P.01

ESMALTE de Limoges, do século XV. Nosso Senhor agoniza. Dentro em pouco, tudo estará consumado, e a humanidade estará resgatada. Pelos méritos infinitos de Jesus Cristo, preparam-se os grandes acontecimentos que transformarão o curso da História: o Espírito Santo baixará sobre os Apóstolos, que levarão depois a Boa Nova a todos os cantos da terra. A Redenção nos trouxe o grande benefício do conhecimento da verdadeira doutrina do Divino Mestre, ensinada até o fim dos séculos pela Santa Igreja Católica. — Nos dias da Semana Santa, consagrados à Paixão e Morte do Senhor, meditemos sobre esses benefícios e, pela Medianeira de todas as graças, peçamos uma ilibada pureza na fé. O apelo de nosso colaborador Cunha Alvarenga, contido neste artigo, manifesta um fraterno empenho em que, dissipando a confusão de ideais ou de conceitos, tão frequente em nossos dias, brilhe a união dos corações na explícita profissão das mesmas verdades.

BRILHE A UNIÃO DOS CORAÇÕES

na explícita profissão das mesmas verdades

Cunha Alvarenga

Em alocução dirigida ao Pontifício Ateneu Angelicum sobre a perenidade da doutrina tomista, dizia o Santo Padre Pio XII, de pranteada memória: "Que é que especialissimamente ensinou São Tomás? Em que se resume, como para divisá-lo de um só golpe de vista, seu sublime ensinamento? A resposta é evidente: com sua palavra e seus exemplos ensinou ele sobretudo aos que estudam as ciências sagradas e as disciplinas racionais da filosofia, que se deve a maior docilidade e o maior respeito à autoridade da Igreja Católica (cf. S. Th. III, suppl., q. XXIX, a. 3, Sed contra 2; e IIa. IIae, q. 10, a. 12 in c.). Esta completa submissão à autoridade da Igreja deriva de sua absoluta persuasão de que o magistério vivo e infalível da Igreja é a regra imediata e universal da verdade católica" (alocução de 14 de janeiro de 1958, texto latino no Osservatore Romano de 16-1-1958).

Há certo gênero de literatura filosófico-teológica, muito corrente em alguns ambientes católicos, que faz tabula rasa de tão sabias diretrizes traçadas pelo inolvidável Pontífice para a nossa vida intelectual. Em tais obras, muitas delas de divulgação, e portanto destinadas ao público em geral, costumam reinar não somente uma lamentável confusão de conceitos, mas também uma não menos lamentável confusão de planos: não se sabe ao certo quando se está no plano filosófico, no plano teológico, no plano sociológico ou no plano das meras divagações literárias. Dir-se-ia que de modo premeditado nada se afirma claramente. Insinuam-se meias-verdades, resvala-se no erro declarado, para logo em seguida acertar a mão e explicar, quando se pede uma definição em que não paire sombra de dúvida, que o que se queria dizer era justamente o oposto daquilo que parecia vislumbrar-se no texto em debate... Por outras palavras, nada se afirma, nada se nega de modo claro e insofismável, ao contrário do que preceitua o Divino Salvador: "Seja o vosso dizer sim, sim; não, não" (Mat. 5, 37).

Daremos um exemplo frisante. O chamado personalismo maritainiano faz uma estranha distinção entre indivíduo e pessoa. Segundo tal concepção, o eu-individual, ou simplesmente o indivíduo, ressaltaria da matéria selada pela quantidade e explicaria a subordinação, como parte, do homem à espécie, à sociedade e à pátria. Em contraposição, o eu pessoal, ou simplesmente a pessoa, entraria na sociedade como um todo independente e livre, que só se vincularia diretamente a Deus. O progresso do homem se mediria pela tomada de consciência da pessoa enquanto pes-soa, ou seja, pela sua tomada de consciência de si mesma como um todo independente e oni-suficiente, dotado de liberdade de autonomia. Tal progresso estabeleceria uma tensão, uma luta ou conflito entre a pessoa e a sociedade política.

Assim, enquanto o indivíduo continuaria sujeito ao Estado, a pessoa iria gradualmente cami-nhando no sentido de adquirir a plenitude dos direitos próprios à sua condição de pessoa, entre os quais um dos primeiros seria a liberdade civil de professar publicamente qualquer culto, e de atingir a Deus diretamente, sem ser constrangida por qual-quer meio externo.

Temos, portanto, em resumo, que o Estado maritainista é um Estado coletivista, ordenador de todas as atividades e necessidades do homem enquanto indivi-duo, ao passo que para as atividades superiores do homem en-quanto pessoa, para aquelas atividades que podemos chamar de espirituais, reinaria a mais completa liberdade ou mesmo a mais total anarquia, pois cada pessoa seria um todo aparte, insubordinável. Daí os pendores do maritainismo para o socialismo no que diz respeito à estatização da vida social, e para o liberalismo naquilo que este tem de mais peçonhento, que é a liberdade intelectual absoluta, ou a subtração da criatura às leis emanadas do Criador, e de que é guardiã a Santa Igreja.

Isto que dizemos em resumo, e que já fez correr vários tonéis de tinta em toneladas de papel, tem apenas a finalidade de lembrar aos que nos leem um tipo de desvio intelectual cujas repercussões ainda produzem amargos frutos. E estamos reavivando a memória de nossos leitores apenas como preâmbulo para outro exemplo, este recente, de divagações perigosas pelo campo filosófico-teológico.

Sob o título de "Berdiaef e o Personalismo" e de autoria do Sr. Herbet José de Souza, "O Diário", jornal católico que se edita em Belo Horizonte, publi-cou em seu Suplemento Cultural do dia 13 de dezembro de 1958 um artigo que se pode considerar um prolongamento das páginas confusas de Maritain e seus sequazes a respeito da citada distinção entre indivíduo e pessoa. Mas esse trabalho deixa entrever mais nitidamente, dentro do costumado nevoeiro, o contorno maniqueu dessa estranha concepção personalista que vem invadindo extensos sectores da intelectualidade católica contemporânea.

Não se trata de mera exposição neutra do pensamento de Berdiaef, o que já seria um mal em um jornal católico que se acha em todas as mãos, tendo entrada mesmo em casas de ensino religiosas que vedam aos seus alunos a leitura de publicações profanas justamente para preservar as almas em formação do contagio de doutrinas hete-rodoxas. O autor toma posição clara ao lado de Berdiaef e de seu personalismo: "Berdiaef é um filosofo da afirmação e te-mos sempre a sensação de estar em presença de um homem forte, marcado pelas posições que assume e que trazem a força e a presença de uma vida. Filósofo presente à vida, afirmando valores onde estes são negados, revoltado onde a calma enco-bre a injustiça, severo onde a mediocridade protege o erro, cristão onde a burguesia afirma e cria privilégios. Berdiaef grita que às vezes tentamos falar baixinho para o nosso subconsciente..." (artigo citado). Entre outros gritos de Berdiaef que o autor parece repetir baixinho ao seu subconsciente, se acham: "O primado da liberdade sobre o ser, do espírito sobre a natureza, do sujeito sobre objeto, da pessoa sobre o geral e o universal, da criação sobre a evolução, do dualismo

(continua)