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ANJOS E DEMÔNIOS

Paulo Corrêa de Brito Filho

No último número de "Catolicismo" (1), comentávamos o fato de que, para muitos católicos de nossos dias, o inferno é um dogma esquecido: dominados pelo respeito humano, julgam "prudente" deixar no olvido essa terrível verdade. Mostramos como é diferente a atitude da Igreja. E, seguindo-Lhe o exemplo, procuramos colaborar para tornar mais viva nos espíritos a salutar lembrança dos castigos eternos. Para isso, relatamos algumas revelações particulares em que foi dado a Santos ou a almas piedosas ver o reino das trevas.

Trazemos agora o precioso testemunho de uma insigne mística italiana do século XIV, a respeito das realidades da vida futura. Pena que tão grande Santa não seja mais conhecida entre nós, e que suas visões impressionantes não sejam mais divulgadas em nosso meio. Por isto mesmo, julgamos oportuno contar alguns fatos de sua biografia, como complemento das considerações que fizemos no artigo anterior.

DE NOBRE ESTIRPE ROMANA

Nasceu a Santa em 1384, em Roma, filha de Paulo de Buxo e Giacobba de Rofredeschi, ambos pertencentes a nobres estirpes. Desde menina, demonstrou ardente piedade e vivo desejo de manter-se virgem. Seu confessor, porém, aconselhou-a a não resistir às instancias dos pais, que desejavam uni-la a Lourenço Ponziani, jovem de nobre família romana. O casamento não diminuiu o fervor e o espírito de penitencia de Francisca, que procurou adaptar os exercícios de piedade e as mortificações ao novo estado de vida.

Logrou associar sua cunhada, Vanozia, a seus anseios de perfeição. Uma questão, porém, não deixava de preocupar as duas santas mulheres: como conseguir o recolhimento desejado, sendo casadas? Para tanto, prepararam na parte superior da casa, num recanto onde raramente havia gente, um pequeno oratório. E, na extremidade do jardim, aproveitando antigas ruínas, formaram uma espécie de gruta. Sempre que se viam livres dos afazeres domésticos, passavam horas inteiras a rezar, na gruta durante o dia, à noite no oratório.

Santa Francisca não se contentou em praticar a caridade, de modo exímio, com relação aos parentes e criados. Sua virtude transbordou para fora do lar, procurando os doentes mais repugnantes dos hospitais, a fim de curá-los e consolá-los. Tanto este piedoso mister, quanto a assistência aos pobres da cidade foram exercidos pela Santa com uma regularidade heroica.

Lourenço Ponziani bem cedo percebeu o tesouro que a Providencia lhe havia concedido na pessoa de sua esposa. E teve o mérito de compreender que uma alma assim privilegiada deveria ter liberdade para se dedicar inteiramente ao serviço de Deus, apesar dos deveres impostos pelo casamento. Chegou mesmo, na última fase de sua vida, a aceitar o convívio com ela em continência perfeita.

"O ARCANJO LHE ERA TÃO FAMILIAR..."

Como bem acentua Ernest Hello em sua "Physionomie des Saints", a vida de Francisca Romana se resume numa palavra: a visão. Viver para ela foi ver, por seu peregrinar terrestre não era senão uma aparência, em face do contato permanente com realidades mais altas.

Um dos confessores da Santa, o Cônego João Mactheoti, deixou-nos preciosa biografia de sua penitente, cujas passagens principais foram comprovadas juridicamente no processo de canonização.

Entre as 97 visões que ali se narram, merece especial menção a de seu Arcanjo protetor. Certa noite, estava a Santa em seu quarto, quando a deslumbrou uma luz esplêndida no meio da qual viu surgir, mais belo do que em vida, seu filho, Batista, falecido havia pouco tempo. Ao lado do jovem, estava um menino dotado de beleza ainda maior. Admirada no início, e depois inundada de consolação, a mãe pergunta ao filho o que fazia ele e onde se encontrava. Respondeu o bem-aventurado: "Nossa ocupação não é outra senão contemplar o eterno abismo da Divina Bondade, louvar e bendizer Sua Majestade com transportes de alegria e amor... Pois que desejais, ó mãe, saber em que lugar estou agora, sabei que me encontro no segundo coro da primeira hierarquia, entre os Arcanjos e associado a este menino que vedes. É ele muito mais belo do que eu, porque, no mesmo coro, está num grau mais elevado. É um enviado de Deus para vos consolar na vossa peregrinação, e será vosso companheiro perpétuo: noite e dia, tereis a consolação de vê-lo".

Realmente, a visão do Arcanjo acompanhou a grande mística até a morte. Como atesta o artigo 46 de seu processo de canonização, aquele puro espírito "pertencia ao segundo coro; não era o Anjo doméstico (da guarda) que é concedido a todos os homens para custodiá-los: este santíssimo Arcanjo, no entanto, era para ela de tal modo familiar, que dia e noite a assistia, aparecendo sob a figura humana de um menino de nove anos, vestido com uma túnica alvíssima, como a neve... Seu rosto era mais brilhante que o sol; de tal modo, que a privilegiadíssima Serva de Deus não podia olhar para sua face, embora percebesse plenamente a claridade da mesma" (2).

O artigo 47 do documento referido abre duas exceções a essa regra. Santa Francisca podia contemplar a face do Arcanjo quando conversava sobre ele com seu diretor espiritual, ou quando era perseguida e atormentada pelo demônio. Então as feições do companheiro angélico se tornavam ainda mais luminosas, e o espírito maligno, não suportando aquela intensa claridade, fugia confundido.

Muito se admiravam aqueles que, à noite, viam a Serva de Deus ler as Sagradas Escrituras sem necessidade de luz artificial. Podiam perceber, nessas ocasiões, certo esplendor junto a ela, diverso de qualquer luz conhecida, e proveniente do Arcanjo que a assistia.

Com frequência, era dado a Francisca Ponziani perceber maus espíritos dominando as pessoas que se aproximavam dela. Distinguia, assim, qual "o vício a que cada homem estava mais sujeito, e mediante o qual os demônios se apresentavam como senhores das almas..." (3).

"SEM ESPERANÇA, SEM INTERVALO, SEM REPOUSO"

Entre as visões da aristocrata romana, a do tártaro infernal é, certamente, a mais impressionante.

Segundo lhe foi revelado, um terço dos demônios não sai do abismo eterno senão com permissão especial de Deus, quando se apresenta ocasião de ferir a humanidade com grandes calamidades, a fim de castigar-lhe os pecados.

Os dois terços restantes estão espalhados nos ares e sobre a terra. É sentença comum que alguns demônios estejam tentando os homens na terra. Pode parecer estranho, contudo, que existam diabos disseminados nos ares, onde, conforme a revelação da Santa, desencadeiam saraivas, tempestades e outros fenômenos atmosféricos, com o objetivo de enfraquecer as almas, especialmente as apegadas aos vícios carnais, levando-as à inconstância, ao medo e à incredulidade. No entanto, os Santos Padres admitiam esse fato, afirmando Santo Agostinho que "o ar caliginoso é como um cárcere para os demônios, até os tempos do Juízo" (4). E São Tomás adverte que "aos demônios compete um duplo lugar de pena. Um em razão de sua culpa: este é o inferno. Outro, porém, tendo em vista a provação dos homens: e assim lhes compete o ar caliginoso" (5). Acrescenta pouco adiante o Doutor Angélico que, após o Juízo Final, todos esses espíritos malignos, juntamente com os réprobos, serão precipitados no abismo.

O Arcanjo Rafael acompanhou a vidente na visita ao inferno. À entrada, ela viu escritas as seguintes palavras: "É aqui o lugar infernal, sem esperança nem intervalo, onde não há nenhum repouso".

Esse reino de horrores está dividido em três partes, separadas entre si por grandes espaços tenebrosos. Na inferior, ou fundo do inferno, encontram-se os piores demônios, aqueles que pertencem, por sua natureza, à suprema hierarquia angélica, composta dos serafins, querubins e tronos. No meio, estão colocados os apóstatas da segunda hierarquia: dominações, principados e potestades. Finalmente, na parte superior, são atormentados os da ultima hierarquia angélica, a saber, as virtudes, os arcanjos e os anjos.

Imediatamente subordinados a Lúcifer, que é o patrono do vício do orgulho, distinguem-se três príncipes infernais. Em ordem decrescente de maldade, temos primeiramente Asmodeu, preposto ao vício da carne, que foi querubim. O segundo, Mamon — demônio da avareza — é um trono decaído. Por fim, Belzebu, antiga dominação, patrocina os vícios da idolatria, dos sortilégios e encantamentos.

Na esfera intermediária do inferno, sentado numa como que viga, Lúcifer — serafim revoltado contra Deus — domina sobre todos os espíritos malignos. Sua cabeça toca a parte superior de seu reino, e seus pés atingem a esfera mais profunda, estando ele assim presente nas três divisões do tártaro. Grandes chifres tornam ainda mais horrível sua cabeça, e deles jorram chamas potentes. Sua face, igualmente, expele fogos terríveis. Está ligado com cadeias ígneas no pescoço, nas mãos, nos pés e no meio do corpo.

Os réprobos que em vida tinham sido usurários foram mostrados à vidente pregados numa tábua candente e com a cabeça envolta em fogo. Alguns demônios derramavam em suas bocas ouro e prata fundidos, fazendo outro tanto nos buracos que abriam em seus corações. Depois, imergiam essas almas em caldeiras contendo aqueles mesmos metais derretidos, e iam alternando esses dois suplícios incessantemente.

Aos blasfemadores, diabos munidos de espetos ígneos arrancavam a língua, colocando-a sobre carvões ardentes, e simultaneamente lançavam-lhes brasas na boca, mergulhavam-nos em caldeiras cheias de óleo fervente, que também lhes era derramado pela garganta.

O Arcanjo Rafael esclareceu à Santa que, embora esses instrumentos de tortura não existam materialmente no inferno, os precitos sofrem como se eles lhes fossem realmente aplicados.

NÃO SEJAMOS SURDOS À ADVERTENCIA

Se Deus permitiu a sua grande serva presenciar tão atroz espetáculo, é porque tinha em vista tirar daí algum bem para nós. A lição é clara: se não vencermos as inclinações más, se não nos santificarmos, iremos fazer companhia àqueles demônios horrendos, e por toda a eternidade seremos atormentados, como já o são tantos réprobos, na medida de nossa culpa, e mediante castigos proporcionados ao nosso vício capital. Não sejamos surdos à advertência providencial: para escapar à suprema reprovação, sigamos generosamente as moções da graça divina, que é superabundante e jamais nos faltará para atingirmos o Céu. Digne-se Santa Francisca Romana, que viu o reino das trevas e tão bem discerniu as armadilhas diabólicas, ser nossa padroeira nessa luta contra o maligno e no ingente esforço da salvação eterna.

(1) «Um dogma esquecido» — Paulo Corrêa de Brito Filho — n° 110, de fevereiro de 1960.

(2) «I Processi Inediti per Francesca Bussa dei Ponziani — (Santa Francesca Romana) —(1440-1453)» — Biblioteca Apost. Vaticana, Città dei Vaticano, 1945.

(3) Ibidem — artigo 26.

(4) III, super Gen., ad litt.; Migne, P. L., 34, 285.

(5) S. Th., Ia., q. 64, art. 4, c.


VERDADES ESQUECIDAS

MEL PARA OS AMIGOS, FERRÃO PARA OS INIMIGOS

Na oração fúnebre de Filipe Emanuel de Lorena, Duque de Mercoeur, pronunciada em 1602, São Francisco de Sales faz este elogio do Príncipe:

Quem o viu maltratar ou ofender alguém? Seus criados testemunham que ele era a própria afabilidade e paciência. Quem é afável com seus criados o é muito mais com os outros. E, de fato, nunca empregou ele sua cólera senão na guerra, ou para manter o respeito e a honra que lhe eram necessários a fim de prestar os grandes serviços que o Cristianismo esperava dele; no que imitava as abelhas, que fazem o mel para os amigos e ferroam energicamente seus inimigos. - («beuvres de St. F. de S., Ev. et Prince de Genève et Docteur de l'Egl.» — Imprimerie J. Niérat, Annecy, 1896 — t. VII, Sermons, v. 1, p. 416).


Demônios em capitéis da Igreja Abacial de Vézelay (século XII). — Anjo no côro de Santa Cecília de Albi (século XI).