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AS LÁGRIMAS DE MARIA

(continuação)

pretensas teorias humanitárias e sociais, se inaugurou no mundo uma descarada técnica de governo por parte de quem se apossa do poder — e não menciono com que métodos — e, uma vez com as mãos nas alavancas de comando, deporta, encarcera, trucida: implanta, em suma, o deserto.

Os tempos de Tamerlão tiveram sua reconstituição histórica! Em pleno século XX teve-se que deplorar genocídios, deportações em massa, carnificinas como a das fossas de Katin, chacinas como as de Budapest.

Não basta! Não se tem mais nenhum receio de dar a mão aos novos anticristos! Pelo contrário, há uma verdadeira corrida para apertar-lhes as mãos em primeiro lugar e trocar com eles sorrisos amáveis.

Quando Hitler veio a Roma, o Papa deixou a cidade. E hoje, todos, mesmo os que então o criticaram, concordam que ele agiu muito bem, e que era o mínimo que poderia fazer, não digo um Papa, mas um homem de honra, um homem de coração, em face de quem havia assassinado milhares de inocentes e disseminava o terror entre os povos. E, no entanto, que festas, que triunfos, que hinos! Ele também, Hitler, não era o guarda dos seus irmãos: era o seu assassino, e fundava cidades e civilizações.

E esta história repetiu-se depois dele, em nome de outros princípios e de outros imperialismos.

De onde surgiu tanta cegueira em muitos, em muitíssimos? Está o senso do humano de tal modo transtornado e perdido entre os homens? E como e por quê? E é este o triunfo do homem, esta a gloria da sociedade nova? É isto que se esconde sob os manifestos e discursos, tão acariciantes, da conquista social? E ninguém mais protesta frente a quem, com repressão feroz, pretende extinguir no coração do homem até a própria ideia de Deus, e sufocar, diante da morte certa, a esperança cristã da imortalidade?

Tínhamos alguma vez chegado a esta ignomínia, de ver milhões e milhões de cidadãos que aplaudem a violência, a tirania, a ferocidade? É este o homem novo, evoluído até o inverossímil? Semeia grilhões e luto sobre a terra, e crê violar o céu com as proezas espaciais e demonstrar assim, uma vez mais, que Deus não existe? Ainda não devem ter logrado êxito, já que nisto se empenham tão encarniçadamente; e devem estar muito longe da demonstração.

Ademais, a própria frequência e a magnitude do delito dominante embotaram a sensibilidade cristã até mesmo nos cristãos. Não somente como homens, mas também como cristãos, não reagem mais, não mais se indignam. Como podem sentir-se cristãos se não sentem as feridas infligidas ao Cristianismo? Um braço que, ferido, não dói mais é um braço morto. Do mesmo modo um cristão que não sente mais o que é o anticristaníssimo não participa mais da vida do Corpo Místico.

Os perseguidores de outrora, como os de hoje, ao matar, encarcerar, deportar, faziam duas coisas: apartavam os mais temíveis e amedrontavam as massas, aviltavam-nas, faziam-nas desfalecer. Hoje, se pensamos quantos são os cristãos agrilhoados, com seus Pastores, é para horrorizar. Não se trata, de modo algum, de coisas incertas, infundadas: não! Um Cardeal Primaz da Hungria firme no propósito de carregar com seu povo o peso da cruz que a nação inteira suporta. Um Cardeal Stepinac confinado e sob vigilância, um grande Arcebispo, o de Praga, nem julgado, nem condenado, mas que fizeram desaparecer: há onze anos não se sabe dele mais nada, nem se lhe ouviu mais a voz, nem ninguém recebeu dele qualquer palavra escrita. Bispos no cárcere ou na aflição, tantos fiéis que não podem celebrar o Natal... e isto em tão extensas regiões, com conhecimento de todos, à luz do sol! (A documentação consta do Anuário Pontifício, onde se pode ver em quão grande número de Dioceses se indica que o Bispo está na prisão, ou deportado, ou impedido).

Seria de supor que se assistiria a um protesto semelhante ao rugido de um oceano; a um pôr-se de pé de toda a humanidade; a um clamor de reprovação igual ao clamor de um pranto irrefreável. Nada disto. Certa imprensa, inteiramente absorta nas vicissitudes dos jogadores, dos atores, da crônica policial, não sabe aquilo que todos sabem: que há tantos homens jazendo na prisão, tantos nos trabalhos forçados, tantos apertados numa tenaz feroz que não lhes permite deixar nem mesmo por poucos dias sua pátria e sua casa. Políticos e ocupantes de cargos de responsabilidade sabem que na metade da Europa não há liberdade de espécie alguma, nem na escola, nem nos estudos, nem nas profissões; e há um único modo de ser homem, que é o de ser escravo, bajulador dos que governam; sabem que de um momento para outro, quando se está submetido ao arbítrio mais absoluto e mais incontrolável, pode-se despencar numa voragem apocalíptica; sabem, mas conformam-se com a iniciativa de outrem, discordantes entre si, conformam-se como que estupidificados pelo terror, quando não chegam, como certos intelectuais, a passar ao serviço dos perseguidores, na esperança de sair-se bem no momento difícil.

Não têm portanto em nenhuma conta, ainda quando se professam cristãos, considerações de ordem superior.

Pode-se ser o homem mais elevado na escala social, e ser morto. Tudo é possível, exceto viver nesse estado de insensibilidade. A vida se patenteia no sentir a dor, na vivacidade com que se reage ao ferimento, na prontidão e força da reação. Está em decomposição e putrefato quem não reage mais.

Pode, então, um cristão, diante de um chacinador de cristãos, diante de quem, não satisfeito de negar, insulta a Deus e açoita, em desafio cruel, seus servos e filhos, pode um cristão sorrir e fazer lisonjas? Pode um cristão optar por alianças com os auxiliares, os aliados dos que propugnam e preparam o advento de tal regime anticristão de terror nos países ainda livres? É possível que nos contentemos com uma distensão qualquer, quando em primeiro lugar não há distensão no mais elementar senso de respeito às consciências e à fé, em nosso caso à Face de Cristo, ainda uma vez coberta de escarros, coroada de espinhos, esbofeteada? E pode-se estender a mão a quem faz isto? "Ah, se eu estivesse lá com os meus francos!" — dizia Clovis, ouvindo narrar a Paixão de Cristo. Mas a Paixão de Cristo continua. Outro francês disse numa pagina imortal: "Jesus está em agonia; e tu pactuas com os seus crucificadores?"

Mas, aos pés da Cruz está uma Mãe: é Ela, Maria. Pelas lágrimas que derramou, compartilhando das dores do Filho, pelas lágrimas com que impetrou a conversão e o perdão para os crucificadores, pela angústia que Lhe dilacerou o coração, ao ver os primeiros Apóstolos e discípulos de Jesus dispersos, hostilizados, perseguidos, alcance Ela aquilo que todos esperamos de sua intercessão, aquilo por que bradamos nossa esperança e nossa ansiedade. Apressai-vos, ó Maria, tocai os corações dos poderosos, inspirai propósitos generosos aos governantes, a fim de que seja dado aos povos o que estes esperam com fome e sede de justiça, com anelos próprios de quem se sente irmão em Cristo; se vosso socorro tardasse, ó Maria, não haveria para o mundo a paz, mas sim a catástrofe".

(1) Ver o texto integral em «Catolicismo», No 110, de fevereiro de 1960.


SITUAÇÃO PERANTE A IGREJA DO PROTESTANTE BATIZADO E DE BOA FÉ

D. A. C.

Fiel continuadora da obra de Jesus Cristo na terra, a Igreja Se mostra sobremodo solícita pela conversão dos infiéis, hereges e cismáticos ao seu seio materno, a fim de que todos os homens venham a pertencer ao Corpo Místico de Cristo, segundo o anelo supremo do Salvador: um só rebanho debaixo do cajado do único e verdadeiro Pastor (cf. Jo. 10, 16).

Assim, em todos os tempos a Igreja Se empenhou, com sua ingente obra missionária, por levar a salvação até os confins do globo, atraindo para a luz da Verdade os povos mergulhados nas trevas do paganismo.

Não menor, no entanto, tem sido seu zelo pelo retorno dos hereges e cismáticos que tentaram dilacerar a túnica inconsútil do Redentor, investindo contra a unidade da Fé e negando obediência ao Papa, Vigário de Cristo. Esquecendo generosamente as ingratidões e ofensas desses maus filhos, tem Ela os braços abertos para recebê-los desde que reconheçam e abjurem seus erros.

Por isso, são sempre bem-vindas na Igreja todas as iniciativas que, sem mácula de irenismo, procurem aplainar o caminho para a volta dos transviados. No rol destas folgamos em assinalar a publicação do sólido e consciencioso trabalho do Revmo. Pe. Etienne du Mont, do Clero de Genebra, intitulado "La situation du protestant baptisé et de bonne foi par rapport à l'unique Eglise du Christ" (Editions Saint-Augustin, Saint Maurice, Suiça, 1959).

Trata-se de tese apresentada para obtenção da láurea de teologia no Pontifício Instituto "Angelicum", universidade que os RR. PP. Dominicanos mantêm na Cidade Eterna. Publicou-a seu autor para servir "à unidade que é a suprema vontade do Salvador" (p. 7).

Estabelecido o princípio de que a Igreja de Jesus Cristo é una e indivisível, de maneira que o Corpo Místico do Redentor não se biparte em dois elementos, um interno — a graça santificante com seus adornos — e outro externo — a sociedade visível que obedece ao supremo Pastor, o Papa — embora tenha dois aspectos distintos, o místico e o sociológico, verifica o Revmo. Pe. Etienne du Mont que o protestante batizado e de boa fé, ou seja, o que se mantém na heresia sem culpa própria (p. ex., o que nasceu em lugar onde é impossível conhecer devidamente a Religião verdadeira), conserva dois laços fundamentais que o relacionam com a única Igreja de Cristo, Católica, Apostólica e Romana: o Sacramento do Batismo, que incorpora o fiel ao Corpo Místico, e a graça santificante, que vivifica os membros desse Corpo.

Estuda em seguida o Autor, com sólida base na Sagrada Escritura, nos documentos pontifícios e nos melhores teólogos, o desenvolvimento possível daqueles dois laços eclesiológicos que, apesar de tudo, vinculam os protestantes batizados e de boa fé à Igreja de Cristo. Consequência do batismo válido é que o casamento entre estes constitui um verdadeiro Sacramento da Santa Igreja, o que quer dizer que Os cônjuges assim santificados têm direito às graças correspondentes ao estado de vida que escolheram, se cumprem seu dever. Ademais, com a graça santificante, o Batismo infunde na alma as virtudes teologais e morais, novas riquezas sobrenaturais - destinadas normalmente à santificação dos membros do Corpo Místico de Cristo - que se hão de reconhecer nos protestantes (desde que tenham recebido Batismo válido e estejam de boa fé, convém sempre lembrar). Assim, graças à virtude da fé, podem eles fazer verdadeiros atos sobrenaturais ao aceitarem a Sagrada Escritura.

Tudo isso não obstante, tais indivíduos não pertencem ao Corpo Místico, de vez que deste só fazem parte os católicos, isto é, aqueles que exteriormente pertencem à sociedade sobrenatural visível instituída por Jesus Cristo aqui na terra: a Igreja Católica. Não somente isso, senão que aquelas riquezas sobrenaturais jamais poderão ter seu desenvolvimento pleno nos protestantes a que nos referimos, pois serão continuamente oprimidas pelo ambiente anticatólico da heresia, e não disporão dos meios normais para semelhante desenvolvimento, que só se encontram na Igreja verdadeira. A comparação com que o Revmo. Pe. Etienne du Mont ilustra seu pensamento é a seguinte: trata-se de uma planta que nasce e se desenvolve apesar do meio nocivo. Tal planta jamais poderá ter o vigor que lhe seria natural, e estará sempre em perigo de fenecer sob a opressão do ambiente em que se encontra.

De onde a apetência natural, ainda que inconsciente, dessas almas com relação à Igreja Católica. É o que Pio XII chama de voto do Corpo Místico, expressão que se entende bem na teoria tomista da causalidade da Santíssima Eucaristia nos demais Sacramentos. Assim explana o livro em apreço a distinção introduzida pelo mesmo Pontífice entre pertencer ao Corpo Místico de Cristo in re e a ele pertencer apenas in voto (distinção mais feliz que a antiga, entre "corpo" e "alma" da Igreja). Compreende-se, desse modo, que, em última análise, o ingresso de tais protestantes na Igreja Católica completa e leva à perfeição as riquezas autênticas que eles já possuíam, e que se achavam fora do seu ambientes natural. É o que ensina a Instrução do Santo Ofício de 20 de dezembro de 1949, citada pelo Autor: "Voltando à Igreja, (tais hereges) não perderão nada do bem que, pela graça de Deus, foi neles realizado até agora; antes, pelo contrário, por seu retorno este bem será completado e levado à perfeição" (p. 187).

Ninguém porá em dúvida a oportunidade do trabalho do Revmo. Pe. Etienne du Mont, especialmente quando a convocação do Concílio Ecumênico dá ocasião ao Santo Padre de fazer novo apelo aos irmãos separados, para que, abjurados seus erros, retornem à casa paterna.

Salientemos que o livro evita qualquer irenismo, seguindo fielmente as normas dadas pelo Santo Ofício aos empreendimentos que visam à conversão dos hereges: "A doutrina católica deve ser exposta total e integralmente; não se deve passar em silêncio ou velar em termos ambíguos o que a verdade católica ensina sobre a verdadeira natureza e as etapas da justificação, sobre a constituição da Igreja, sobre o primado de jurisdição do Pontífice Romano, sobre a única verdadeira união pelo retorno dos separados à única verdadeira Igreja de Cristo" (doc. cit.).

Estamos certos de que a tese agora publicada muito auxiliará a todos quantos se empenham na conversão dos que vivem fora do grêmio católico, estimulando e orientando a ação desses apóstolos beneméritos e mantendo-os longe das ilusões e falácias do irenismo.

Agradecemos a atenção que para conosco teve o Autor, ao enviar-nos um exemplar de sua obra. Ela veio recordar a figura respeitável e simpática de seu pranteado Pai, cuja luta pelo decoro dos edifícios sagrados, vilipendiado com as aberrações da chamada arte moderna, tivemos o prazer de acompanhar pelo "Observateur de Genève" e de apoiar com nossas orações.


OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX

O CARDEAL E OS OPERÁRIOS

Fernando Furquim de Almeida

Em 1875, Pio IX elevou Mons. Manning ao cardinalato, com aplausos de toda a Inglaterra. A opinião pública britânica, que em 1850 recebera com rancor e protestos a nomeação do Cardeal Wiseman, vinte a cinco anos depois considerava uma honra para o país a elevação de um dos seus filhos à púrpura romana. Tal foi o progresso do movimento católico inglês que, nesse período relativamente curto, se modificou profundamente a atitude do povo em relação às coisas da Igreja.

Mons. Manning foi o auxiliar eficiente e o continuador brilhante do Cardeal Wiseman na luta pela restauração do Catolicismo em sua pátria, cujo resultado foi essa mudança tão rápida. Sua preocupação de formar verdadeiros católicos, piedosos e cultos, que elevassem o nível social do movimento, seu cuidado em estender o apostolado a todas as camadas da sociedade conseguiu o prodígio de transformar os católicos, que Newman, quando de sua conversão, descrevera como párias, em cidadãos capazes de impor ao governo o respeito de seus direitos religiosos e de influir na vida política da nação. Era natural, pois, que todos vissem na escolha do Soberano Pontífice o justo prêmio de quem tão alto elevara o prestígio da Igreja.

Em artigos anteriores mostramos o apostolado de Mons. Manning nas altas camadas da sociedade, pelo qual recebeu críticas acerbas do Padre Newman. Os pobres a os operários não estavam, no entanto, abandonados. Pelo contrário, com o mesmo zelo o Cardeal se dedicava a eles, e inúmeras foram as obras que instituiu para suavizar-lhes a sorte e ensinar-lhes a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo. Uma das suas mais célebres iniciativas nesse sentido foi a Liga da Cruz.

No início, do século XIX, um capuchinho, o Padre Matthew, alarmado com o número de ébrios que existiam na Irlanda a na Escócia, fundou a Liga da Temperança, cujos membros se comprometiam a não mais beber. Tão grande foi o seu sucesso, que muitos bares de Dublin fecharam as portas por falta de fregueses. Com a morte do Padre Matthew, a Liga entrou em decadência, até que em 1872 Mons. Manning a restaurou com o nome de Liga da Cruz. Ele mesmo tomou publicamente o compromisso de se abster de bebidas alcoólicas, e foi-lhe fiel até o extremo de, já idoso e doente, recusar um pouco de vinho que o médico lhe prescrevera, e explicou: “Se os operários de Londres soubessem que o velho Cardeal bebeu um gole de vinho, se julgariam autorizados a conservar o hábito dos licores fortes”.

Todos os anos a Liga da Cruz celebrava uma grande festa. Nesse dia, desfilavam os seus membros numa imponente procissão, à qual comparecia o Cardeal, escoltado pelos elementos mais fiéis. Era a chamada Guarda do Cardeal, que depois se tornou famosa. Em pontos predeterminados, a procissão parava e o Arcebispo dirigia a palavra aos manifestantes, sendo sempre entusiasticamente aplaudido.

A Liga da Cruz era uma das obras mais queridas de Mons. Manning. Mesmo estando doente, e até em perigo de vida, gostava de relembrar que ela salvara muitos pobres ébrios. Por meio dela, captou a simpatia dos trabalhadores e pôde intervir com sucesso num movimento grevista que ficou célebre na história do operariado inglês. Foi em 1889, quando o pessoal das docas de Londres se declarou pela primeira vez em greve para obter melhoria de salário. A questão logo evoluiu para uma luta aberta entre patrões e empregados, chegando a ameaçar a Inglaterra com uma guerra civil.

Durante três semanas o governo tentou debalde acalmar os ânimos. Recorreu depois aos bons ofícios de várias personalidades eminentes, pedindo-lhes que servissem de mediadores. Também fracassaram. Afinal o Lord Mayor de Londres solicitou a intervenção do Cardeal. Após nove dias de trabalho, Mons. Manning obteve dos patrões uma fórmula de conciliação. Dedicou mais cinco horas a demonstrar aos líderes operários que deveriam aceitá-la. Estes últimos se mostravam irredutíveis, e parecia que também o Cardeal não conseguiria restabelecer a paz. Foi então que ele teve a inspiração de lembrar aos dirigentes da greve, reunidos em assembleia, a situação de suas famílias e os seus deveres para com os companheiros e a nação, terminando com esta advertência: "Se recusardes esta missão de paz, irei eu mesmo falar aos grevistas; vinte a cinco mil dentre eles são meus filhos espirituais e me escutarão". Impressionados com a firmeza do Prelado, os líderes operários aceitaram a proposta, e a greve terminou quando toda esperança parecia perdida.

Depois desse episódio, o prestígio do Cardeal na Inglaterra se tornou imenso. Os próprios protestantes afirmavam que nunca um dignitário anglicano conseguiria semelhante renome e autoridade moral. Compreende-se pois que Benjamin Disraeli, o célebre político, o tomasse como modelo na descrição do Bispo Nigel Penrudokk, personagem do romance "Endymion", que escreveu em 1880. Vamos, a título de curiosidade, reproduzir o retrato:

“Quando Nigel Penrudokk ainda era um célebre pregador, suas opiniões e suas práticas, ambas exageradas, começaram a espantar e cativar uma grande parte do público. Agora, estava mudado. O olhar duro e inquieto, que contrastava com a beleza extraordinária do seu semblante, tinha-se tornado tranquilo e radiante. A magreza de seu corpo aumentava ainda mais sua elevada estatura. Outrora ele evitara a sociedade; como Arcebispo, a procurava. Sua presença no mundo não causava espécie. Todas as classes sociais, todas as confissões religiosas eram por ele consideradas com igual interesse. Aparentemente, eram a seus olhos uma parte da grande sociedade humana, cujos trabalhos, esforços e paixões acompanhava com simpatia. Na realidade, seu único fim era levá-las novamente para o redil que tinham abandonado numa hora de trevas e desvario.

“Eis por que se encontrava por toda parte o Arcebispo, mesmo nas reuniões mais elegantes ou nos banquetes, nos quais nem sequer tocava no vinho, pois era um sorridente asceta. Apesar de celebrar e pregar em todos os cantos de sua capital, de construir escolas, igrejas e conventos, achava ainda lazeres para comparecer às reuniões de caridade, visitar as sociedades científicas e enviar, de vez em quando, uma dissertação à sociedade Real”.


NOVA ET VETERA

MANIQUEISMO NA ECONOMIA

J. de Azeredo Santos

Se nos dermos ao trabalho de procurar as origens das variadas tendências coletivistas que vêm avassalando a economia moderna, encontraremos pela frente um velho erro muito conhecido, que é o gnosticismo, e do qual o maniqueísmo é uma das vertentes mais típicas. Desde os tempos apostólicos esse desvio doutrinário em matéria religiosa andou sempre acompanhado de graves consequências no campo social político. Uma dessas sequelas inseparáveis da heresia gnóstica através dos séculos consiste em considerar a pobreza não como um conselho evangélico, mas como um preceito. O ódio maniqueu às riquezas, à propriedade, às desigualdades sociais nada tem que ver com o desprezo dos bens deste mundo, professado voluntariamente pelos Santos, nem com a humildade que a Igreja sempre enalteceu.

PRESENÇA MANIQUÉIA

Mesmo em ponderáveis setores do pensamento social católico essa influência maniquéia vem deixando sua marca. A infecção socialista se apresenta sob os mais variados disfarces, como por exemplo a tendência para uma economia de mera subsistência, afastada como má toda e qualquer iniciativa que vise ao enriquecimento do empreendedor no campo da economia chamada «privatista», a extensão latitudinária dada ao instituto da desapropriação por interesse social, a insistência em favor da cogestão como direito do trabalhador, e a consequente campanha pela implantação da empresa «comunitária».

Uma das causas principais de tamanha confusão de ideias da penetração de tão perniciosos erros nos próprios ambientes católicos pode ser encontrada naquilo que São Pio X dizia a respeito do modernista: «confiado demasiadamente em si, pensa que deve procurar a verdade fora da Igreja Católica, onde ela se acha sem a menor sombra de erro» (Encíclica Pascendi). E o remédio, também aqui, se acha, portanto, na volta à doutrina da Igreja, aos Evangelhos, e, como disciplina intelectual, no retorno à filosofia escolástica, «principalmente a de São Tomás de Aquino» (doc. citado).

Ora, vemos no ilustre Padre Julio Meinvielle um devotado batalhador em prol da pureza da filosofia escolástica, um autêntico tomista largamente conhecido pelo desassombro com que tem combatido os desatinos maritainianos. Livros como sua «Crítica de la Concepción de Maritain sobre la Persona Humana» e «De Lamennais a Maritain» representam marcos indeléveis que servirão para mostrar às gerações futuras que em nossa atribulada época não faltaram vozes para reivindicar os direitos da Verdade diante do avassalador avanço da mentira revolucionaria.

UM GUIA SEGURO

Constitui, portanto, surpresa agradável e genuína satisfação intelectual para aqueles que amam a ortodoxia, a lógica o bom senso, travar conhecimento com uma nova faceta das atividades de S. Revma. Seus «Conceptos Fundamentales de la Economia» (Editorial Nuestro Tiempo — Buenos Aires) dão-nos não só uma percuciente análise dos erros contemporâneos em matéria de economia, mas também uma excelente exposição dos princípios que devem nortear uma organização sadia da produção.

Uma das características mais interessantes desse novo livro do Padre Julio Meinvielle vem a ser a sua preocupação de ilustrar todas as suas teses e argumentos por meio de citações de documentos pontifícios, o que extraordinariamente lhes aumenta a autoridade. Assim, por exemplo, combatendo uma suspeita «reforma de estrutura da empresa», que é das tais concessões às infiltrações maniquéias do socialismo hodierno, diz ele:

«Pela mesma razão por que não aceitamos a reforma da estrutura da empresa, tampouco aceitamos o que se convencionou chamar de empresa comunitária. Esta expressão dá a entender que a empresa há de organizar-se como se fora uma comunidade, na qual todos os componentes, empresários propriamente ditos, capitalistas, empregados e assalariados, não se ajustariam entre si pela relação de justiça comutativa que surge do contrato de salariado entre o dono e o pessoal contratado, mas unicamente pelo contrato de sociedade. Estruturar-se-iam as empresas sobre a base de comunidades de trabalho em que estariam associados os que contribuem com o capital e os que contribuem com o trabalho. De modo que os benefícios da empresa se distribuiriam proporcionalmente entre o empresário, os que contribuem com o capital, e os que contribuem com o trabalho.

«Não haverá o que estranhar se alguém quiser organizar uma empresa sobre esta base, pois nisso nada há de repreensível. Mas o que não se pode aceitar é que seja este um molde ou modelo ao qual devam ajustar-se todas as empresas ou a maioria delas, ou que se faça depender a ordenação social da multiplicação deste tipo de empresas. Isto mesmo o recordou o Santo Padre no discurso de 7 de maio de 1949: Não se estaria tampouco no caminho reto se se quisesse afirmar que toda empresa particular é por sua natureza uma sociedade, de maneira que as relações entre os participantes sejam nela determinadas pelas normas da justiça distributiva, e, pois, todos, indistintamente — proprietários ou não dos meios de produção — tenham direito a uma parte na propriedade ou pelo menos nos benefícios da empresa» (pp. 153/154).

DESCORTINANDO VASTOS HORIZONTES

Ao encerrar sua admirável obra «La Conjuration AntiChrétienne», fazia Mons. Delassus uma conjetura, da qual também se ocupa o Padre Julio Meinvielle na parte final de seu livro, ao falar da missão das minorias responsáveis. Que perspectivas não se abririam para a humanidade se esse imenso instrumental técnico moderno, atualmente de modo tão freqüente a serviço do mal, viesse, através de uma mudança providencial, a servir à causa do bem? Por outras palavras, reduzidas às suas justas proporções as necessidades econômicas do homem, expurgada a humanidade do sibaritismo que hoje a domina, quão vastos seriam os benefícios que a técnica moderna poderia trazer à terra, uma vez reconduzida a vida social ao seu verdadeiro fundamento, que é a sua conformação com a Revelação e a Lei Natural.

Além de outros temas de palpitante atualidade, eis os amplos horizontes que o Revmo. Padre Julio Meinvielle abre aos nossos olhos nesses proveitosos «Conceitos Fundamentais da Economia», mais uma obra de valor que devemos à incansável atividade e à competência desse culto e intrépido ministro de Deus.