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OFERECEU-SE COMO VÍTIMA EXPIATÓRIA PORQUE OS MUÇULMANOS DOMINAVAM A TERRA SANTA

Continuacão

consentiram em impor-lhe o habito e iniciá-la na trilha franciscana.

Assistida pelas graças especiais re-cebidas nessa ocasião, Margarida tomou três resoluções: não viver senão de esmolas, redobrar as mortificações, e pedir à sua benfeitora, a Condessa Marinaria, uma moradia mais solitária e mais pobre. O Padre Giunta aprovou esses seus propósitos, e a nobre Condessa pôs à sua disposição um apartamento isolado da casa dos Moscari e vizinho da igreja de São Francisco.

Passando a viver mais separada do mundo, a nova terceira só abandonava sua habitação para se dedicar ao serviço de Deus, dos pobres e dos doentes. Frequentando sempre a igreja dos Frades Menores, agora tão próxima, ali foi favorecida por inúmeras manifestações do Altíssimo. Ali ouviu pela primeira vez de maneira sensível a voz do Filho de Deus; ali o Senhor a absolveu de todos os seus pecados; ali, depois de sofrer uma tríplice tentação diabólica, recebeu a promessa de que o inimigo de todo o bem não conseguiria jamais seduzi-la. Numa das três tentações, Satanás lhe sugeriu que ela era uma Santa e que todo o mundo a venerava, e então, para fugir ao perigo da vaidade, Margarida subiu ao telhado de sua casa e de lá, aos brados, despertou a cidade para que ouvisse as suas faltas. "Habitantes de Cortona, dizia ela, levantai-vos e armai-vos de pedras, para expulsar de vossos muros a pecadora escandalosa que tanto ofendeu a Deus e aos homens". Passando depois a narrar sua vida, isso resultou em grande edificação dos ouvintes e confusão do demônio, que assim foi posto em fuga.

"MINHA PECADORA" - "MINHA FILHA" - "MINHA ESPOSA"

Na primeira vez em que se dirigiu à nossa penitente de modo sensível, o Senhor chamou-a "minha pecadora". Aspirando ela a um título melhor, o Divino Mestre logo a advertiu: "Queres ser um vaso de eleição e és ainda um vaso de pecado". Foi cerca de seis meses após seu ingresso na Ordem Terceira, em 27 de dezembro de 1276, que, depois da comunhão, ouviu uma voz de indizível ternura que a tratava por "minha filha".

Deus lhe reservava privilégios ainda maiores. Não se sabe em que ano, em um dia da oitava da Assunção, teve lugar o seu matrimonio místico. Comum na vida das grandes Santas, com cada uma esse dom sobrenatural assume formas sensíveis de uma grandeza e majestade singulares. Precedidas pela visita de um Anjo, que, com alguma antecedência, foi pedir o consentimento da eleita, consentimento aliás dado sem hesitação, as núpcias se realizaram na própria cela de Margarida, que então se encontrava enferma. Tendo o Padre Bevegnati ido levar-lhe a comunhão, eis que, ao cruzar ele a soleira, uma luz repentina e uma torrente de delicias invadiram a alma de sua dirigida. No momento da comunhão ela foi arrebatada em êxtase e seus olhos se abriram para os mistérios do mundo invisível. Os Anjos colocaram-lhe sobre os ombros uma veste mais branca que a neve e adornada de ouro; puseram em seguida um anel em seu dedo e cingiram sua fronte com um resplandecente diadema de rubis. Então brotou-lhe dos lábios, espontâneo, um ato de fé: "Vós sois, Senhor, o Cristo, o Filho do Deus vivo", e o Verbo Encarnado respondeu: "E Eu, Eu te declaro que és minha esposa". E assentando o seu trono no coração de Margarida, consumou as núpcias místicas que, na linguagem ascética, se chamam matrimonio espiritual, e das quais o essencial é estabelecer entre o Esposo e a esposa uma perfeita comunidade de bens. O Deus feito homem comunicou à antiga pecadora de Montepulciano todos os seus méritos, todas as suas riquezas, especialmente o espírito de contemplação de Maria Madalena, o ardor dos Serafins, a ciência dos Profetas, o dom dos milagres, o discernimento dos corações, enquanto que, em troca, ela se comprometia a não viver senão para procurar a gloria divina.

"EU TE ESTABELEÇO MEDIADORA DA PAZ"

Uma das missões de Santa Margarida foi a de trabalhar pelo reerguimento moral de sua pátria.

Para isso foi necessário, mais de uma vez, que saísse de sua cela e fosse oferecer conselhos a algum alto personagem. Tal foi o caso do Bispo de Arezzo. Chefe espiritual e ao mesmo tempo príncipe temporal, Guilherme Ubertini pretendeu, ilegitimamente, fazer reviver antigos direitos de suserania sobre Cortona. Preparava-se o Prelado "condottiere" para a guerra de conquista, quando a humilde irmã terceira lhe comunicou as palavras que ouvira do próprio Deus: "É a ti que estabeleço mediadora da paz. Advertirás o Bispo de que ele deve cumprir as obrigações que lhe impõe sua dignidade espiritual, licenciar suas tropas, celebrar a paz com Cortona. Ai dele se não obedecer". Reconhecendo nessa mensagem a voz do Céu, Guilherme Ubertini apressou-se a assinar um tratado de paz.

De outra feita, a Santa atuou em um cenário mais amplo, se bem que menos ostensivamente. Rodolfo de Habsburgo e Carlos de Anjou reclamavam, ambos, domínio da Toscana, Ancona e Romanha; essas três províncias faziam parte do patrimônio temporal da Igreja e em vão a Santa Sé lembrou àqueles Monarcas que não passava de usurpação sacrílega o que pretendiam. Os exércitos do Imperador e do Rei da Sicília já se preparavam para se defrontarem, quando o Padre Giunta rogou à sua dirigida que intercedesse perante o Senhor para obter a paz. A Santa se ofereceu como vítima para receber os castigos destinados às duas nações rivais, e imediatamente as ameaças de guerra se dissiparam. Melhor, ainda, o Papa Nicolau III, não apenas conseguiu estabelecer uma aliança entre os inimigos da véspera, como obteve dos mesmos o compromisso de defender até pelas armas os direitos pontifícios.

AS "POVERELLE", UMA CONGREGAÇÃO ORIGINAL

Uma obra da penitente de Cortona que não poderíamos deixar de assinalar é a Congregação de terciárias franciscanas que ela fundou com a finalidade de alimentar e assistir doentes e pobres.

As "Poverelle", como se tornaram conhecidas as suas Religiosas, viviam em comunidade, mas sem clausura: foi a primeira instituição do gênero na história medieval. A regra primitiva - que revela o senso prático e as qualidades de organizadora da fundadora -vigorou até 1591, quando se obrigou as Irmãs à vida enclausurada. Foi supressa pela Revolução Francesa.

MÃE QUE MUITOS NÃO COMPREENDERIAM

Com relação ao seu filho, Margarida se comportou, depois de sua conversão, com um zelo que nenhuma pessoa sentimental compreenderia. Assim é que o servia sempre depois dos pobres e com alimentos menos bem preparados do que os que destinava a estes, pois, dizia, "em meu filho é sangue que fala; nos indigentes e estranhos a carne não tem parte, mas só espírito e a fé".

Encaminhado por sua mãe para a vida religiosa, o jovem ingressou na Ordem de São Francisco. Mesmo depois de sua profissão naquele instituto, a Santa ainda lhe enviava conselhos espirituais, e consta que ela teve uma revelação do Altíssimo segundo a qual a salvação de seu filho estava assegurada.

"A TERCEIRA LUZ DA ORDEM SERÁFICA"

Santa Margarida foi principalmente uma alma reparadora. Certa vez o Verbo Encarnado lhe apareceu e disse: "Se São, Francisco foi a primeira luz da Ordem Seráfica, e Santa Clara a segunda, tu serás a terceira". Ela era o modelo do amor penitente, como o santo Fundador fora o modelo da vida apostólica e Santa Clara o modelo da virgindade. Nessa qualidade, a nossa Santa não poderia deixar de ter uma grande devoção à Cruz, e a isso se ligam duas passagens importantes de sua vida mística.

Na quinta-feira santa do ano de 1287, depois da missa conventual na igreja de São Francisco, a vidente foi arrebatada em êxtase e presenciou, ao mesmo tempo que as descrevia, todas as cenas da Paixão de Jesus Cristo, que acompanhou com violenta emoção. A noite que se seguiu, Margarida a passou aos pés do crucifixo de sua cela, qual nova Madalena, perguntando pelo Senhor que lhe tinham tirado. E pela manhã Jesus lhe apareceu como no dia de sua Ressurreição.

Um ano após, durante a Quaresma, teve a revelação dos pecados de seus contemporâneos: a corrupção de tantos fiéis, as dissensões entre os Príncipes, a maldade dos judeus, os Lugares Santos entregues aos infames muçulmanos. ... Foram-lhe mostrados também os castigos que ameaçavam a Cristandade. A gloriosa penitente ofereceu-se então como vítima expiatória. Poucos dias depois, na festa da Anunciação, Nosso Senhor dignou-Se aceitar esse oferecimento: numa segunda visão, anunciou que o próprio coração de sua esposa seria crucificado, e transpassou-o com uma flecha abrasada.

Santa Margarida de Cortona entregou a alma ao seu Divino Salvador no dia 22 de fevereiro de 1297. Seu corpo repousa incorrupto na igreja de seu nome, em Cortona; a incorruptibilidade da carne, prêmio habitual da virgindade, veio neste caso indicar que a penitencia a havia purificado de seus pecados. Sua alma, subindo aos Céus, goza do prêmio das virgens, que é seguir o Cordeiro a toda parte (Bevegnati, IV, 13 e 15; XI, 15).


VERBA TUA MANENT IN AETERNUM

• Necessidade premente: guiar a juventude neste tempo de profunda desorientação espiritual

JOÃO XXIII: Nada, de fato, Nos tem preocupado e ocupa mais do que esta porção tão delicada do Nosso rebanho (a juventude) em tempo de tanta desorientação espiritual e em meio a um mundo frequentemente em contraste com os ensinamentos do Evangelho. Prodigalizem-se, pois, as melhores energias a fim de que os caros jovens sejam adequadamente nutridos pelo alimento celeste das verdades divinas e sejam educados no culto e no amor da virtude. Só assim Nossa dileta Veneza estará à altura de manter intactas suas tradições cristãs, que formam a herança mais preciosa deixada pelos antepassados e sua gloria mais refulgente, e só assim lhe será assegurado um porvir melhor. — (Mensagem ao Povo Veneziano, de 31-X-1958).

• Cisma, palavra que queima os lábios e ulcera o coração

JOÃO XXIII: Desejamos que Nossa voz e Nossas exortações alcancem também os (católicos chineses) que desgraçadamente deram sinais de fraqueza, incerteza e desorientação; especialmente os que ocuparam ilegitimamente a cátedra dos Pastores e assim abriram lamentavelmente o caminho para um cisma.

Esta palavra "cisma", ao mesmo tempo em que a pronunciamos, queima-Nos os lábios e ulcera-Nos o coração! No momento em que tomamos sobre Nossos ombros o peso do Supremo Pontificado e inauguramos Nosso encargo de imensa e paterna caridade, que abraça toda a grande família humana com seu zelo e seu amor, não poderíamos furtar-Nos a rezar a Deus Todo-Poderoso para que benignamente afaste da comunidade católica chinesa a ameaça de tal flagelo. — (Alocução ao Consistório Secreto de 15-XII-1958).


OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX

Aparece o liberalismo católico

Fernando Furquim de Almeida

Tendo o movimento católico inglês surgido após a condenação de Lammenais pela Encíclica “Mirari vos”, foi fácil ao Cardeal Wiseman, ultramontano decidido, impedir que o contaminassem os erros liberais mais crassos. O mesmo não aconteceu com os desvios larvados do chamado liberalismo católico, principalmente depois que o Bispo de Orleans, Mons. Dupanloup, com o emprego sistemático, oportuno e inoportuno, da célebre distinção entre a tese e a hipótese, reuniu em torno de si os remanescentes da facção católico-liberal da França.

Naturalmente o liberalismo católico não aparecia em todos os países com as mesmas características. Os seus erros se amoldavam ao ambiente em que eram introduzidos, e geravam movimentos que, muitas vezes, se combatiam uns aos outros nos pormenores, embora fossem aliados na luta contra o ultramontanismo.

Na Inglaterra, a intensa vida de sociedade que existiu no século XIX era fruto da educação que as classes elevadas recebiam em Oxford e Cambridge. O espírito que dominava essas universidades se irradiava por todo o país, por intermédio de seus antigos alunos. Desde o mais humilde operário até a Família Real, quase não havia quem não sofresse a influência do seu ensino elegantemente humanista a recheado de citações patrísticas interpretadas à maneira anglicana. Por outro lado, a grande força do Catolicismo inglês era constituída pelos irlandeses, que as fomes periódicas em sua pátria obrigavam a emigrar. Sendo eles apontados como ignorantes, por estarem imunes ao influxo das grandes universidades, em breve se generalizou o preconceito de que o nível intelectual do clero e do laicato era muito baixo. Disso se aproveitou o liberalismo católico para introduzir-se na Inglaterra, aplicando à formação intelectual dos católicos os métodos usados pelos universitários ingleses nos seus estudos.

Em geral, os convertidos do Movimento de Oxford eram ultramontanos e cerravam fileiras em torno do Cardeal Wiseman. Infelizmente, o mesmo não acontecia com Newman. Impregnado do espírito que adquirira em sua mocidade, flutuava entre a ortodoxia e o liberalismo, numa falta de definição que prejudicava todas as suas obras.

Inúmeros foram os atritos que teve com o Cardeal Wiseman, e até com os seus companheiros, devido a suas ideais preconcebidas a respeito do nível cultural dos católicos. É suficiente lembrar que os padres Faber e Dalgairns, seus amigos desde o tempo do protestantismo e seus colaboradores na fundação do Oratório de Birmingham, foram obrigados a dele se separar, abrindo em Londres um novo Oratório que se tornou logo um baluarte do movimento católico.

Em 1848, um grupo de liberais católicos, liderado por Simpson, levou às últimas consequências os preconceitos de Newman. Seu órgão, a revista “The Rambler”, tinha o fim específico de difundir os estudos históricos. Desde o primeiro número se notou nessa publicação a influência de Ignaz von Doellinger, o famoso dirigente do liberalismo católico de Munique, que procurava reescrever a história da Igreja usando unicamente métodos de investigação próprios à ciência histórica, com completa abstração do elemento sobrenatural. 0 mesmo intuito era proclamado pela nova revista. Os perigos desse exclusivismo científico ficaram claros mais tarde na Alemanha. Conduziu ele à criação da Teologia Histórica, que se opôs tenazmente ao tomismo que renascia na Itália, levou vários bispos alemães a combater a infalibilidade do Papa, no Concílio do Vaticano, e arrastou von Doellinger à triste celebridade da apostasia.

Na época da fundação da revista, no entanto, essa atitude intelectual parecia a muitos razoável, e “The Rambler” foi bem acolhida mesmo pelo Cardeal Wiseman, que não temia a investigação científica séria e conscienciosa.

Um colaborador brilhante recebeu “The Rambler”, com a volta à Inglaterra, em 1856, de Lord John Acton, que terminara seus estudos com Doellinger na Alemanha. Era filho de um par inglês e de uma nobre alemã; enteado de Lord Granville, que teve sobre ele grande influência; neto de um ministro do Rei de Nápoles; e sobrinho do Cardeal Acton. Esse jovem aristocrata ia pôr a serviço do liberalismo católico todo o prestígio de sua situação social. O ideal de sua vida era escrever uma história da liberdade, e proclamava ser um "homem que renunciara a tudo o que no Catolicismo era incompatível com a liberdade e a tudo o que na política era incompatível com a fé católica". Extremamente inteligente e muito relacionado em toda a Europa, com sua adesão "The Rambler" ganhou novo alento.

Em 1859 Lord Acton tornou-se diretor da revista, que deixou então os estudos históricos e passou a ser o órgão do liberalismo católico na Inglaterra, tendo entre seus colaboradores, além de Doellinger, Mons. Dupanloup, Montalembert, o Padre Gratry e todos os líderes católico-liberais europeus.

O velho grupo católico que se opusera desde o princípio ao Cardeal Wiseman era um aliado natural de “The Rambler”. Sempre temerosos de enfrentar o protestantismo, seus membros tinham de acolher com simpatia mais essa tentativa de amoldar a doutrina da Igreja ao meio em que viviam.

Incapazes de entusiasmo, desorganizados, não seriam porém de temer, se não fosse o apoio que recebiam de Mons. Errington, Bispo Coadjutor de Westminster. O Cardeal Wiseman, preocupado com as lutas em que se empenhara pela conversão da Inglaterra, confiava a parte administrativa do governo diocesano a Mons. Errington, que era exímio administrador. O aparecimento do liberalismo católico veio alterar completamente essa situação. Levado pelo seu natural conformismo, e obrigado constantemente a intervir nas divergências entre os fiéis da arquidiocese, o bispo coadjutor muitas vezes tomava posição contrária à do Cardeal, prejudicando seriamente o apostolado deste último e servindo de escudo aos liberais católicos. Destruía assim a boa harmonia que existira até então no governo do arcebispado.

Entre a indecisão de Newman e a ousadia de Lord Acton, todas as posições intermediárias tinham seus representantes. Eram, no entanto, Mons. Errington e “The Rambler” os pontos-chave. Por volta de 1860, a Inglaterra parecia seguir as pegadas dos outros países da Europa, onde novamente o liberalismo se arrogava direitos de cidadania na Igreja e se opunha tenazmente aos progressos da ortodoxia.


NOVA ET VETERA

“O Doutor Jivago”

J. de Azeredo Santos

Não há muito tempo fazíamos referência à grande mistificação publicitária que constituiu o aparecimento do livro “A Nova Classe”, de Milovan Djilas (“Catolicismo” nos 93 e 94, setembro e outubro de 1958).

Queremos hoje tecer alguns comentários em torno de fenômeno parecido que vem de acontecer com o romance “O Doutor Jivago”, do escritor soviético Boris Pasternak.

Os fatos, em resumo, ter-se-iam passado da seguinte maneira. Entre 1913 e 1953 foi escrita essa obra volumosa, em forma de romance, recebendo o título que ainda hoje ostenta. Após a morte de Stalin, a Editora Oficial do Estado Soviético aceitou-a para publicação. Entretanto, como resultado de um segundo exame mais rigoroso, diz a propaganda russa, foi a obra censurada e sua divulgação proibida. Nesse meio tempo, o autor havia fechado negócio com um editor comunista em Milão para a publicação do romance fora da Rússia. Pasternak, segundo consta, escreveu ao citado editor procurando convencê-lo de acatar a censura soviética. Aparentemente o marxista italiano não esteve pelos autos, e o romance começou a correr o mundo.

UMA HONRARIA BURGUESA

Este é o primeiro ato. No segundo entra em cena o legado de um certo burguês chamado Nobel, que amealhou imensa fortuna fabricando dinamite. De acordo com o testamento do mencionado milionário, seriam instituídos prêmios para periodicamente galardoar os homens que mais se destacassem em determinados ramos da atividade intelectual: literatura, poesia, física, filosofia, medicina, etc.

Ora, acontece que o órgão competente, cujo estranho critério ou falta de critério neste, como em vários outros casos, não é nosso propósito discutir, escolheu o escritor Boris Pasternak para o Premio Nobel de Literatura de 1958.

Segundo telegramas vindos da Rússia, o governo soviético proibiu o nosso autor de receber essa recompensa de seus méritos. E convidou-o mesmo a abandonar o país. O poeta escritor Boris Pasternak escreveu então uma carta ao camarada Nikita S. Krutchev, na qual comunicava não lhe ser possível deixar a União Soviética. Já informara a Academia Sueca de sua voluntaria renúncia ao Prêmio Nobel. Mas deixar a Rússia, isso não, seria demais. Apesar de seus erros e enganos, queria ali permanecer, pois “com a mão no coração” podia dizer que fizera alguma coisa pela literatura comunista e poderia ainda ser-lhe útil no futuro.

Enquanto isto, e entrando no terceiro ato, todos os meios de propaganda do Ocidente vibram em torno do caso. O livro é traduzido em dezoito línguas. Por assim dizer, em cada esquina se ouve comentar o Doutor Jivago. Até suplementos literários de jornais católicos se ocupam do assunto em tom comovente e patético. Um publicista católico muito conhecido no Brasil chega a perguntar se, enquanto ele escrevia algumas linhas sobre a odisséia do pobre Boris Pasternak, os poderes de Caim já não teriam levado o infeliz Abel a suicidar-se. Nunca dantes o lirismo e a ternura teriam sido levados tão alto como o fez esse Iuri Andredevich Jivago. Há quem fale em herói de Esquilo, um novo Orestes perseguido pelos cães mais ferozes das matilhas do Império Soviético... E como pormenor significativo do resultado de tão bem urdida e generalizada propaganda, convém notar que a edição brasileira se acha esgotada e que a tradução castelhana de “O Doutor Jivago” está sendo vendida entre nós a oitocentos cruzeiros o exemplar. E o curioso é que, enquanto isto acontece, o escritor Boris Pasternak continua a aparecer como um pobre, um miserável, perseguido e ultrajado pelos déspotas do Kremlin.

"BLUFF" PUBLICITÁRIO

Ora, raciocinemos um pouco. Não há palavras suficientes para verberar os processos criminosos com que a máquina política russa esmaga seus inimigos. Mas uma coisa não se pode negar: é o grande senso prático dos dirigentes soviéticos, principalmente no que diz respeito à propaganda. De modo que, a se tomar como verdade que tudo tenha feito a polícia política do Kremlin para impedir que esse romance fosse conhecido no exterior, seremos forçados a concluir que nos achamos diante de um estrondoso fiasco. Mas será realmente um fiasco? Conhecendo, como conhece, todos os recursos psicológicos da propaganda, estaria realmente empenhado o governo soviético na proibição desse romance, ou estaríamos em presença de um grande, de um enorme “bluff” publicitário?

Se o camarada Nikita Krutchev estivesse sinceramente interessado em impedir a divulgação de tal livro, não seriam empregados os métodos já clássicos da campanha do silêncio?

Ademais, indaguemos: trata-se de um livro contra-revolucionário? Não somente compulsando suas páginas, mas também apreciando o que dele dizem os críticos literários, vemos que “Iuri Jivago não deseja fazer com que os ponteiros do relógio se atrasem: aceita as mudanças sociais e econômicas produzidas pela revolução” (Marc Slonim em “O Diário” de Belo Horizonte, suplemento literário de 1º de novembro de 1958).

O ÚLTIMO ATO

Defende, por acaso, Boris Pasternak a chamada moral burguesa? Toda a trama do livro gira em torno de ligações não muito limpas do protagonista principal, homem portanto emancipado dos preconceitos de família bem constituída.

E em último lugar, para terminar toda essa comedia: em dezembro veio um telegrama de Moscou divulgando entrevista concedida por Boris Pasternak à imprensa. Muito eufórico, encerra o escritor suas palavras dizendo que “tudo terminará bem, tenho certeza”. De fato, parece que tudo terminará muito bem, mesmo porque, segundo recente comunicado russo, o “O Doutor Jivago” não deve provocar tamanha celeuma: os despiciendos senões e críticas de sabor anti-revolucionário que aparecem no livro não são diferentes daquilo que já escreveram outros excelentes camaradas comunistas que se dedicam às letras sob o patrocínio do Soviet Supremo.

E enquanto isso o Doutor Jivago vai fazendo a volta do mundo e enriquecendo seu autor, que do anonimato passa aos galarins e às lantejoulas da fama, ao mesmo tempo que põe a literatura soviética na ordem do dia. Não resta dúvida: é este um dos grandes números de prestidigitação publicitária da história, e põe em um chinelo o próprio Barnum com o seu famoso circo.