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É A IGREJA UM TROPEÇO À LIVRE EXPANSÃO DA PESSOA HUMANA

(continuação)

sobre o monismo, do amor sobre a lei. Em suma, a orientação de Mounier e tantos outros: persona-lismo, o socialismo personalista, que difere radicalmente da metafísica socialista em vigor, fundada sobre primado da sociedade em relação ao indivíduo. O socialismo personalista reconhece, ao contrário, o primado da pessoa em relação à so-ciedade" (artigo citado).

OBJETIVAÇÃO, SINÔNIMO DE IMPERSONALIDADE

Em que consiste esse primado da pessoa em relação à sociedade? Como conciliar o socialismo, que é sinônimo de totalitarismo ou de servidão coletivista, com essa apregoada liberdade da pessoa humana?

"A realização da pessoa se faz pela atividade criadora, livre, se faz enfim pela transcendência. Nada mais perigoso do que essa afirmação personalista da liberdade absoluta da pessoa, num mundo em que o normal é sinônimo de adaptação, aceitação. Encontramos aqui o mesmo fundamento para o conceito de alienação de Erich Fromm, em El autoanalises de la sociedad contemporanea: fuga pela objetivação, pela exteriorização, pela solução da fa-cilidade.

"O medo do esforço é um obstáculo à realização da personalidade. Contra a atomização do nosso existir, contra a desagregação de nossa participação consciente, o personalismo de Berdiaef afirma que a pessoa é a totalidade do pensamento, a totalidade do querer, a totalidade dos sentimentos e da atividade criadora. A objetivação sig-nifica impersonalidade, projeção do homem em um mundo determinado. A objetivação é contraria à liberdade, que é a condição para a existência da pessoa, porque tudo que concerne à pessoa pertence ao mundo do espírito, não ao mundo objetivo. Buscar-se-ia em vão no mundo objetivo um verdadeiro centro existencial. A pessoa, enquanto centro existencial, possui uma sensibilidade para os sofrimentos e a alegria, sensibilidade que não se encontra em nenhuma parte do mundo objetivo: Nação, estado, instituições sociais, Igreja".

Se a objetivação significa imper-sonalidade, e se Nação, Estado, instituições sociais, Igreja fazem parte do mundo objetivo, parece lógico concluir que a pessoa humana fica fora do âmbito desse mundo objetivo, que é contrário à liberdade, condição para a existência da pessoa. E se o maritainismo declara que os indivíduos é que se subordi-nam à espécie, à sociedade, à pátria, às instituições sociais, sendo a pessoa insubordinável e vinculando-se diretamente a Deus, o articulista de "O Diário" vai mais longe e acrescenta a Igreja a esse conjunto de tropeços à livre expansão da pessoa.

PERSONALISMO CRISTÃO?

Quanto ao papel de purgação para a pessoa humana que a escravidão socialista representaria nessa concepção personalista, a explicação que nos dá o autor, embora confusa, não deixa de ter seu método: "Essa volta à pessoa, como único centro existencial, se efetua à custa de um esforço, de uma luta. A luta para a pessoa, a afirmação da pessoa são atos dolorosos. A realização da pessoa não se efetua sem resistência, ela exige uma luta contra o poder de sujeição do mundo. A renúncia à pessoa, a aceitação de se submeter à ação dissolvente do mundo, são de natureza a atenuar a dor, e as pessoas nisso consentem, facilmente. A aceitação da escra-vidão diminui a dor; a negação a agrava.

"Não é essa a fundamentação de toda a crítica à submissão do homem e sua personalidade ao meca-nismo social de nossos tempos, nessa busca de si mesmo?" (artigo citado).

Devem portanto os homens, enquanto indivíduos, aceitar a servidão socialista, a escravidão totalitária, pois isto resolve seus problemas de seres materiais sujeitos às contingências da vida neste mundo. Assim fazendo, diminuirão suas dores. Mais ainda: fruirão as delicias de sua vida animal num mundo em que tudo se acha regrado, medido, pesado, racionado pela ciência e pela técnica, coadjuvadas pelos cérebros da eficiência e dos institutos psicotécnicos, a cuja argúcia e vigilância nada escapará.

Enquanto isso, a pessoa humana conseguirá se sublimar pela porta da magia e de outros recursos que lhe terão ensinado os mestres de Berdiaef, mestres cuja lista incompleta o articulista de "O Diário" enumera: Tolstoi, Nietzsche, Hegel, Marx, Jacob Boehme, Kant, Dos-toievsky...

A esse sincretismo filosófico-religioso em que é visível a presença da gnose, acrescenta Berdiaef um toque, uma pincelada de cristianismo: "Berdiaef vê nesse fundamento da transcendência da pessoa humana a presença do cristianismo: É somente sobre essa base cristã (o homem à imagem e semelhança de Deus) que é possível se assentar a teoria da pessoa e a transmutação personalista dos valores" (artigo citado).

É aqui o lugar para lembrar as palavras do Santo Padre Pio XII sobre o exemplo que deixou São Tomás de Aquino aos que se dedicam aos estudos em que teologia e filosofia se entrelaçam: exemplo da maior docilidade e do maior respeito para com a autoridade da Igreja Católica. Em outra oportunidade mostraremos, à luz das lições do Angélico, como esse personalismo de Maritain e de Berdiaef se acha afastado dos ensinamentos da Igreja, vale dizer, da verdade. Por hoje queremos apenas apresentar esse exemplo de confusão doutrinaria retirado de ambiente em que devia reinar o maior cuidado e zelo pela pureza dos princípios ortodoxos.

ESCRAVIDÃO DO INDIVÍDUO E LIBERDADE DA PESSOA

Para que os nossos leitores não pensem que exageramos ao concluir que o articulista de "O Diário" interpreta o pensamento de Berdiaef no sentido de ser deixado o indivíduo à sanha do Estado totalitário, enquanto a pessoa se isola no Nirvana que o teósofo Jacob Boehme — a quem Berdiaef sentia ser "como um irmão espiritual" (1) — nos apresenta em seu "Mysterium Magnum", vamos completar a citação: "Para Berdiaef o homem, sendo um ser que se trans-cende, para realizar a pessoa, pode caminhar em duas direções: pode sair da subjetividade por meio da objetividade, por meio da objetivação, o que quer dizer, entrar na sociedade aceitando suas formas e obrigações, caminho esse que o conduzirá ao mundo objetivo e não à pessoa, ou então poderá se evadir da subjetividade transcendendo-a, passando ao trans-objetivo. Este caminho passa pela profundidade da existência, e é sobre esse caminho que tem lugar o encontro com Deus, com outros homens, com a essência interior do mundo, porque é o caminho, não das comunicações objetivas, mas das comunhões existenciais. A transcendência, no sentido existencial, é a liberdade e supõe a liberdade, é a libertação do homem de seu próprio aprisionamento. Mas essa liberdade é uma liberdade difícil, afetada de uma trágica contradição, porque a pessoa reflete a imagem da existência incondicionada, e se encontra ao mesmo tempo condenada a uma existência condicionada. Condicionada enquanto individuo, incondicionada, livre, enquanto pessoa. Livre porque a liberdade da pessoa é uma vocação, a realização da ideia de Deus no homem, uma resposta ao chamado de Deus" (artigo citado).

Ora, acreditamos que, apesar de confuso, todo o contexto afirma que no homem existem dois princípios: um princípio mau, que reside no indivíduo, condicionado, escravo do mundo objetivo, sujeito às leis emanadas da Igreja e do Estado; e um princípio bom, que resi-de na pessoa, à qual pertence tudo que concerne ao mundo do espírito, única detentora da liberdade, do privilégio de entrar em contato direto com a divindade, de responder ao chamado de Deus.

Voltaremos ao assunto para mostrar que essas estranhas teorias, longe de constituírem novidade, se acham no cerne dos erros que São Tomás de Aquino combateu sobretudo na "Suma contra os Gentios". Mas antes de fazê-lo, dirigimos um fraternal apelo ao articulista de "O Diário": se por acaso não é esta a conclusão a que deseja conduzir seus leitores, que venha a público dizer francamente qual a exata interpretação de seu pensamento. E o faça em linguagem clara, ao alcance das jovens inteligências que se abeberam nesse que é um dos jornais católicos de maior circulação no Brasil.

E aos espíritos acomodatícios, que não gostam de polêmicas, antecipadamente avisamos que a inicia-tiva não foi nossa. Uma vez publicado em órgão de responsabilidade um artigo desse teor, por dever de oficio não nos podemos calar.

Esse amor à verdade e nossa do-cilidade aos ensinamentos da Igreja é o que nos levam a reunir estas notas, ditadas pela caridade fraterna. Caridade que procura se estender não somente ao articulista de "O Diário", mas também e sobretudo aos nossos irmãos na Fé que se podem deixar influenciar pela confusão doutrinaria encerrada no trabalho que comentamos.

(1) In “A doutrina da Sofia e da Androgina — Jacob Boehme e as correntes sociológicas russas” — introdução ao “Mysterium Magnum” de J. B., ed. Montaigne, Paris, 1945, vol. I, p. 45.


COMENTANDO...

A música do futuro: angustiante

Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira

‘‘Eu vim para que tenham a vida, e para que a tenham em abundancia" (Jo. 10, 10). "Gloria a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade" (Luc. 2, '14). São, essas, expressões bem marcantes da afabilidade com que Nosso Senhor se apresentou aos homens. Ele veio assegu-rar-nos a verdadeira felicidade, não só no Céu, mas também nesta terra: 'Quem deixar sua casa, seus pais, seus irmãos, sua mulher ou seus filhos por causa do reino de Deus, receberá muito mais neste mundo, e a vida eterna no outro'" (Luc. 18, 29-30).

Os próprios sofrimentos que a Re-ligião nos leva a aceitar resignadamente, ou mesmo a procurar, são muito intensos, é certo; mas são ordenados, razoáveis, e até desejáveis para quem ama a cruz de Jesus Cristo. Santa Teresinha escreveu: "A verdadeira felicidade está no sofrimento, e no sofrimento sem nenhuma consolação".

O demônio, pelo contrário, promete o prazer, a existência fácil e suave. Mas esse prazer é alucinante, excita o espírito, desgoverna a alma, e, quando passa, deixa atrás de si a aflição, a angustia, o desespero.

O que o demônio quer estabelecer neste mundo é uma civilização caótica, que torture e enerve os homens. Uma civilização que seja o oposto da cristã: sem beleza, sem harmonia, sem amenidade, sem a calma seria e sabia das coisas de Deus.

O mundo moderno adquire, cada vez mais, aspectos demoníacos. Portanto, como não poderia deixar de ser, vai-se tornando inóspito, hostil ao homem, de-sesperador. E isso nas mais diversas manifestações da vida dos povos.

Esteve recentemente entre nós o Prof. Meyer-Eppler, da Universidade de Bonn, o qual deu demonstrações práticas da música eletrônica, "a música do futuro". Tudo composto por alemães, e gravado em Colônia.

A música eletrônica não tem harmonia; pelo contrário, faz questão de ser angustiante, e de não distrair nem repousar. As partituras compõem-se de simples traços, maiores ou menores, trazendo à margem a frequência do som. Não há executantes humanos, que são substituídos por aparelhos eletrônicos. As instalações são muito complexas, pois é preciso produzir ruídos variados: ecos, chiados, baques, silvos em diversas frequências etc. Querendo-se obter sons mais ou menos agudos, aumenta-se ou diminui-se a velocidade da fita no gravador. É essencial que não seja possível executar a "música" com os instrumentos tradicionais.

Muita razão tinha São Pedro, quando disse a Nosso Senhor: "A quem iremos" se Vos abandonarmos? (cf. Jo. 6, 69). Pois longe de Jesus Cristo só há o inferno. Como o homem moderno timbra em não reconhecer essa verdade, sua vida é cada vez mais infernal. Até a arte o tortura, e ele se mostra muito alegre com isso...


Devendo ser publicado em abril o 100º número de «Catolicismo», esta folha assinalará o fato com uma edição especial. Daremos então a lume um trabalho em que nosso colaborador Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira expõe as teses deste jornal sobre o tema REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO, a fim de proporcionar a nossos leitores um conhecimento ainda mais exato de nosso espírito. Publicaremos também a tradução francesa desta exposição de teses, para maior comodidade de nossos leitores no exterior. Dado o excepcional interesse do assunto, recomendamos aos propagandistas, assinantes e leitores que nos telegrafem desde logo, se desejarem encomendar exemplares extraordinários desse número 100.


SANTA MARGARIDA DE CORTONA

“Eu te escolhi no fundo dos abismos deste mundo”

Celso da Costa Carvalho Vidigal

“Fui procurar no fundo dos abismos deste mundo e te escolhi porque Me agrada exaltar os humildes, justificar os pecadores, tornar precioso o que é vil. Destinei-te a ser a rede dos pecadores. Quero que sejas a luz dos que estão mergulhados nas trevas do vício; quero que o exemplo de tua conversão pregue a esperança aos pecadores; quero, enfim, que os séculos vindouros se convençam de que estou sempre pronto a abrir os braços de minha misericórdia ao filho pródigo que volta a Mim sinceramente" ("Legenda Beatae Margaritae" por Fr. Giunta Bevegnati, c. II, 4; IV, 12 e 13; apud Léopold de Chérancé, O. F. M. Cap., "Sainte Marguerite de Cortone", Paris, 1888). Com essas palavras Nosso Senhor se dirigiu a sua esposa Margarida de Cortona, em uma de suas numerosas aparições àquela alma privilegiada.

De fato, fora do fundo do abismo que o Divino Mestre retirara a insigne penitente. Nascida no seio de uma família cristã, sendo seus pais humildes camponeses que habitavam a cidade de Laviano, na Úmbria, Margarida viu a luz do mundo em 1247: Aos sete anos de idade perdeu sua mãe, não sem ter antes recebido dela a formação religiosa que mais tarde a ajudaria a trilhar os caminhos da santidade. O segundo casamento de seu pai, dois anos depois, teve consequências funestas para a pequena órfã, pois que foi sempre mau o tratamento que esta recebeu de sua madrasta. Carecendo de apoio humano justamente na idade em que uma boa orientação se faz mais necessária, aos quinze anos Margarida entregou-se com entusiasmo aos divertimentos mundanos da vida de sociedade. E foi assim que, sem maiores resistências, se deixou seduzir por um jovem senhor de Montepulciano que por ela se apaixonara, e com ele fugiu da casa paterna. Julga-se que então a futura penitente contava dezessete anos; era extraordinariamente bela e elegante: não se diria que era filha de humildes camponeses.

Para vencer as doze milhas que separavam Laviano de Montepulciano, os fugitivos precisavam atravessar os alagadiços do Chiana, os quais, por ser a travessia noturna, se faziam perigosos. Naufragando o barco que os conduzia, teriam ambos perecido nas águas pantanosas se não fosse uma proteção especialíssima do Senhor, que desde esse momento já velava pela nossa Santa (Bevegnati, c. I, 2).

"ALGUM DIA ME CHAMAREIS SANTA"

O sedutor havia prometido casar-se com Margarida, mas não cumpriu a palavra, e a infeliz viveu com ele durante nove anos (1264-1273), desafiando a lei divina. Tiveram um filho, que desempenharia mais tarde um papel na vida de penitente de sua mãe.

Esses nove anos, passados no luxo e na opulência, no meio de festas e de aduladores, não foram para a jovem anos de sossego e de paz; pelo contrário, sua consciência sempre a acusava, e o nítido conhecimento de sua miséria moral a perturbava profundamente. Mais tarde ela mesma diria: "Em Montepulciano perdi a honra, a dignidade, a paz; perdi tudo, menos a fé" (Bevegnati, c. IV, 13). Foram anos de pecado, mas também de lágrimas, pois que, sem renunciar aos prazeres, os seus instantes de solidão eram consagrados a chorar o seu erro. Até predisse certa vez a sua conversão; foi quando respondeu com essas palavras às amigas que lhe censuravam o luxo no trajar: "Consolai-vos; dia virá em que me chamareis santa e visitareis de cajado na mão o meu túmulo". Sem poder explicar o que dizia, a pecadora repetia, de certo, o que o Espírito Santo lhe ditava.

MORRE GUILHERME DEL PECORA; MARGARIDA CONVERTE-SE

Em princípios de 1273, Guilherme del Pecora — era o nome de seu cúmplice — saiu de casa para resolver certa desavença com um vizinho. Ainda não regressara, passados dois dias, quando a galga que sempre o acompanhava voltou em busca de sua senhora e aos ganidos pôs-se a puxá-la pela saia. Seguindo o animal até a floresta de Petrignano, Margarida encontrou ali, coberto de folhas e já em decomposição, o cadáver de Guilherme. Transtornada, maldizendo a crueldade dos assassinos, ocorreu-lhe ao mesmo tempo a lembrança dos terríveis juízos de Deus, e do castigo eterno de que ela própria talvez fora causa para a alma do jovem gentil-homem. Era o seu caminho de Damasco. Voltando a Montepulciano, entregou todos os seus bens aos parentes do morto e, depois de vestir trajes grosseiros de luto, partiu para a cidade natal, acompanhada por seu filho.

As humilhações que Margarida se impôs, ao se lançar aos pés de seu pai para pedir perdão, foram suficientes para amolecer o coração paterno justamente indignado com o seu crime. Mas nada podia quebrar a dureza de sua madrasta que, depois de ter sido a causa indireta de sua perdição, não tinha nenhum desejo de dar acolhida ao seu arrependimento. Diante disso, o pai teve a fraqueza de fechar à pobre penitente as portas do lar; retirando-se da casa em que nascera, sentou-se ela junto de uma figueira que ornava o jardim, e ali deu-se o diálogo que fixou os rumos de seu futuro. O demônio postou-se ao seu lado e sugeriu: "Volta às delicias da vida. És bela; os amantes não te faltarão e, aceitando sua proteção, não merecerás censura, uma vez que teus pais te expulsaram de casa". E sua consciência respondeu: "Não, não, Margarida, não entregues mais teus dias à ignomínia e ao remorso. Por muito tempo desonraste o teu Criador; por muito tempo te professaste inimiga de Quem te resgatou com o preço de seu sangue. Chegou a hora de expiar teus crimes. Que importa a miséria? Mais vale mendigar teu pão que voltar ao mal. Teu pai da terra te repeliu; teu Pai do Céu te receberá". Logo uma palavra interior a advertiu: "Vai a Cortona e põe-te sob a direção dos Frades Menores". Incontinenti, a nova Madalena se levanta, toma seu filho de sete ou oito anos, e se dispõe a franquear a pé as doze milhas que separam sua terra de seu novo destino. Não foram também doze milhas que, nove anos antes, ela percorreu, com tanto empenho e até com risco de vida? Porque hesitar se essas novas doze milhas são o caminho da sua redenção?

Chegando à cidade que veria o resto de sua existência, Margarida logo travou conhecimento com duas piedosas Condessas, Marinaria Moscari e sua nora Raneria, às quais expôs suas desordens passadas e seu arrependimento, assim como sua intenção de se confiar aos filhos de São Francisco. As nobres senhoras, depois de ouvirem-na com interesse, acolheram-na em sua própria casa, encarregaram-se da educação de seu filho, e apresentaram-na ao Padre Reinaldo de Castiglione, então Guardião do Convento franciscano de Arezzo. Este, ao que parece, foi quem a encaminhou ao Padre Giunta Bevegnati, que seria o seu diretor espiritual e, mais tarde, o seu biógrafo.

"EXPULSAI DE VOSSOS MUROS ESTA PECADORA"

Os primeiros passos de sua regeneração, a Santa os deu no sentido de uma ruptura total com o passado. Escolhendo o caminho da obediência e da mortificação, nada lhe parecia bastante para castigar um corpo outrora tão exigente. Cortar os cabelos, enegrecer o rosto, renunciar aos alimentos delicados, de que antes gostava tanto, e contentar-se com pão e água, legumes e frutas, trazer um rude cilício sobre a carne e maltratá-la com duras disciplinas, eram algumas das impressionantes manifestações de seu empenho em expiar os pecados que cometera. Como escreveu o Padre Bevegnati, nunca ninguém se dedicou com tanto ardor a obter uma coroa real, como essa penitente a cingir a coroa de espinhos de Nosso Senhor.

Além das mortificações, as humilhações voluntarias. Assim é que certo dia, com licença de seu diretor de consciência, Margarida se dirigiu à aldeia onde nascera; ali, à porta da igreja, à saída da missa dominical, lançou-se aos pés de uma nobre senhora cujos bons conselhos outrora recusara, e implorou perdão pelos escândalos que havia dado a toda a população de Laviano.

Muitas das mortificações que a Santa idealizava não chegavam a se realizar, pois seu confessor as reputava excessivas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com seu desejo de dilacerar as faces com uma navalha.

Logo que se instalou em Cortona, a jovem penitente quis inscrever-se na Ordem Terceira de São Francisco. Os Padres não concordaram, entretanto, pois não queriam passar por levianos ao aceitar uma pessoa cujo arrependimento ainda não estava confirmado pelo tempo. Só em meados de 1276, depois de grandes protestos de conversão e de regeneração, umedecidos com as mais ardentes lágrimas, os Frades Menores

(continua)