MISSÃO DO PAPA ATUAL
(continuação)
das dezenove Mensagens de Natal de nosso Santo Padre Pio XII, de quem guardamos sempre tão cara e feliz memória.
Trata-se, pois, de um convite permanente a apressar o passo pelos caminhos de Belém, que são também para nós os caminhos da paz.
No mundo atual, quantos caminhos de paz se veem propostos ou impostos; quantos deles não se chega a sugerir até mesmo a Nós, que entretanto possuímos, do mesmo modo que Maria e José, a certeza de conhecer Nossa via, sem temor de Nos podermos enganar.
Desde o segundo após-guerra, que variedade de expressões neste campo! que abuso não se faz desta palavra santa: «Paz, paz» (Jer. 6, 14)!
Prestamos homenagem respeitosa à boa vontade de tantos homens que procuram e anunciam a paz no mundo: estadistas, diplomatas experimentados, escritores de talento.
Mas, os esforços humanos no terreno da pacificação universal estão ainda bem longe de assinalar uma concórdia entre o céu e a terra.
É que a paz verdadeira não pode vir senão de Deus; ela tem um nome apenas: a Paz de Cristo; não tem mais do que uma fisionomia, a que lhe deu Cristo; foi para prevenir de algum modo as contrafações do homem que Ele insistiu: «Eu vos deixo a paz, Eu vos dou a minha paz» (Jo. 14, 27).
N. 2 — Neste mare magnum de sugestões pacifistas, nenhuma se encontrou realmente eficiente porque todas são laicistas.
Quem quis ensinar ao Santo Padre caminhos de paz? É impossível não perguntar se entre os que o quiseram estaria o Presidente Eisenhower, que visitou Sua Santidade pouco depois de ter assentado vias de paz com Kruchev. Tanto mais que o Chefe de Estado norte-americano estava precisamente fazendo uma viagem a vários países para os engajar nos caminhos abertos em Camp David. As palavras do Papa, neste tópico, são diplomaticamente veladas. Elas justificam que se levante o problema, mas a solução dele fica entregue à prudente interpretação do leitor.
Em relação a esses doutores e pregoeiros da paz, João XXIII tem uma atitude de benevolência, mas lhes lembra que o Vigário do Príncipe da Paz é ele.
A PAZ CRISTÃ
A paz verdadeira se reveste de três aspectos:
PAZ DO CORAÇÃO. — A paz é acima de tudo uma disposição interior, espiritual. A dependência amorosa e filial à vontade de Deus é como que a condição fundamental dela: «O Senhor, fizestes-nos para Vós e nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Vós» (S. Aug. Confess., L. I, 1; PI. 32, 661).
Tudo o que enfraquece, rompe, quebra esta, conformidade c esta união da vontade opõe-se à paz; em primeiro lugar e principalmente a falta, o pecado. «Quem Lhe resistiu e teve paz?» (Job 9, 4). A paz é a herança feliz dos que observam a lei divina. «Há uma grande paz para os que amam vossa lei» (SI. 118, 165).
A boa vontade, por sua vez, não é senão o propósito sincero de respeitar a lei eterna de Deus, de se conformar com seus mandamentos, de seguir suas vias: numa palavra, de manter-se na verdade. Tal a gloria que Deus espera do homem. «Paz aos homens de boa vontade».
N. 3. — «Homens de boa vontade». Quantas vezes se tem dado a estas palavras um sentido vago, fluido, humanitarista e laico. O «homem de boa vontade» é por excelência o bom católico, o que é coisa bem diversa, como se vê.
PAZ SOCIAL. — Esta encontra uma base firme no respeito mútuo e recíproco da dignidade pessoal do homem. O Filho de Deus se fez homem, e sua redenção não diz respeito somente à coletividade, mas também ao homem individual: «Ele amou-me, e entregou-Se a Si mesmo por mim», como diz São Paulo aos gaiatas (Gal. 2, 20). E se Deus amou a tal ponto o homem, isto significa que este Lhe pertence e que a pessoa humana deve absolutamente ser respeitada. Tal o ensinamento da Igreja, que, para a solução das questões sociais, fixou sempre o olhar sobre a pessoa humana e ensinou que as instituições e as coisas — os bens, a economia, o Estado — existem principalmente para o homem e não o homem para elas. As perturbações que abalam a paz interior das nações têm sua origem precipuamente no fato de que o homem tem sido tratado, de modo quase exclusivo, como um instrumento, uma mercadoria, uma desprezível peça de uma grande maquina, uma simples unidade de produção. Somente quando se tomar como base de apreciação do homem e de sua atividade a sua dignidade de pessoa é que se poderão apaziguar os conflitos sociais e as divergências, muitas vezes profundas, que reinam, por exemplo, entre os empregadores e os operarias. Poder-se-á sobretudo garantir à instituição familiar as condições de vida, de trabalho e assistência adequadas a permitir-lhe desincumbir-se melhor de sua função de célula da sociedade e de primeira comunidade instituída pelo próprio Deus para o desenvolvimento da pessoa humana.
N. 4 — Impressionante descrição dos efeitos do tecnicismo, dirigido segundo os princípios agnósticos; característicos do mundo nascido da Revolução Francesa. A sede inextinguível de lucro leva à superindustrialização e ao predomínio absoluto do ouro. A consequência é a formação de uma atmosfera materialista na qual os valores espirituais representados pela pessoa humana e pela família deperecem.
Não, a paz não poderá ter fundamentos solidas se não se alimentar nos corações o sentimento da fraternidade, tal qual deve existir entre os que têm a mesma origem e são chamados aos mesmos destinos. A consciência de pertencer a uma só família extingue nos corações a cobiça, a cupidez, o orgulho, o instinto de dominação sobre os outros, que são a raiz das dissensões e das guerras. Ela une todos os homens pelo vinculo de uma solidariedade mais elevada e generosa.
N. 5 — A fraternidade laicista que a Revolução Francesa quis instituir, juntamente com a liberdade e a igualdade, como pilar do mundo novo, é vácua e não pode gerar a paz nem conter as paixões.
PAZ INTERNACIONAL. — A paz internacional se baseia em primeiro lugar sobre a verdade. É evidente que a divisa cristã: «A verdade vos libertará» (Jo. 8, 32) vale igualmente para as relações internacionais. É necessário, portanto, superar certas concepções errôneas: o mito da força, do nacionalismo, ou outro qualquer, que intoxicaram a vida em comum dos povos, e fundamentar a paz sobre os principias morais, segundo o ensinamento da reta razão e da doutrina cristã.
N. 6 — A paz baseada sobre o medo e o interesse, e pactuada com indiferença em relação à verdade e ao erro, a paz enfim entre a luz e as trevas, é uma utopia ignominiosa. — Alto princípio que pode ser transposto para outros campos e nos serve de defesa contra os que quereriam que, indiferentes à verdade e ao erro, cessássemos todas as polemicas.
Mas, a par da verdade e iluminada por ela, deve impor-se a justiça. Ela suprime as causas de conflitos e de guerras, resolve as querelas, fixa as obrigações, precisa os deveres, atende aos direitos de cada uma das partes.
N. 7 — Como pode haver, por exemplo, uma paz justa enquanto o invasor soviético esmaga sob o tacão de suas botas povos de um passado cristão glorioso e milenar, como a Hungria, a Polônia e outros?
A justiça, por sua vez, deve ser completada e mantida pela caridade cristã. O amor do próximo e da própria nação não deve voltar-se sobre si mesmo numa forma de egoísmo fechado e inquieto com o bem de outrem, mas deve ampliar-se e estender-se para abraçar num gesto espontâneo de solidariedade todos os povos e travar com eles relações vitais.
N. 8 — Também este princípio pode ser transposto da esfera internacional para relações humanas de outro tipo. A questão social, para exemplificar, jamais poderá ser resolvida pela mera justiça, sem o concurso da caridade cristã.
Será então possível falar de comunidade de vida e não de simples coexistência, pois esta, precisamente porque privada de tal sopro de solidariedade, levanta barreiras atrás das quais germinam a suspeita recíproca, o medo e o terror.
N. 9 — Os idolatras da coexistência podem pois, compreender que também esta acaba por levar à guerra.
ERROS DO HOMEM NA BUSCA DA PAZ
A paz é um dom incomparável de Deus, mas é também uma aspiração suprema do homem. Ela é, entretanto, indivisível. Nenhum dos traços que compõem sua fisionomia única pode ser ignorado ou excluído. Por isso mesmo que os homens de nosso tempo não mais respeitaram integralmente as exigências da paz, resultou que os caminhos de Deus para a paz não coincidem mais com os do homem.
Daí decorre a situação internacional ano-mala deste após-guerra, que criou como que dois blocos com todos os inconvenientes que isto comporta. Não se trata de um estado de guerra, mas tampouco é a paz, a verdadeira paz a que ardentemente aspiram os povos. Sempre porque a paz verdadeira é indivisível em seus diversos aspectos, não se conseguirá instaurá-la no plano social e internacional se ela não for também, e acima, de tudo, uma realidade interior. Isto significa que se fazem necessários em primeiro lugar — e cumpre repeti-lo — homens de boa vontade: exatamente aqueles a quem os Anjos de Belém anunciaram a paz de Cristo para os homens de boa vontade: «Pax hominibus bonae voluntatis» (Lc. 2, 14). São eles de fato os únicos que podem preencher as condições da paz definida por São Tomás: a concórdia dos cidadãos na ordem (Contra Gent. In, c. 146), — ordem, pois, e concórdia.
Mas como poderá produzir-se este duplo resultado da ordem e da concórdia se as pessoas que assumem responsabilidades públicas, antes de avaliar as vantagens e os riscos de suas decisões, não se reconhecem pessoalmente sujeitas às leis morais eternas?
N. 10 — Nestes dois parágrafos, talvez os mais importantes do documento, se afirma a preponderância da moral e da Religião em todos os domínios da atividade humana.
Precioso ensinamento que, aplicado a outro campo, mostra quanto erram os que imaginam que é preciso antes resolver a questão social, 'para só depois difundir a verdadeira Fé.
Será necessário eliminar sem esmorecimentos os obstáculos opostos pela malicia humana. Esses obstáculos se encontram na propaganda da imoralidade, nas injustiças sociais, no desemprego, na miséria que contrasta com o privilégio dos que se podem permitir o desperdício, no perigoso desequilíbrio entre o progresso técnico e o progresso moral dos povos, na desenfreada corrida armamentista que ainda não deixa entrever nenhuma possibilidade seria de se chegar a resolver o problema do desarmamento.
N. 11 — «Pela malicia humana»: quantos há que raciocinam sobre este assunto como se ela não existisse.
Esta descrição completa a do tópico objeto de nossa nota no 4.
A OBRA DA IGREJA
Os ultimas acontecimentos criaram uma, atmosfera de distensão que fez reflorescer a esperança em muitas almas, depois de tanto tempo vivido num estado de paz mentirosa, numa situação muito instável que mais de uma vez ameaçou romper-se.
N. 12 — «Em muitas almas». O Santo Padre não diz que faz suas estas esperanças.
Tudo isso faz ver quão profundamente arraigada em todos os corações se acha a aspiração da paz.
Para a pronta realização desse desejo comum, a Igreja exora com confiança Aquele que rege o destino dos povos e pode inclinar para o bem os corações dos que governam. Ela não é filha deste mundo, mas vive e trabalha no mundo, e, assim como na aurora do Cristianismo elevava — conforme o pedia São Paulo a Timóteo — «orações, petições, ações de graças por todos os homens: pelos Reis e por todos os que se acham constituídos em dignidade, para que vivamos vida sossegada e tranquila, em toda a piedade e honestidade» (1 Tim. 2, 1-2), assim ainda hoje Ela acompanha com suas orações tudo quanto, nas relações internacionais, permite encontros em clima de serenidade, auxilia o ajuste pacifico das desavenças, a aproximação e a mutua colaboração entre os povos.
Além da oração, oferece a Igreja sua, ajuda materna, aponta o incomparável tesouro de sua doutrina, insta seus filhos a prestarem sua ativa colaboração em favor da paz, recordando a celebre advertência de Santo Agostinho: «Há, mais gloria em matar as guerras com a palavra do que em matar os homens com o ferro; e é verdadeira gloria adquirir a paz com a paz» (S. Aug. Epist. CCXXIX, 2; PL 33, 1019).
É dever e tarefa própria da Igreja aplicar-Se em favor da paz, e Ela tem consciência de nada ter negligenciado do que Lhe era possível fazer a fim de proporcioná-la aos povos e aos indivíduos. A Igreja encara favoravelmente todas as iniciativas que podem contribuir para poupar à humanidade novos lutos, novas carnificinas, novas destruições incalculáveis.
N. 13 — Estes tópicos mostram o espírito com que o Papa trata do assunto. Indicando amorosamente o caminho da paz verdadeira, reza e age em favor de tudo que, sem contrariar a lei de Deus, possa evitar a guerra.
Infelizmente, as causas que perturbaram e continuam perturbando a ordem internacional ainda não foram afastadas. A paz nunca deixou de estar ameaçada.
N. 14 — A paz, João XXIII só a espera, cumpre insistir, no caminho de Belém.
As causas do mal-estar internacional foram claramente denunciadas por Nosso Predecessor de imortal memória, Pio XII, especialmente em suas Mensagens de Natal de 1942 e 1943. Convém repeti-las. Essas causas são: a violação dos direitos e da dignidade da pessoa humana e o desprezo dos da família e do trabalho; a subversão da ordem jurídica e do justo conceito de Estado segundo o espírito do Cristianismo; as ofensas à liberdade, à integridade territorial e à segurança das outras nações, grandes ou pequenas; a opressão sistemática das minorias nacionais era suas particularidades culturais e linguísticas; os calculas egoísticos daqueles que visam a monopolizar as fontes da economia e as meterias primas de uso comum, em detrimento dos outros povos; e particularmente a perseguição dirigida contra a Religião e contra a Igreja.
N. 15 — Outra descrição a acrescentar ao tópico comentado em nossa nota n.. 4.
É preciso notar ainda que a pacificação desejada pela Igreja não pode, de nenhum modo, ser confundida com uma concessão ou com um afrouxamento de sua firmeza em face de ideologias e sistemas de vida que se acham em oposição declarada e inelutável com a doutrina católica; tampouco significa indiferença diante dos lamentos que até Nós chegam dessas regiões infelizes onde os direitos do homem são ignorados, onde a mentira foi erigida em sistema. Menos ainda se poderia esquecer o doloroso calvário da Igreja do Silencio, na qual os confessores da fé, emulas dos primeiros mártires cristãos, se vêem expostos pela causa de Jesus Cristo a sofrimentos e torturas sem fim. Essas verificações previnem contra um otimismo exagerado: mas tornam tanto mais fervorosa Nossa prece por uma volta verdadeiramente universal ao respeito da liberdade humana e cristã.
N. 16 — Como se vê, a Igreja jamais aprovará que, para conseguir a paz, os povos que se encontram aquém da cortina de ferro aceitem um regime modelado, em escala maior ou menor, segundo os princípios comunistas.
Ah! Possam todos os homens de boa vontade voltar a Jesus Cristo, possam escutar a voz de seu ensinamento divino, que é o de seu Vigário sobre a terra, o dos Pastores legitimas, os Bispos. Eles encontrarão a verdade que liberta do erro, da mentira, da utopia, eles tornarão mais curto o caminho que leva à paz de Belém, à paz anunciada pelos Anjos a todos os homens de boa vontade.
N. 17 — Também fora da Igreja pode haver justos. A união com estes só pode realizar-se no seio da única Igreja verdadeira.
EXORTAÇÃO E VOTOS PATERNOS
Tais são os Nossos votos, tal é Nossa prece, e eis-nos todos chegados, como Maria e José, como os humildes pastores das colinas que cercam Belém, como os Magos do Oriente, diante da pobre pousada onde nasceu o Salvador.
Jesus, que sentimento de ternura em nossa alma quando ela se defronta com a simplicidade do Presépio! Que doce e piedosa emoção em nossos corações! E que ardente desejo de trabalharmos todos juntos na grande obra da paz universal sob vosso olhar, divino autor e príncipe da paz!
Em Belém todos os homens devem encontrar seu próprio lugar. Primeiramente os católicos. A Igreja quer, especialmente hoje, vê-los empenhados num grande esforço para assimilar sua mensagem de paz, um esforço que os insta a se orientarem resolutamente segundo as exigências da fé divina que reclama de todos a adesão formal levada até o sacrifício. Aprofundar, sim, mas igualmente agir. Jamais poderão os cristãos contentar-se com o papel de simples observadores: cumpre, pelo contrário, que eles se sintam como investidos de uma missão que lhes vem do alto.
N. 18 — Magnífico programa para os leigos no pontificado de João XXIII.
O esforço, sem dúvida nenhuma, será longo e fatigante. Mas o mistério do Natal dá a todos a certeza de que a boa vontade dos homens nunca se perde, e que nada se perde das obras que lhes inspira a boa vontade (mesmo que às vezes eles nem tenham plena consciência disso) para o advento do reino de Deus sobre a terra e para que a cidade dos homens se construa segundo o modelo da cidade celeste.
Oh, a cidade celeste — a civitas Dei — que Santo Agostinho saudava, resplandecente da verdade que salva, da caridade que vivifica, da eternidade que estabiliza (cf. Epist. CXXXVIII, 3; PI. 33, 533).
Veneráveis Irmãos e amados filhos dispersos pelo mundo, as últimas palavras desta segunda Mensagem de Natal nos reconduzem à primeira Mensagem que dirigimos ao mundo, no dia 23 de dezembro de 1958. Há um ano, o novo Sucessor de Pedro, vibrando ainda com as primeiras emoções sentidas no momento de assumir a alta missão de Pastor da Igreja Universal, tinha adotado, não sem temor, o nome de João, como sinal de sua boa vontade, ao mesmo tempo ansiosa e decidida, de tomar como programa a preparação dos caminhos do Senhor. Ele pensou logo nos vales a aterrar e nas montanhas a aplanar, e começou sua jornada. E eis que, dia após dia, reconheceu, com grande humildade de espírito, que verdadeiramente a mão do Altíssimo estava com ele. O espetáculo das multidões religiosas e fervorosas que de todos os pontos da terra acorreram a Roma ou a Castel Gandolfo para saudá-lo, para ouvi-lo, para receber sua benção, serviu-lhe de moção continua, com frequência surpreendente e maravilhosa.
Recebemos, igualmente, presentes que conservamos com sentimento de viva gratidão. Entre os que Nos são mais caros e mais significativos se encontra certo quadro antigo, de boa pintura veneziana, que representa uma «Santa Conversação»: Maria e José com Jesus e um gracioso São João Batista menino, que apresenta a Jesus um belo fruto; Jesus recebe-o com ligeiro sorriso, que difunde em todo o quadro uma suavidade celestial. Essa pintura ocupa agora um lugar de honra e tornou-se familiar à Nossa prece quotidiana em Nosso oratório particular. Permiti-Nos, Veneráveis Irmãos e filhos bem-amados, buscar ali a inspiração dos votos de Natal que quereríamos dirigir a toda, a Santa Igreja e ao mundo inteiro, com objetividade e confiança.
A preocupação da paz -de Belém está na primeira plana de Nossas solicitudes: mas esta «Santa Conversação» se amplia a Nossos olhos até acolher em seu âmbito todos aqueles que, coNosco e convosco, no espírito desse ministério universal que foi confiado à Nossa humilde pessoa, amamos particularmente, «no amor de Cristo». Queremos referir-Nos aos que sofrem com as ansiedades e as misérias da vida e para os quais o Natal é um doce clarão de reconforto e de esperança; os doentes e os fracos, objeto de nossos cuidados atentos e vigilantes, bem como de um afeto todo especial; os que sofrem em seu espírito e em seu coração por causa das incertezas do amanhã, por causa de seu desamparo econômico, por causa da humilhação infligida por alguma falta cometida ou presumida; as crianças amadas por Jesus, que por sua mesma fraqueza e fragilidade têm direito ao respeito mais sagrado e às atenções mais delicadas; os anciãos, que experimentam frequentemente a tentação do desalento e a impressão de serem inúteis.
Em face dessa visão, a Igreja consagra as intenções de suas preces, seus votos e suas obras apostólicas a todos esses que Lhe são especialmente caros, mas não só a eles. Pensa também nos humildes, nos pobres, nos trabalhadores, nos empregadores, e nos que detêm o poder público.
E como poderíamos Nós, nesta vigília de Natal, esquecer os Veneráveis Bispos de rito latino ou de rito oriental cujo fervor por sua própria santificação e cujo devotamento ao serviço das almas apreciamos, com quanta doçura fraterna, no curso de frequentes entrevistas? E o exército generoso e cheio de ardor dos missionárias, homens e mulheres, e dos catequistas; e a milícia numerosa e rica de méritos do Clero secular e regular, bem como das Religiosas pertencentes a inumeráveis Institutos dignos de elogios; e o laicato católico todo inflamado de ardor para com as obras de piedade, de assistência em todas as suas formas, de caridade e de educação?
E tampouco queremos esquecer nossos irmãos separados, pelos quais elevamos incessantemente aos Céus Nossa oração, para que se cumpra a promessa de Jesus Cristo: «Um só Pastor e um só rebanho» (Jo. 10, 16).
A missão do Papa atual é «apresentar a Deus um povo perfeito» (Lc. 1, 17). Era, exatamente essa a missão do Batista, seu homônimo e seu patrono, e não se poderia imaginar perfeição mais alta e mais preciosa que a da paz cristã, que é paz dos corações, paz na ordem social, na vida, na prosperidade, no respeito mútuo, na fraternidade de todas as nações.
Veneráveis Irmãos, amados filhos, essa paz de Cristo, a grande e luminosa paz do Natal, é-Nos doce ainda uma vez augurá-la e abençoá-la».
N. 19 — Nesses tópicos da Mensagem, sente-se arder de amor por Deus, pela Santa Igreja e por todos os homens o coração do Soberano Pontífice, o que nos deve induzir a amar intensamente o Santo Padre, orar confiante e humildemente por suas intenções e pela floria de seu Pontificado, e agir com dedicação e denodo segundo suas diretrizes.
OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX
UM ADVERSÁRIO PERIGOSO
Fernando Furquim de Almeida
Dissolvido o Concílio do Vaticano, em virtude da guerra entre a França e a Alemanha, os bispos da minoria, que se tinham retirado antes da votação final da infalibilidade, submeteram--se quase unanimemente ao novo dogma. O único movimento organizado, constituído por fiéis que não se conformaram com a decisão do Concílio, foi o dos "Velhos Católicos", na Alemanha, liderado por Doellinger. Embora contasse entre seus adeptos alguns cientistas de certo renome, não teve grande repercussão. Se no início conseguiu prestígio, isto se deve a Bismarck, que se utilizou desses dissidentes na célebre Kulturkampf que lançou contra a Igreja.
Mons. Manning, de volta à Inglaterra, celebrou de todos os modos a providencial vitória do ultramontanismo. Promoveu sessões comemorativas, organizou reuniões para explicação do novo dogma, enfim procurou esclarecer bem a opinião católica, de modo a evitar que os liberais — anti-infalibilistas e "oportunistas" — a confundissem com os sofismas que sempre usam para atenuar suas derrotas.
Quanto aos anglicanos, não podiam esconder seu desapontamento. A infalibilidade convencia-os definitivamente de quanto eram inviáveis suas veleidades de um acordo com a Igreja Católica. Sentindo, apesar de tudo, o remorso da separação, perdiam assim a última desculpa que o orgulho encontrara para evitar o reconhecimento de seus erros. Daí o ódio com que receberam os resultados do Concílio. Não foram, no entanto, capazes de organizar qualquer movimento sério contra o dogma recém-proclamado. Limitaram-se a emprestar um apoio desesperançado aos "Velhos Católicos", tentando transformá-los num cisma mais grave. Com esse objetivo, a Universidade de Cambridge concedeu a Doellinger o título de doctor honoris causa, e dois bispos prestigiosos da "high church", Wordsworth e Brown, compareceram com alguns pastores ao congresso que a nova seita reuniu em 1872, na cidade de Colônia.
Um ataque mais perigoso viria alguns anos depois. Lembram-se os leitores de que Gladstone seguira com simpatia o Movimento de Oxford e fora amigo de Mons. Manning, antes de este se converter. Muito favorável a Pusey, fez-se partidário de uma aliança entre a Igreja Católica e o anglicanismo, e pautava sua política na Irlanda por uma tolerância que o levou até a abolir os privilégios que a igreja oficial ainda conservava na pátria de O’Connell. Sendo, por outro lado, fanático e muito autoritário, indignou-se ao ver o Concílio destruir suas esperanças. Mas moderou seus sentimentos enquanto foi primeiro-ministro e presidente do Partido Liberal.
As circunstâncias que o levaram a demitir-se do governo exacerbaram ainda mais sua irritação contra a Igreja. Enviara à Câmara dos Comuns um projeto de lei franqueando aos católicos a Universidade de Dublin, até então reservada exclusivamente aos protestantes. Mas os bispos da Irlanda, de acordo com Mons. Manning, desejavam uma universidade católica, e desaprovaram a iniciativa. Os deputados irlandeses uniram-se aos conservadores, e o projeto foi rejeitado. Irritado, Gladstone pediu demissão, porém os "tories", então conduzidos por Disraeli, negaram-se a assumir o poder com uma Câmara de maioria liberal, o que obrigou o gabinete resignatário a continuar governando. Por pouco tempo o insofrido primeiro-ministro conseguiu manter essa situação. A 23 de janeiro de 1874, fez dissolver o Parlamento e lançou-se numa agitada campanha eleitoral que levou os "whigs" à derrota. Ao responsável por esse resultado só restava demitir-se da presidência de seu partido e retirar-se da política.
Em novembro do mesmo ano, dando vazas a seu ressentimento, Gladstone publicou um primeiro panfleto contra a Igreja, com o título "Os decretos do Vaticano e seus reflexos sobre os deveres civis". Nele, o autor defende a tese de que o Concílio do Vaticano teria transformado o Catolicismo num sistema político perigoso para o poder civil. E que, declarando o Papa chefe absoluto da Igreja, teria retirado dos bispos a função mediadora que tinham até então exercido entre o Vaticano a os governos. Por isso a Igreja teria passado a constituir, na Inglaterra, uma intromissão de potência estrangeira na vida nacional.
Os inspiradores do político malogrado eram católicos como Lord Acton e Doellinger. Alguns trechos de cartas dirigidas a amigos mostram o estado de excitação em que Gladstone se encontrava. A um deles, dizia: "Pela primeira vez na vida, serei obrigado a falar de papismo, pois seria um escândalo dar à religião que estão fabricando em Roma o mesmo nome da religião de Pascal, Bossuet ou Ganganelli". E noutra carta: "Todo esse processo foi monstruoso. O fanatismo da Idade Média é, realmente, moderado se o compararmos com o do século XIX". De Munique, escrevia à sua esposa: "Passei dois terços do meu tempo com o Dr. Doellinger, que é, na verdade, um homem notável. E gela-me o sangue nas veias pensar que, na sua venerável mas, graças a Deus, sadia e forte velhice, está excomungado. Não conheço ninguém com quem esteja mais de acordo no modo de julgar e tratar as coisas religiosas".
Em poucas semanas venderam-se 120.000 exemplares do panfleto de Gladstone. Os protestantes se perguntavam se seu autor não desejaria fazer revogar o bill de emancipação dos católicos, de que fora partidário. E tal foi a violência de sua linguagem, que todos os católicos, inclusive Lord Acton, se viram na obrigação de protestar. Mons. Manning, em carta ao "Times", lembrou que "os decretos do Vaticano não modificaram um jota nas obrigações e condições da vida civil dos católicos". Poucas semanas depois, publicou uma resposta a Gladstone, rebatendo ponto por ponto as suas afirmações. Nela, mostra que ao longo da História os conflitos entre a Igreja e o Estado foram sempre o resultado de intromissões deste nas coisas espiritis, e que, portanto, nas condições vigentes na Inglaterra, a Rainha não tinha o que temer.
O antigo primeiro-ministro continuou, em seu furor, a atacar o Catolicismo por meio de brochuras cada vez mais incendiárias. O nível da polêmica tendo baixado, os católicos de maior projeção deixaram de responder. Aos poucos, o político transformado em panfletário perdeu completamente a auréola que o cercava aos olhos da opinião pública inglesa, e seus escritos não tiveram mais nenhuma influência. Desde então nada mais se opôs a que a infalibilidade constituísse uma poderosa alavanca para o progresso da Igreja Católica na Inglaterra.
NOVA ET VETERA
"PROPRIEDADE VIVA E PROPRIEDADE MORTA"
J. de Azeredo Santos
Pessoa amiga nos fez chegar às mãos um ensaio de autoria do Prof. Ernani Maria Fiori sob o título de «Propriedade viva e propriedade morta» (publicação do Instituto de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul —1958), no qual se procura esquematizar a concepção da propriedade segundo a chamada doutrina distributista.
Em se tratando de obra escrita por um membro do Conselho Diretor do Instituto de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, nada mais natural do que nela encontrarmos, logo de início, um capítulo dedicado aos imprescindíveis «fundamentos filosóficos», na falta dos quais todo o resto seria como castelo construído sobre areia. Mas, pior que isso seria, sem dúvida, a presença de fundamentos filosóficos gratuitos e insustentáveis.
O QUE SÃO TOMÁS NÃO DISSE
Vejamos, portanto, com o cuidado necessário, o terreno em que pisamos. Em resumo, cita o Prof. Fiori a sentença de São Tomás segundo a qual «a posse das coisas exteriores é natural ao homem» (S. Th., IIa. IIae., q. 66, a. 1), acrescentando que, quanto à natureza, as coisas fogem ao domínio do homem, não assim quanto ao seu uso (p. 9). Ora, quanto ao uso ou fruição das coisas exteriores, aduz o autor outra opinião do Angélico: «Quanto ao uso, o homem não deve possuir as coisas como próprias, mas como comuns» (S. Th., IIa. IIae, q. 66, a. 2, c.), para concluir que a «destinação dos bens é comum, isto é, são destinados a todos os homens, e não a alguns privilegiados» (p. 10).
Baseados nessas citações de São Tomás, introduz o professor gaúcho uma limitação ao direito de propriedade que delas não decorre. Diz, com efeito: «Há bens que não só podem, mas devem ser objeto de apropriação pessoal. São os bens ligados à necessidade da família e ao trabalho da pessoa, neste caso, os meios de que carece a produção que se comensura às atividades exercidas pessoalmente pelo trabalhador, p. ex., na pequena propriedade rural ou oficina de tipo artesanal. Trata-se de um espaço vital irrecusável, dentro do qual a pessoa deve sentir-se segura para dirigir e organizar sua vida — vida como aspiração de plenitude humana» (pp. 11/12). A propriedade privada ficaria circunscrita a estes modestos limites. Segundo o Prof. Flori, «o que está além desse irredutível espaço vital, deve submeter-se a uma disciplina comunitária (P. Bigo, «Marxisme et Humanisme», Presses Universitaires, Paris, 1953, pags. 224 e ss.)» (p. 13).
Se bem entendemos o autor, por espaço vital quer ele exprimir aquilo de que a família precisa estritamente para viver. Por outras palavras, justifica-se a propriedade privada apenas para proporcionar ao homem o que lhe é necessário, para o próprio consumo de seus dependentes no seio da família. Tanto assim é, que acrescenta o Prof. Fiori: «Portanto, o que ultrapassa o referido espaço vital, sejam bens diretos ou indiretos, deve ser regulado tendo-se em vista, predominantemente, o interesse, material e moral, da comunidade. Isso significa o fim da propriedade capitalista e a reestruturação jurídico-social da propriedade em novas bases» (pp. 13/14).
CONSULTEMOS A SUMA TEOLÓGICA
Ora, achamos difícil conciliar essa coletivização forçada da propriedade e dos bens de produção com os ensinamentos de São Tomás de Aquino e da doutrina social da Igreja.
Vejamos, com efeito, no seu devido contexto, as duas citações da Suma Teológica nas quais o referido ensaio coloca seus fundamentos filosóficos. Resolvendo as dificuldades opostas à posse, pelo homem, das coisas exteriores, diz São Tomás: «Acerca dos bens exteriores, duas coisas competem ao homem: Primeiro, o poder de gestão e disposição dos mesmos, e quanto a isto é licito que o homem possua coisas próprias. E é também necessário à vida humana por três motivos: — primeiro, porque cada um é mais solícito na gestão daquilo que com exclusividade lhe pertence, do que em gerir o que é comum a todos ou a muitos, pois cada qual, fugindo do trabalho, deixa a outro o cuidado do que convém ao bem comum, como sucede quando há uma multidão de servidores; — segundo, porque se administram mais ordenadamente as coisas humanas quando a cada um incumbe o cuidado de seus próprios interesses, ao passo que reinaria confusão se cada qual cuidasse de tudo indistintamente; — terceiro, porque o estado de paz entre os homens se conserva melhor se cada um está contente com o seu, de onde vemos que são mais frequentes as contendas entre os que possuem alguma coisa em comum e pro indiviso» (S. Th., IIa. IIae., q. 66, a. 2).
Longe, portanto, de arbitrariamente restringir o direito pessoal de propriedade de bens exteriores, em favor da solução «comunitária», São Tomás combate o coletivismo econômico por meio de sólidas razões.
A FUNÇÃO SOCIAL DA RIQUEZA
A segunda citação feita pelo Prof. Fiori, segundo a qual, quanto ao uso, o homem não deve ter as coisas como próprias, se encontra do seguinte modo em seu contexto: «Em segundo lugar, também compete ao homem, com respeito aos bens exteriores, o uso ou fruição dos mesmos; e quanto a isto não deve ter o homem as coisas exteriores como próprias, mas como comuns, de modo que facilmente dê participação nelas aos outros, quando estes necessitem. Por isso diz o Apóstolo (1 Tim. 6, 17-18): “Manda aos ricos deste mundo que deem e repartam com generosidade seus bens” (S. Th., loc. cit.).
Como claramente se depreende do contexto e sobretudo da citação da primeira Epístola de São Paulo a Timóteo, não se trata de eliminar sumariamente da vida social aqueles que possuem não somente o necessário, mas também o supérfluo.
Trata-se, pelo contrário, do dever dos ricos, e não da «disciplina comunitária» ou do coletivismo introduzido na gestão dos bens de produção ou de consumo. E é justamente essa sentença completa de São Tomás que Leão XIII transcreve na «Rerum Novarum» ao indicar o papel social da riqueza.
Em suas afirmações perigosamente ambíguas parece o Prof. Fiori esposar a falsa mística do grande número ou do coletivismo. O homem isolado, como proprietário, oprime. As coletividades, como proprietárias, são anjos benfazejos que tudo libertam. Onde os fundamentos filosóficos para sustentar uma tese tão gratuita e tão contraria ao senso comum? Na Suma Teológica ela encontra a mais formal refutação, como vimos pelos textos de que o autor transcreve apenas partes.
A função social da propriedade ou das riquezas não se cinge somente a fazer que o nosso próximo participe de nossa abundância por meio das boas obras, mas se estende a promover o acesso à propriedade e ao uso dos bens pela aquisição a justo preço. Porém, mesmo aqui o problema é delicado e não se resolve com métodos simplistas.
ONDE ENTRA O TOTALITARISMO
A este respeito convém lembrar como reiteradamente Se tem manifestado a Igreja: «Para pôr limites determinados às controvérsias suscitadas em torno do domínio e obrigações a ele inerentes, fique estabelecido, à maneira de princípio fundamental, o mesmo que proclamou Leão XIII, a saber: que o direito de propriedade se distingue de seu uso. Respeitar santamente a divisão dos bens e não invadir o direito alheio ultrapassando os limites do domínio próprio, são imperativos da justiça que se chama comutativa; não usarem os proprietários de suas próprias coisas senão honestamente, não pertence a esta justiça, mas a outras virtudes, que impõem deveres cujo cumprimento não se pode exigir por via jurídica. Assim é que sem razão afirmam alguns que o domínio e seu uso honesto têm os mesmos limites; mas ainda está mais afastado da verdade o dizer que pelo abuso ou pelo simples não uso das coisas, perece ou se perde o direito de propriedade» (Pio XI na Encíclica «Quadragesimo Anilo»).
Muito teríamos que comentar quanto ao que diz o Prof. Flori a respeito do planejamento estatal da economia, da participação compulsória dos trabalhadores na propriedade das empresas, e sobretudo quanto à sua conclusão de que, no setor dos bens não ligados diretamente às necessidades da família e ao trabalho pessoal, «a propriedade dos respectivos meios de produção deverá tornar-se, gradualmente, comunitária: ou de comunidades parciais ou da comunidade política» (p. 30). Mas parece suficiente, para demonstrar a fragilidade dos argumentos do autor, o que fica acima exposto quanto ao método muito pouco tomista que ele usa para procurar em São Tomás de Aquino os fundamentos filosóficos desse ensaio sobre «propriedade viva e propriedade morta».