavam a Cidade se tornaram supérfluos e uma urbanização acadêmica a deixou livre e arejada no centro de uma praça circular.

Entretanto, se da evocação nasce a comparação, que abismo entre o espírito de um e outro monumento! Que mundos tão diferentes lembram suas li-nhas, sua intenção, seu simbolismo!

O Arco Napoleônico se distingue antes de tudo por suas proporções superiores à medida do humano. Sua mole imensa e vertical parece concebida para aniquilar o observador. As alegorias bélicas e abstratas de seus relevos manifestam o sentido de sua concepção: ele pode representar a França monolítica e unitária da Revolução ou o Estado Napoleônico — o Imperium em qualquer caso, em seu sentido primigênio e pagão. Sua intenção funcional é receber, sob os nomes esculpidos de mil vitorias, os exércitos do Cesar e os despojos do vencido atrelados aos carros vitoriosos, entre as aclamações e o terror do povo espectador.

Nossa Porta de Alcalá, ainda que não tenha sido feita para simbolizar coisa alguma — ou precisamente por isto — poderia representar, em sua concepção e finalidade, o contrário do Arco do Triunfo. Em primeiro lugar, não é um Arco, mas uma porta, que servia, originariamente, para que os habitantes de Madrid entrassem e saíssem por seus cinco portais enquanto o sol brilhava sobre os campos, e para que se abrigassem, ao cair da noite, no recinto administrativo da Cidade, dentro de seus muros, feitos para protegê-los e dar-lhes segurança. Sua arquitetura não tem a preocupação do colossal, nem do vertical, nem é pagã. O barroco classicista de seus contornos é a humanização e cristianização da arte clássica, sem abdicar da harmonia estrutural desta. Não é só o humano na medida e na ordem, como foi o classicismo da antiga Grécia, que procurava unicamente a harmonia contemplativa do espírito humano, mas que se prendia sempre a cânones frios e abstratos, clássicos. O barroco humaniza a ordem clássica até camadas mais pro-fundamente humanas, isto é, cordiais e afetivas. De algum modo, é, como o Cristianismo, a aproximação da Divindade ao homem, sua adaptação voluntaria à debilidade humana, sem perder a condição divina. O barroco é a arte da civilização espanhola, a única que fez o Cristianismo e a cultura européia deitarem raízes nas mais remotas barbáries sem anular-lhes a cultura aborígine e a vida.

Sobre as linhas flexíveis e bem dispostas de seu entablamento, nossa Porta não ostenta o nome nem o anagrama de um Imperador, mas o do Rei, como mero executor de uma obra de embelezamento e utilidade pública. Carlos III, somente por graça de Deus, Rei das Espanhas, ou dos espanhóis. E o ano em que a porta foi concluída. Sobre a lápide comemorativa, o escudo destas mesmas Espanhas. Não um escudo enquadrado e sustentado por uma águia geométrica e agressiva, símbolo da força e do autodomínio, mas um escudo barroco segurado por Anjos do Céu e rematado pela Cruz dAquele de quem todo poder procede. Um escudo - o da Espanha - cuja unidade é a coroa cobrindo protetora os brasões das velhas Espanhas federadas, numa multiplicidade diversa e bem irmanada. Como sempre, o poder e a unidade que, ao mesmo tempo em que reconhecem o que lhes é superior, se voltam e inclinam para o que se acha em plano inferior e lhes está confiado.

A Porta - já o dissemos - não foi erguida para realçar o orgulho vitorioso de exércitos imperiais, mas para a utilidade do povo, para dar-lhe um ornamento, um recinto e guarida. As vitorias bélicas dos espanhóis procuravam antes desculpar-se e dissimular-se, do que fazer exibição de força. Seu símbolo humano é o vencedor de Breda no quadro "das Lanças", inclinando-se afetuoso ante o vencido, tomando num gesto de cordialidade humana as chaves que parece ver-se obrigado a receber .

Penso que nada pode haver de mais estranho ao espírito espanhol do que qualquer forma de imperialismo ou de culto da força. Nossa monarquia foi talvez o símbolo e o produto desse espírito: o poder que vem do Alto, e que se abaixa, se entrega ao que lhe é inferior; poder que se encarna no que lhe e súbdito para adquirir assim uma forma de paternidade e viver uma existência cordial e pessoal, plenamente humana. Filipe II tinha muito cuidado em referir-se ao "Imperador, meu pai", e intitular-se somente Rei; e não Rei da Espanha, para não erigir uma entidade superior ao que cada um é e ama, mas "Rei de Castela, Aragão, Senhor de Biscaia, Conde de Barcelona...", isto é, sem desdenhar o titulo dos grandes, nem o dos pequenos, o dos mais numerosos, nem o dos menos numerosos. O espinho das Comunidades triunfou na mente dos Habsburgos, fazendo-os apreciar uma forma de poder em que este se encarna na alma de todos de modo a manter perpetuamente o gesto de afetuoso abaixar-se em que consiste o verdadeiro senhorio.

Talvez, portanto, nada exista de mais antipático ao espírito dos espanhóis do que o simbo-lismo do Arco Napoleônico e qualquer gênero de atitude cesarista ou de imperialismo.

Esse famoso quadro de Velasquez foi reproduzido em nossa secção de «Ambientes, Costumes, Civilizações», n. P 71, de novembro de 1956 (N. da R.).


VERDADES ESQUECIDAS

"O herege pertinaz está condenado por seu próprio julgamento"

São Bernardo

De uma carta a um alto Prelado:

Arnaldo de Brescia, todo mel e doçura nas palavras e veneno mortal nas doutrinas, ostentando na face a simplicidade da pomba, e com uma cauda envenenada de escorpião, a quem sua própria pátria expulsou de seu seio como se lança fora um vômito, e a quem Roma teve horror de acolher; que se desaveio com a França, e a Alemanha não pôde deixar de abominar; a quem ainda hoje a Itália não quer receber, — apesar de tudo isso, consta que foi acolhido por vós. Vede que não façais o seu jogo e não lhe deis asas, com vossa autoridade, para continuar causando danos. A uma grande habilidade para o mal junta ele uma firme vontade de fazê-lo, e se a estas coisas se acrescenta vosso favor, teremos aquela corda de três cabos que é difícil romper, e não podeis imaginar o mal que ele será capaz de causar.

Se é verdade que lhe destes acolhida, creio que terá sido por uma destas duas razões: ou porque não o conheceis bem, ou porque, sabendo quem ele é — como me parece mais provável — esperais reduzi-lo e convertê-lo. Ai! Oxalá assim seja! Deus queira que desse penhasco susciteis um filho de Abraão! Quão grato dom ofereceríeis à Igreja, nossa Mãe, se pudésseis apresentar-Lhe como vaso de honra quem até agora foi vaso de ignomínia. Podeis experimentá-lo. Contudo, um homem que se preze de prudente terá cuidado de não ultrapassar em suas tentativas o número de vezes que o Apostolo indicou ao dizer: "Foge do herege s ele não se emendar depois de o advertires uma ou duas vezes sobre seu erro; porque deves ter por certo que quem não se corrige prontamente, e permanece pertinaz em seu erro, já está pervertido e condenado por seu próprio julgamento"

(Tim. 3, 10). Por outro lado, o fato de o tratardes com familiaridade, o admitirdes a vosso convívio, e até o sentardes à vossa mesa, não pode deixar de parecer grande indicio de vossa proteção, a qual cobrirá como com rija armadura o homem inimigo. Este terá garantido seu exilo e persuadirá facilmente as almas, revestido com esse disfarce de íntimo e comensal vosso,... E embora ele tire a máscara e propale publicamente seus erros perniciosos, quem ousará contradizê-lo e opor-se àquele que é vosso amigo?

Quê! Não conheceis as pegadas que ele tem deixado por onde passa? Não sem motivo se mostrou tão firme o Sucessor de Pedro ao desterrar da Itália esse homem e forçá-lo a transpor os Alpes; não sem razão lhe nega licença para repatriar-se... Quem ousará contestar a decisão pontifícia, quando aquele mesmo que ela atingiu lhe demonstra o acerto, senão com palavras, ao menos com sua conduta rebelde a toda autoridade? Por isso creio que favorecer pessoa de tal condição é ir diretamente contra o Papa c contra o próprio Deus. Porque, seja quem for que dê uma sentença, se esta é justa e prolatada segundo a justiça, é certo que vem dAquele de quem diz o Profeta : "Eu sou o que julgo conforme a equidade" (Isai. 63, 1).

Espero de vossa retidão e prudência que, uma vez inteirado de tudo por esta minha carta, não deixareis de fazer o que reclamar vosso próprio desejo e o interesse da Igreja...

Sabei que vos quero com muita amizade e vos sou em tudo devotado. — ("Obras Completas del Doctor Melifluo, San Bernardo, Abad de Claraval" — vol. V, "Epistolario" — trad. do Pe. Jaime Pons., S. J. — p. 408, carta 196 — Rafael Casulleras Librero Editor, Barcelona, 1929).