A REVOLUÇÃO EM 1960
PEQUIM HERDA DE MOSCOU O PAPEL DE "FERA"
(continuação)
Senhor Jesus Cristo. O cisma e a heresia constituem para o cristão situações revolucionárias, enfermiças e anormais. Contudo não se pode negar que o povo inglês, o americano ou o russo, em sua maioria, é constituído de cristãos. O fato pareceria à primeira vista, particularmente sem importância no que diz respeito à infeliz Rússia, dominada por uma malta de ateus. Na realidade, quanto seria pior a situação do mundo se não fosse notório que a aplicação integral do comunismo naquele país tem esbarrado em toda uma série de resistências – passivas, aliás – decorrentes da índole e da tradição cristã do povo; e se os dominadores desse mesmo povo não encontrassem dentro de casa toda espécie de obstáculos, e pudessem agir com as mãos livres no exterior!
China, “a outra face”
Ora, a China é precisamente uma nação que em sua imensa maioria jamais foi cristã. Se bem que de seu glorioso passado imperial lhe advenham muitas tradições formalmente opostas ao comunismo, é preciso lembrar que o processo de ocidentalização a que ela já está sujeita há um século – arredondamos um tanto a cifra –, a proclamação da república, a penetração dos germes terríveis da Revolução que grassa no Ocidente, o espírito igualitário, laicista e sensual que infelizmente impregna quase tudo quanto a China vem importando, o prolongado período de guerras internas que abalaram todos os seus quadros sociais até a queda de Chang-Kai-Chec e o advento do comunismo, tudo enfim vem concorrendo de há muito para debilitar a resistência oposta pelas estruturas e tradições chinesas ao comunismo. Ademais, se é verdade que a Igreja tem prosperado muitas vezes (e nem sempre, note-se de passagem) com as perseguições, também é verdade que estas costumam destroçar tudo quanto não é católico. O protestantismo, por exemplo, sofreu um tremendo retrocesso com o nazismo, a igreja cismática foi quase aniquilada na Rússia bolchevista. Pois o que ali se encontra com esse nome é mais um fantasma suscitado pelos maquiavéis do Kremlin para efeitos de propaganda, do que propriamente uma seita religiosa.
Assim, o marxismo encontra, numa China em que sobre o velho tronco pagão se insere o venenoso enxerto neopagão, verdadeiramente uma terra de eleição.
De onde, engrandecer a China às expensas da Rússia é transferir gradualmente a preponderância para o pior dos elementos do mundo comunista.
Ora, é este processo que está em curso no presente momento. Constitui ele o verso da medalha da “aproximação” da União Soviética com o Ocidente. A China comunista vai ocupando lentamente a Ásia. Infiltrou-se rumo ao sul, até fazer estremecer Singapura e a Austrália. Deglutiu o Tibet com uma selvageria de canibal. A Índia estremece diante dela. Em palavras mais breves, um continente quase inteiro está ameaçado com o crescer deste polvo. E o Micado, o Xá, o Rei da Jordânia ou o Generalíssimo Chang-Kai-Chec sentem que em breve estarão passando pelas mesmas aperturas de Nehru, senão do Dalai Lama.
Os fracos e amáveis camaradas soviéticos
Faça-se o balanço. Enquanto os “duros” de Pequim vão ganhando a Ásia, o que vai ganhando a URSS? Ela mantém a custo seus satélites. A Hungria continua uma chaga viva. A Tcheco-Eslováquia permanece esmagada sob o tacão soviético, suspirando pela libertação. Na Polônia, a política “distensiva” de Gomulka cessou. Quanto mais se vai tornando fácil à Rússia lançar satélites em torno da lua, tanto mais lhe vai ficando difícil conservar reunidos em torno de si os seus próprios “satélites”.
Assim se vai acentuando a bicefalia do mundo comunista: uma cabeça está em Moscou e outra em Pequim.
E essas cabeças têm fisionomia e linguagem diversa. Uma olha gentil, sorri, e começa a parecer fraca. A outra carrega o olho, ameaça e vai-se tornando sempre mais forte.
Perspectivas para 1960
Afigura-se-nos que, salvas as mutações imprevistas, tão frequentes nestes dias de caos, o ano de 1960 vai ser marcado por um paulatino desenvolvimento dessa manobra. Na União Soviética a Revolução entrará, ao que parece, em sua fase “pós-termidoriana”, isto é, numa fase recessiva e moderantista, análoga à que a Revolução Francesa percorreu depois da queda de Robespierre: liberdade para os perseguidos da véspera, abrandamento na aplicação dos princípios revolucionários, boas relações com os povos vizinhos, reabertura das fronteiras para o que era uma forma ancestral do turismo de hoje. Na aparência, a Revolução era um dragão exausto e malferido, que, por falta de melhor, se punha a sorrir. Ninguém ousava atacar o dragão, com receio de que ele recobrasse na luta seu antigo vigor. Em consequência, todos começaram a corresponder ao seu sorriso. Entrou-se em regime de convívio sem barreiras. E o resultado, para abreviar a história, foi que, cem anos depois, a Revolução já era virtualmente senhora da Europa e do mundo.
Da mesma forma, a Rússia tentará anestesiar e dividir o Ocidente cada vez mais, enquanto a China irá tomando paulatinamente ares de flagelo mundial. Parecerá necessário aceitar o amplexo russo, a aliança do Kremlin, para fazer face ao monstro chinês. Nesse amplexo com a lepra, esta nos contagiará. Teremos para com o novo aliado todas as fraquezas, as condescendências, as imprudências que tivemos para com Tito. E assim a hidra comunista irá progredindo.
Venenosas primícias da política de dupla face
Falamos de cisão. É preciso dizer algo a respeito.
A boa harmonia entre a França e a Alemanha é, segundo nos parece, um dos melhores elementos para defender a Europa contra os soviéts. Ora, precisamente em razão da “operação sorriso”, tal harmonia se quebrou.
Com efeito, a URSS retirou todo o apoio que dava aos argelinos insurretos. De Gaulle parece ter vislumbrado aí uma prova da sinceridade russa em Camp David, e está se aproximando do Kremlin. Está até programada uma visita de K. a Paris.
Ora, o velho e astuto Adenauer não concorda com essa concepção. Para ele, não há sinceridade nos soviéticos, e tudo não passa de manobra.
E é o Chanceler que tem razão. Enquanto a Rússia parece retirar-se do campo de ação argelino e, de modo geral, esfriar suas relações com o mundo árabe, a China lhe vai sucedendo nesse terreno, e já é hoje uma das melhores aliadas do pan-arabismo e da FLN.
Em consequência, no fundo, o comunismo lucra de um modo e de outro. Aparentando “sair” da Argélia, ganha um crédito de confiança em Paris, e cinde de Gaulle e Adenauer. “Entrando” na Argélia pela outra porta, continua a trabalhar para expulsar da África do Norte a influência francesa, e a captar as simpatias do mundo árabe.
O papel das minorias sãs
A China, dizíamos, vai lentamente começando a intimidar e a imobilizar os poltrões do Ocidente. A Rússia, cada vez mais, agrada, ilude e atrai os tolos. Uns e outros, poltrões e tolos, tendem a recuar, transigir, conciliar a todo custo. E, francamente, quando alguém tem de seu lado todos os tolos e todos os poltrões, pode jactar-se de dispor de uma esplêndida maioria...
Estamos perdidos? Não, porque as vitórias de Deus nunca foram ganhas pelas incontáveis maiorias de tolos e poltrões, mas pelas minorias cheias de fé, de abnegação e de coragem.
Mais do que nunca, neste limiar de 1960, torna-se patente a importância dessas minorias para abater o monstro de duas cabeças que se levanta no horizonte. Sem elas, nada se pode fazer de útil em prol das multidões desnorteadas, anestesiadas, apavoradas... Nada se pode fazer pela massa, senão com fermento ativo e pujante. Há vinte séculos o disse Nosso Senhor (cf. Mt. 13, 33), mas os homens tendem sempre a esquecê-lo. Entretanto, como é fácil compreender a lição do Mestre Divino, nestes primeiros dias de 1960!
O revigoramento do bom fermento parece-nos ser o sentido mais profundo do Concílio Universal que em tão boa hora João XXIII resolveu convocar.
Dizemo-lo agora só de passagem, pois mais adiante pretendemos voltar a tratar desse santo e nobre assunto.
Cuba, paiol da América
Lemos há pouco a vida de Santo Antônio Maria Claret, fundador da benemérita Congregação dos Filhos do Coração de Maria. Esse grande varão de Deus foi Arcebispo de Santiago de Cuba de 1850 a 1857. Considerando os numerosos pecados dos espanhóis na colônia, predisse que, como castigo, a ilha se tornaria independente. O fato se deu pouco depois, como é notório. Castigo para a Espanha, por certo. Mas, em medida não pequena, castigo para Cuba também, pois como mostra sua biografia, o Santo foi de certo modo rejeitado pelos cubanos. A independência foi mais ilusória do que real. O domínio norte-americano ali se implantou mais ou menos veladamente. E, se trouxe benefícios temporais (grandes para os Estados Unidos, medíocres para Cuba), é fora de dúvida que para a preservação dos valores religiosos e espirituais foi sob vários aspectos um mal.
Parece agora repetir-se a história. Cuba sacode o jugo norte-americano, o que é explicável castigo para o mal que os ianques ali fizeram. Mas esse sacudir de jugo não é, infelizmente, um passo para uma justa e louvável independência, mas para a troca de senhores. E uma troca por um senhor mil vezes pior, pois que só um demente poderá achar que o jugo norte-americano é comparável ao comunista, tão completo, tão cruel, tão degradante. Ora, é positivamente uma violenta e trágica penetração comunista que em Cuba se vai operando.
Em Cuba só? É inegável que o movimento fidel-castrista teve uma influência terrivelmente contagiante nas Antilhas, na América Central e na parte setentrional da América do Sul. De outro lado, produziu ele algumas reações de simpatia em todas as outras áreas do mundo ibero-americano.
Dado que a pavorosa crise econômica por que passa boa parte da América Latina produz reflexos políticos e sociais tendentes à revolta e ao desespero, é de se compreender que as fagulhas cubanas encontrem por aqui um ambiente propício à combustão. Tanto mais que o mimetismo é um triste vício da gente deste hemisfério.
E, assim, vale a pena tratar detidamente da questão.
“Não é comunista”
O ponto capital de todo o assunto cubano consiste em saber se Fidel Castro é comunista e está a serviço dos agentes soviéticos.
Se fosse possível documentar a resposta afirmativa, é certo que duas consequências da maior importância se produziriam:
a) o contágio do clima, do estado de espírito e dos estilos fidel-castristas na América Latina, tão católica, estaria praticamente impedido;
b) a opinião americana perderia qualquer ilusão sobre a sinceridade dos soviéticos na “operação sorriso”.
Por isto se compreende que, caso o Kremlin seja o mandante do atual ditador cubano, a primeira recomendação que terá feito a este é que esconda tal ligação.
De onde, o fato de Fidel Castro dizer que não é comunista, e até dar certas manifestações de apoio à Igreja, em si mesmo nada prova. Apesar disto, a dúvida continua. E o importante é saber se realmente o jovem líder revolucionário é ou não agente de Moscou.
P.C., armazém de pancadas
Um modo muito fácil para um assecla do Kremlin disfarçar suas intenções, e ao mesmo tempo agir livremente, consiste em entrar em luta contra o partido comunista, enquanto vai preparando tudo para que o comunismo triunfe. Isto embai os incautos, que julgam impossível que um agente de Moscou ataque o próprio partido de Moscou. E, protegido por esse álibi, o agente poderá fazer o que quiser em benefício do comunismo.
Fidel Castro, neste ponto, tem sido dos mais ambíguos. Namora o P.C. Mas briga um pouco com ele. E, sobretudo, tem a astúcia de não deixar transparecer nada de claro sobre suas ligações com o Kremlin.
As pessoas bem intencionadas, que intuem que tais ligações existem, procuram, à falta de melhor, provar com os indícios de que dispõem, a realidade profunda dos fatos. Mas, para impressionar o homem simplista e irrefletido de hoje, só servem provas palpáveis, de uma clareza elementar e quase brutal. Provas dessas, ao que parece, não existem. E, assim, Castro continua calmamente seu jogo.
Argumento baseado no evolucionismo
Seria muito mais fácil esclarecer pelo menos as elites, se se lhes lembrasse antes de tudo que, segundo a doutrina marxista, o advento do comunismo em um país pressupõe que toda a evolução social o tenha “maturado” para tal.
Assim, em uma nação dada, ainda que o partido comunista tivesse meios materiais para conquistar o poder, não o faria se o estado dos espíritos, das instituições e dos costumes não o comportasse. Os bolchevistas em tal caso favoreceriam a ascensão de um partido de esquerda que acelerasse a evolução social, e só depois de levada assim a cabo tal evolução, eles se instalariam direta e ostensivamente no governo. Nem outra coisa se compreenderia numa corrente fundamentalmente evolucionista, como é o marxismo. Para responder se o primeiro-ministro cubano é ou não um agente soviético, o que importa, pois é saber se sua ação acelera a evolução para o comunismo. Neste sentido, pode-se dizer que a resposta afirmativa se impõe com uma clareza solar.
Se Fidel Castro é tão útil ao comunismo, será que este não o suscitou, ou pelo menos não lhe ofereceu apoio? E se ofereceu, será que o interessado não aceitou? E se aceitou, será que a Rússia já não tem tudo preparado para colher o fruto, quando maduro?
Só um ingênuo poderá responder “não” a todas estas perguntas.
Cuba não é o único fruto
Claro está que Cuba só pode ser vista como cabeça de ponte, como estopim.
Então, qual é o termo último? Evidentemente a América Latina, que já é a melhor reserva para a Igreja em nossos dias, e humanamente constitui sua melhor esperança para o século XXI.
Até que ponto essa misteriosa, longa e desalentadora crise econômica por que passamos é uma preparação do fidel-castrismo? Só no Juízo Final, provavelmente, isto se patenteará com uma clareza inteira. Mas o certo é que a hora é, para nós, mais do que nunca, de oração, vigília e luta.
Auxilie-nos Nossa Senhora a caminhar com confiança e fidelidade sob estas brumas e na perspectiva destas borrascas.
Ouviremos em 1960 a Voz de Maria
O segredo de Fátima será manifestado ao mundo em 1960, segundo decidiu seu depositário, o Episcopado Português. Não é, por certo, sem uma especial intenção da Providência que ouviremos nessa ocasião a confidência celestial. E essa é uma de nossas razões de alegria nesta passagem de ano.
O que nos dirá a Virgem Santíssima? É prematuro responder.
Mas é possível prognosticar o que Ela não dirá.
Por exemplo, achamos sumamente duvidoso que, como em certos círculos se tem propagado, o segredo contenha um mero resumo do que já se sabe que foi dito na Cova da Iria. Pois parece inverossímil que alguém guarde sob segredo pensamentos ou conselhos que já comunicou a todo o mundo.
De qualquer forma, peçamos a Nossa Senhora que disponha nossos corações para ouvir com amor e obediência suas palavras maternas.
Um papa providencial
O ano de 1959 foi suficiente para fazer ver ao mundo que a Providência entregou a um Pontífice sábio, justo e paterno a sucessão do inesquecível Pio XII.
Nestas condições, encaramos o porvir com particular confiança. Pois a ovelha caminha tranquila em qualquer terreno, e ainda que sinta de longe e de perto o uivar dos lobos, quando sabe que está protegida por seu Pastor.
O Concílio Universal
As esperanças com que atravessamos o limiar do ano vão além de 1960. Elas se voltam para esses dias de verdadeira aurora que serão os do Concílio Universal. Pode-se quase dizer, aplicando as palavras de São Paulo (Rom. 8,22), que na desordem, nos entrechoques, nas vacilações e nos desatinos destas horas torvas, “todas as criaturas gemem” à espera do Concílio Ecumênico.
E é nestas imensas perspectivas que, com os olhos postos no Coração Imaculado de Maria, transpomos, com o passo leve e a alma serena, os últimos minutos de 1959, e penetramos resolutamente em 1960.
Os versos do hino mariano vibram em nosso ouvido e aquecem nosso coração:
“De mil soldados não teme a espada
Quem pugna à sombra da Imaculada”.
(1) "A novíssima arma da estrategia soviética". Plinio Corrêa de Oliveira, no. 107, de novembro de 1959.
OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX
ENERGIA APAIXONADA, HABILIDADE SEM PAR
Fernando Furquim de Almeida
A história do Concílio do Vaticano já foi exposta na série de artigos sobre "Os católicos franceses do século XIX". Vimos então a bela atitude do episcopado inglês, totalmente favorável à infalibilidade, e observamos que essa unanimidade se devia, em grande parte, à clara e enérgica orientação que Mons. Manning imprimira ao florescente Catolicismo da Inglaterra. As qualidades pessoais do Arcebispo de Westminster, e principalmente sua fé ativa e inquebrantável, fizeram com que sua influência não se limitasse ao círculo de seus compatriotas. Coube-lhe um papel saliente nos trabalhos do Concílio, e mesmo autores prevenidos contra ele não podem deixar de elogiá-lo nessa quadra de sua vida.
Paul Thureau Dangin, em seu livro "La renaissance catholique en Angleterre au XIXe. siècle", é um exemplo do que afirmamos. Defensor incondicional de Newman, não é ele justo com Manning. Refere-se, no entanto, à participação deste último no Concílio com as seguintes palavras, em que reconhece o seu grande valor:
“Desde o início, esse prelado toma posição como um dos líderes da maioria. Com 63 anos, na plena posse de todos os dons da inteligência e da vontade, trabalha com uma energia apaixonada e uma habilidade sem par, para obter o triunfo da infalibilidade do Papa. Embora tenha falado apenas duas vezes nas sessões plenárias, seus discursos são de grande efeito. É o caso especialmente do que pronunciou na discussão geral sobre a infalibilidade, e que manteve a assembléia atenta por perto de duas horas. Depois de procurar refutar a objeção segundo a qual a infalibilidade indisporia a opinião pública na Inglaterra e dificultaria as conversões, o orador sustentou que os não católicos se escandalizariam ainda mais com os que declaravam acreditar na infalibilidade mas não queriam proclamá-la, e que aos olhos deles só os ultramontanos seriam coerentes, francos a incapazes de subterfúgios.
“Mais do que nas sessões, ele age nos bastidores, nas conversas individuais, nos trabalhos de cada dia, sempre em movimento, hábil em persuadir, em seduzir e em se impor, revelando nessas manobras as qualidades que teriam feito dele, na Câmara dos Comuns, um parliamentary whip de primeira ordem, a ponto de espantar e indispor, às vezes, alguns velhos prelados. Gozando da confiança de Pio IX, vê o Papa quando quer e tem livre acesso a seus apartamentos. Seus adversários, que lhe conhecem a influência, não o poupam. Ele vê nos ataques um título de honra, e nada lhe causa maior satisfação do que ser chamado pelos jornais italianos de il diavolo del Concilio".
É incalculável o bem que Mons. Manning fez durante esses dias históricos. Queremos relatar apenas um fato, que mostra claramente como os inimigos da Igreja o respeitavam e como a sua intransigência impedia que verdadeiros absurdos viessem perturbar as deliberações do episcopado universal.
Pusey, um dos chefes do Movimento de Oxford que não se convertera, continuava a procucar um meio de reerguer a igreja anglicana. Ao ser anunciado o Concílio, teve esperança de conseguir um acordo com a Igreja Católica. Suas ideias a respeito eram muito confusas, e não se sabe bem exatamente o que desejava. Parece que queria o estabelecimento de uma federação das várias igrejas existentes. O Padre Newman, que se reconciliara com ele depois de um período de relações cortadas, não apoiava o projeto, mas, com o seu sistema de nunca romper definitivamente com ninguém, mantinha com o antigo companheiro uma correspondência ativa.
Mons. Dupanloup, Mons. Darboy e Lord Acton foram mais longe: pediram que Pusey apresentasse a Roma as condições mínimas que considerava indispensáveis para uma volta da igreja anglicana à unidade. No início de 1869, um jesuíta, Padre Buck, se ofereceu espontaneamente para servir de intermediário entre Pusey e a Santa Sé. Declarou, em carta, que os anglicanos poderiam obter, caso se reconciliassem com a Igreja, a renovação condicional da ordenação de seus clérigos, a comunhão sob as duas espécies, a manutenção do "Prayer Book" com um pequeno número de modificações doutrinárias, permissão para os eclesiásticos casados conservarem as suas esposas, e o estabelecimento de um mínimo de crenças mariais indispensáveis, com a possível condenação de certos "desenvolvimentos excessivos" do culto a Nossa Senhora.
O Padre Buck foi a Roma, conversou com o Geral da Companhia de Jesus e enviou ao Cardeal Billio uma memória confidencial a respeito dessas tratativas. A 17 de novembro de 1869, o Santo Ofício pediu ao Geral que convidasse seu súdito a "interromper completamente as negociações que empreendera visando uma conciliação com alguns hereges anglicanos".
Não se sabe bem por que o Padre Buck não abandonou o projeto e continuou a se corresponder com Pusey, a quem pediu que apresentasse ao Concílio uma proposta concreta. Mons. Darboy e Lord Acton insistiram no mesmo sentido, e Pusey se decidiu a enviar a Mons. Dupanloup as proposições a cuja aprovação pela Igreja os anglicanos condicionariam uma eventl união.
É sabido como foi constituída a comissão "de Fide" do Concílio. Mons. Manning impediu a inclusão de católicos liberais, e somente ultramontanos foram eleitos para integrá-la. Ao ter conhecimento desse fato, Pusey compreendeu que seu projeto era inviável. Em carta a Lord Acton, explicou as razões que o levavam a não apresentar as anunciadas bases de um acordo: "Conhecendo Manning de longa data, não tenho esperanças de que proposições como as que em consciência eu poderia preparar logrem ser aceitas por uma comissão da qual é ele a principal figura". Alguns dias depois, escrevia ao Padre Newman: “A composição da comissão do dogma nos desencorajou. Aqueles em quem teríamos depositado mais esperanças, Monsenhores Dupanloup e Darboy, foram afastados, e Manning dela faz parte. Seria absolutamente sem ilusões de êxito que se enviaria qualquer proposta a uma comissão da qual Manning seja o membro dirigente". O assunto ficou encerrado.
Outro grande serviço prestou o Arcebispo ao bom andamento dos trabalhos conciliares. Em 1870, o primeiro-ministro da Inglaterra era Gladstone, anglicano ferrenho que participara do Movimento de Oxford e fora grande amigo de Mons. Manning antes de este se converter. Gladstone não via com bons olhos o Concílio, e disso se aproveitou Lord Acton para tentar uma intervenção da Inglaterra.
Os católicos liberais procuravam mover seus respectivos governos no sentido de que estes se opusessem à definição da infalibilidade. É claro que a Inglaterra, com um herege fanático na chefia do governo e livre dos entraves políticos que dificultavam a interferência de oros países, poderia fazer muito mal à liberdade do Concílio. Sabendo disso, Mons. Manning entrou em contato com o embaixador inglês, Odo Russell, e passou a fornecer-lhe determinadas informações sobre o que ocorria nas sessões (Pio IX levantara para ele a obrigação do segredo), de modo a permitir que o ministro das Relações Exteriores, Lord Clarendon, combatesse nas reuniões do gabinete as medidas que Lord Acton propunha a Gladstone. Assim se evitou uma intromissão da Inglaterra nos assuntos da Igreja.
A atuação de Mons. Manning foi um dos principais fatores humanos do êxito do Concílio do Vaticano. A declaração da infalibilidade do Papa, pela qual ele tanto lutou, constituiu para esse grande bispo do século XIX a melhor das recompensas.
NOVA ET VETERA
PARA QUE ELE REINE
J. de Azeredo Santos
Vivemos em uma época de slogans ou de fórmulas mágicas. Não são, porém, bufarinheiros vulgares que nos impingem as mezinhas salvadoras, como no passado. O charlatanismo galgou altos postos e os processos demagógicos de pretensa salvação social, à custa do incessante martelar da propaganda dirigida, vão pacificamente dominando os espíritos como verdades inconcussas e incontroversas.
Um desses tabus do mundo moderno, que contaminaram até elementos representativos da intelectualidade católica, diz respeito ao apostolado de massas. Por isso mesmo que ditada por um preconceito igualitário, tal ação ou apostolado excluiria completamente qualquer preocupação pela formação de elites. Pior ainda, por contagio da falsa mística marxista da luta de classes, ou da ascensão das massas enquanto massas, a própria noção de elite seria afastada das cogitações daqueles que se propõem utilizar esse apostolado como mero instrumento de uma suspeita reforma de estruturas, de sabor socialista.
Ora, não é essa a lição da história, nem a que ressalta de uma análise mais detida do comportamento social. A massa ou o simples número vem a ser um elemento incapaz, por si mesmo, de qualquer esforço coordenado e inteligente. E, para o bem assim como para o mal, os povos são sempre levados por um selecionado grupo de cabeças e braços atuantes.
Quando se trata, porém, não de uma simples preocupação terrena de reforma social, mas de reconduzir a sociedade humana ao Reino de Cristo, vale dizer, de implantar a única reforma social digna deste nome, aí então o problema da formação das elites toma um aspecto mais agudo.
OS TREZENTOS DE GEDEÃO
Sabemos que o Céu é dos violentos, e que sem luta contra o mal interno das almas e externo da sociedade humana em vão corremos em busca de uma vitória estável e segura.
Esse caráter militante e dinâmico da reforma social para a instauração do Reino de Cristo não nos deve levar às ilusões da mera agitação, da confiança exagerada nos recursos humanos e materiais de propaganda e de ação. Nossa confiança há de estar em primeiro lugar nos meios sobrenaturais, nos socorros da graça. Servos inúteis, temos que estar persuadidos de que a vitória deve ser exclusivamente de Deus, posta de lado qualquer soberba e vaidade, como no caso dos trezentos de Gedeão. Depurou o Senhor o exército desse varão israelita, «e voltaram para trás vinte e dois mil homens do povo, e só ficaram dez mil» (Juízes, 7, 2). Ainda era muita gente: em uma segunda depuração ordenada por Deus, somente sobraram trezentos homens, e com eles Gedeão levou a derrota ao acampamento dos madianitas. Os medrosos e tímidos deviam ficar para trás, a fim de que por eles lutasse aquele punhado de decididos servidores do Senhor.
Dada a generalizada apostasia das massas, é claro que será de inestimável valor tudo o que se fizer para reconduzi-las ao Caminho, à Verdade e à Vida. Não se deve, entretanto, perder de vista que essa decadência do povo, e sua triste redução à condição de massa, foram em grande parte provocadas pela perversão e destruição das elites, razão pela qual dizia o Santo Padre Pio XII «que hoje a salvação deve vir de onde a perversão teve sua origem» (alocução ao Patriciado e à Nobreza Romana, de 11 de janeiro de 1943), isto é, deve alcançar-se pela atuação de uma elite que, sobretudo pelo exemplo, reconduza a sociedade às suas verdadeiras bases, com a observância dos princípios emanados da Revelação e da Lei Natural, criando condições de vida «que não tornem desmedidamente pesada a formação da vida cristã, mas a façam imitável e suave» (alocução cit.).
A OBRA DE "LA CITÉ CATHOLIQUE"
Existe na França um organismo que «se propõe suscitar, esclarecer, animar tudo o que possa tender a promover um renascimento católico na ordem temporal: ordem das instituições políticas e sociais, ordem imensa dessas coisas laicas que o naturalismo hodierno parece haver subtraído à benção da graça». É «La Cité Catholique».
Entre varias atividades no campo intelectual, mantém «La Cité Catholique» uma revista mensal, «Verbe», que serve de instrumento de trabalho para seus grupos de estudo. Podemos chamá-la de verdadeiro órgão de formação cívica dos agentes da Contra-Revolução.
Os amigos de «Catolicismo» bem conhecem «Verbe» e «La Cité Catholique», a que nos prendem vínculos fraternos de solidariedade católica. Jean Ousset, o diretor e mentor do movimento e da revista, ideou todo um sistema de contatos, de círculos e de estudos, que apresenta a mais flagrante atualidade. Os estudos que o distinto intelectual e homem de ação levou a cabo para a base de seu movimento, lúcidos, profundos, bem orientados, acabam de ser editados em forma de livro e sob o titulo de «Pour qu'il règne». Substancioso compêndio de ação contra-revolucionária, contém não somente os fundamentos doutrinários da Realeza de Cristo sobre a sociedade humana, mas também uma exposição dos obstáculos que o Reino de Deus encontra no mundo moderno, e das forças que, oculta ou abertamente, se entregam à sinistra tarefa de combater esse plano de amor trazido à terra pelo Divino Salvador. A Revolução, suas tropas regulares, sua quinta-coluna, nossas próprias omissões e cumplicidades em face daqueles que procuram laicizar a Contra-Revolução, são outros temas palpitantes desenvolvidos nessa obra fundamental para o apostolado social.
MAIS UM INIMIGO A ESCORRAÇAR
Não há razão para o derrotismo dos que aparentam acreditar na invencibilidade dessa hidra infernal que é a Revolução. Muito pelo contrário, tudo nos leva a confiar no triunfo da Realeza Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Divina Providencia costuma agir quando tudo parece perdido aos olhos humanos, mas não dispensa normalmente nosso concurso, e daí a importância de estudar as condições de que depende todo combate eficaz em favor da Cidade Católica.
Muito teríamos que dizer a este respeito, acompanhando o Autor nas críticas que faz a certos modos de ação contra-revolucionária. Outro ponto a desenvolver seria o da escolha adequada das armas a serem usadas na implantação da Realeza Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, tomando como exemplo o que vem realizando «La Cité Catholique» em um esforço discreto e perseverante, sem ostentações de orgulho intelectual. Atendendo à necessidade inadiável da formação de elites atuantes, sob a orientação doutrinaria da revista «Verbe» vêm sendo criados por toda a França, e mesmo em outros países, centros de estudo e de ação, ao mesmo tempo que se promovem congressos e reuniões de seus aderentes, lançando-se assim as bases teóricas e realizando-se os necessários trabalhos práticos para a instauração dessa Cidade Católica. E porque essa obra não será humana, mas divina, esse precioso livro termina por uma serie de orações pela vinda à terra do Reino de Cristo, das quais destacamos a seguinte, como característica do espírito que anima esses denodados militantes de «La Cité Catholique»: «Dignai-vos, Santa Joana D'Arc, considerar que ainda há um invasor para escorraçar da França, e é o espírito naturalista. Vós que fostes guerreira e política, ao mesmo tempo que aureolada pelo Céu, ensinai-nos a resolver os problemas da Cidade à luz da graça, não separando jamais o natural do sobrenatural. Ajudai-nos a fazer novamente de nossa pátria o Reino do Rei Jesus».
Saudamos em «La Cité Catholique» autênticos representantes dessa Gália imortal, que há de assentar seu trono sobre os escombros e as cinzas da Revolução.