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COMO PÔDE O MUNDO ODIÁ-LO?

(continuação)

nenhuma objeção legítima, a nenhuma queixa sólida.

Pelo contrário, só deu ocasiões a que O adorassem e O seguissem. Entretanto, também Ele foi odiado, mais odiado até do que seus fiéis ao longo dos séculos. Como explicar isto? É que nos filhos das trevas há um ódio que se volta precisamente contra a Verdade e o Bem.

É pois inútil querer atribuir tudo a um mero jogo de equívocos. Estes têm existido. Mas não resolvem o problema.

* * *

Dirá talvez alguém que este ódio é bem simples de explicar. A Lei de Deus é austera. Quem não quer sujeitar-se aos sacrifícios inerentes à observância dela, desobedece e facilmente se revolta. A revolta por sua vez gera o ódio, especialmente o ódio contra a Verdade e o Bem. E está tudo explicado.

Não negamos que, na generalidade dos casos, esteja aí a raiz do ódio contra Deus. Mas para bem compreender o problema, é necessário não correr.

Todo pecado é uma ofensa a Deus. Mas há pecadores que conservam alguma tristeza do mal que praticam e certa admiração pelo bem que não fazem. Por isto, lamentam a vida que levam, aconselham outros a não lhes seguir o exemplo, e prestam honra aos que procedem bem. Desta atitude humilde provém, muitas vezes, que Nosso Senhor lhes concede grandes graças e eles voltam ao caminho da salvação.

Se só houvesse em Israel destes pecadores, não creio que Jesus tivesse sido perseguido, e ainda menos crucificado. Se desses fosse Caim, não teria matado Abel. Se todos os pecadores da História tivessem sido como esses, não teria ela registrado as horríveis perseguições de que há pouco falamos.

Como são, então, os pecadores que constituem as almas danadas das perseguições movidas à Igreja? Aqui está o problema.

* * *

O pecador entristecido e envergonhado de que tratamos não pode ser propriamente chamado um ímpio. Ele resvalará para a impiedade se de tal maneira se embotar no pecado, que venha a perder a tristeza de praticá-lo e a admiração pelos que exercem a virtude. Nascerá então daí uma impiedade de primeiro grau, por assim dizer, que redundará em indiferença pela Religião e pela moral. Ao ímpio deste gênero, só seus interesses pessoais importam. Tanto se lhe dá de viver em ambiente bom ou mau: desde que ganhe dinheiro e faça carreira, ou se divirta, qualquer coisa lhe serve.

Evidentemente, esta impiedade é muito censurável. Foram réus dela todos os que em Jerusalém assistiram a Paixão como meros curiosos. E os que através da História, até hoje, se julgam no direito de presenciar a luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas, sem tomar partido, como uma egoística "terceira força". Mas, ainda uma vez, gente desta, só por si, não teria praticado o deicídio.

* * *

Mas há almas que vão mais longe. Movidas pela sensualidade, pelo orgulho, por outro vício qualquer, levam a malícia tão longe, de tal maneira se identificam com o pecado, que chegam a só se sentir bem onde se lisonjeiam seus maus hábitos, e a não suportar nada que constitua censura ou até mero desacordo em relação a eles. Daí um ódio aos bons e ao Bem, aos paladinos da Verdade e à mesma Verdade, que lhes dá como que um ideal negativo. Voltaire o exprimiu muito bem em seu lema "écraser l'infâme" (o "infame" é o Verbo Encarnado!). Fazer disto um anelo de todos os momentos, o "ideal" de uma vida, eis o que é a quintessência da impiedade. Gente assim tem todos os requisitos para planejar, urdir e executar a perseguição. Se em Israel não houvesse gente assim, Nosso Senhor não teria sido crucificado.

* * *

Deus não nega sua graça a ninguém. Ímpios destes também podem converter-se, e de todo o coração. Contudo, cumpre acrescentar que, enquanto não o fazem, já têm nesta terra a mais importante característica dos condenados ao inferno.

Realmente, pensa-se em geral que os precitos, se pudessem, fugiriam todos para o Céu. Não é verdade. Eles têm tanto ódio a Deus que, ainda que pudessem livrar-se do fogo eterno no qual estão presos, não o fariam se tivessem para isto que prestar a Deus ato de amor e obediência.

É tal a força deste ódio. E é à luz disto que se compreende bem o que chamaríamos de ímpio de segundo grau.

Foi esta impiedade requintada a força motriz que animou a Sinagoga na revolta contra o Messias. Foi ela que moveu a luta dos ímpios contra a Igreja, contra os bons católicos, no decurso dos séculos.

* * *

Filhos das trevas... esses são os ímpios. Príncipe das trevas, este é Satanás. Que relação existe entre uns e outros? Judas era um filho das trevas. Diz-nos o Evangelho que o demônio entrou nele (cfr. Lc 22, 3). Sabemos pela Fé que "andam pelo mundo para perder as almas" espíritos malignos. Quando o demônio consegue realizar em uma alma sua obra completa, leva-a a este estado de impiedade. Reciprocamente, uma alma assim é campo aberto para as tentações do demônio. É fácil ver, pois, que tais ímpios são os melhores auxiliares do inferno na luta contra a Igreja.

* * *

SENHOR,

nesta hora de misericórdia em que consideramos vosso Corpo sacrossanto a verter por todos os lados vosso Sangue redentor, pedimos-Vos, pelos méritos infinitos desse mesmo Sangue preciosíssimo e pelas lágrimas de vossa e nossa Mãe, nos mantenhais muito e muito longe de qualquer impiedade: "não permitais que nos separemos de Vós", de todo o coração Vo-lo imploramos.

Por toda parte onde ímpios perseguem filhos da luz, e muito especialmente na Igreja do Silêncio, sede a força dos perseguidos, não só para que não desfaleçam, como para que se levantem, se articulem, e esmaguem vosso adversário. Pelo Imaculado Coração de Maria Vo-lo rogamos.

E já que à última hora ainda prometestes o Paraíso a um celerado, Senhor, pelos méritos de vossa agonia Vos suplicamos, em união com Maria, que vossa misericórdia desça até os antros ocultos da impiedade, a fim de convidar para as vias da virtude até vossos piores adversários.

E ainda por misericórdia, Senhor, confundi, humilhai e reduzi à inteira impotência os que, recusando os mais extremos apelos de vosso amor, persistem em trabalhar para destruir a civilização cristã e até – como se possível fosse – vossa Esposa mística, a Santa Igreja.


Comentário sereno a um texto violento

O Sr. Tristão de Ataide publicou no "Jornal do Brasil", de 10 de março de 1960, o artigo que abaixo transcrevemos.

Recomendamos a sua leitura, porque ele constitui um claro exemplo da intolerância do dogmatismo com que as pessoas propensas a uma perigosa tolerância doutrinaria defendem suas opiniões pessoais, e agridem quem delas discrepa.

"Suas opiniões pessoais", dizemos, pois o jornal que o Sr. Tristão de Ataide com tanta violência agride, não é acusado por ele de qualquer erro na Fé ou na moral, mas simplesmente de mau gosto e espírito retrogrado, isto é, de ter um gosto artístico diverso do de S. Sa. e de apresentar aspectos que ele julga obsoletos.

Como se verá pela leitura do artigo, refere-se este a uma publicação diocesana que, segundo o autor, difunde doutrina sadia em linguagem correta.

Dir-se-ia, pois, que é uma publicação benemérita.

Mas para o Sr. Tristão de Ataide ela é pior do que um pasquim imoral. Por quê? O Sr. Tristão de Ataide acha que os seus redatores são medíocres, sem gosto e antiquados. E, sentindo em si, ao que parece, o poder infalível de julgar nessas matérias, fulmina de público, com seu desprezo, esses infelizes companheiros de luta que oferecem à causa católica o modesto contributo de sua mediocridade.

Tempo houve em que, no trato entre jornalistas, os mais ilustres tinham como ponto de honra o disfarçar sua superioridade, para se colocar no nível dos menos conhecidos, e aplaudiam com elegância o trabalho probo, decente e apagado destes. Isto se chamava cavalheirismo. Mas o Sr. Tristão de Ataide vê o assunto com outros olhos. Bom gosto, só o dele. Talento, só com ele. Senso de atualidade, só o dele. E, inteiramente persuadido de ter o monopólio desses dons, julga-se no direito de exterminar a golpes de injuria quem discrepar dos dogmas que do alto de sua competência ele decreta.

Qual será o pobre Bispo ignorantão e obtuso cuja folha se tenha degradado a ponto de ser mais nociva às almas do que um romance imoral?

E qual será esta folha?

Aliás, o rude ataque do Sr. Tristão de Ataide não se cinge a uma folha: ele se refere a "essas publicações moralizantes..."

Moralizantes... retrógrados... Já se tem dito isso de nós. Caber-nos-á, assim, uma parte desses epítetos? Temos algumas noções sobre o que seja o bom gosto, e sobre a distinção que há entre o eterno e o efêmero. Porém, o autor do artigo, impreciso como de costume, não nos diz o que significam esses termos em seu dicionário. Ficamos, pois, sem saber se é para nós parte da diatribe. Quanto a mediocridade, esse é um apodo que se distribui hoje em dia muito largamente. Por exemplo, já se tem dito isso de livros do Sr. Tristão de Ataide. Ficamos portanto sem saber se, no conceito pessoal de S. Sa., somos tão medíocres assim.

Mas o que nos diz pessoalmente respeito pouco importa, e por isto nunca entraríamos em polêmica. Já em ocasiões anteriores, em que de outros lados se atacaram nossas pessoas, e não a doutrina da Igreja, mantivemos gostosamente o silêncio mais cordato.

Inflexíveis em doutrina, julgamos que é nossa obrigação sermos tolerantes ao máximo em matéria pessoal.

Este o conselho precioso da Imitação: "Ama nesciri et pro nihilo reputari" (I, II, 3).

Pomos assim, e com um largo sorriso cheio de bonomia, ponto final neste assunto, visto em seu aspecto pessoal.

Mas, há um aspecto doutrinário a notar no artigo, e quanto a este somos obrigados a tomar atitude.

Diz S. Sa. que um livro imoral mas belo é menos mau do que um livro sem valor mas contendo boa moral, pois pelo menos o primeiro deixa na alma um valor, o belo: "Um mau romance, de boa moral, é muito mais pernicioso do que um bom romance sem moral alguma ou mesmo com uma moral perniciosa. Deste ao menos se guarda a beleza, ao passo que o outro nos afasta do bem, por enjoo..."

A nosso ver, isto está errado. Pois os livros imorais, via de regra, não deixam também na alma do leitor a imoralidade? Santo Agostinho comparava os livros belos mas imorais a taças de ouro cuja formosura convida os incautos a beberem o veneno que contêm...

É uma objeção que fazemos com toda a firmeza, mas sem modificar o sorriso bem humorado com que apresentamos ao leitor estas considerações.


ESCREVE O SR. TRISTÃO PE ATAIDE

OS FALSOS AMIGOS

"Caiu-me, há dias, sob as vistas, uma dessas publicações diocesanas que se apresentam como a imagem perfeita do que deve ser a boa imprensa. E, realmente, do ponto-de-vista moral era modelar. Tudo o que ali estava podia passar pelo crivo do mais exigente moralista, sem que merecesse a mais leve censura. Mesmo do ponto-de-vista gramatical, eram mínimos os deslizes. Os pronomes estavam todos muito bem colocados. As gravuras eram todas muito edificantes. Os conceitos expendidos, muito consoladores. Não havia nada fora do seu lugar. Os adjetivos convencionais se encaixavam direitinho como peças de um puzzle. Crianças, adolescentes, moços, maduros e velhos podiam encontrar ali alguma lição sadia para um comportamento exemplar.

E, no entanto, o conjunto exalava um cheiro de mofo ou de naftalina, e por vezes até o dos sarcófagos. Entrava-se naquela pseudo literatura, altamente moralizante, como quem entra numa casa há muito desabitada ou abre uma gaveta ou um armário que há anos não vê a luz do dia. Não chegava a ser o cheiro do passado, tão tocante ou nostálgico. Era o perfume e o aspecto do ultrapassado. Aqueles bordados, aquelas roupas, aquelas gravuras, aqueles qualificativos, tudo dava a impressão de coisa enferma e gasta, não de coisa antiga e sempre nova. As coisas autenticamente antigas não envelhecem. A verdade não tem idade. Mas aquilo que sobrevive à sua própria gastura e pretende falar ao seu tempo com uma linguagem esquecida e anacrônica é como esses velhos de cabelos pintados, que só enganam a si mesmos.

Tenho mais medo do moralismo mofado do que do imoralismo sem talento. Se bem que o perigo máximo seja sempre a fusão da libertinagem com a inteligência. Foi mesmo o que, no Século XVII, provocou o surto do Jansenismo, isto é, do puritanismo católico. Quando esse falso puritanismo, porém, ou mesmo o mais autêntico moralismo, se veste com roupagem de outras eras ou se entrega às delicias do mais delirante mau gosto, então correm perigo, simultaneamente, a beleza, a verdade e o bem, as três graças platônicas. São três irmãs que raramente se encontram. E há mesmo, entre os modernos, uma tendência geral a considerá-las como irremediavelmente embalsamadas entre as múmias dos museus.

Nada de mais falso. Mas a reação contra esse falso juízo é que leva essas publicações moralizantes a efeitos absolutamente contraproducentes. Um mau romance, de boa moral, é muito mais pernicioso do que um bom romance sem moral alguma ou mesmo com uma moral perniciosa. Deste ao menos se guarda a beleza, ao passo que o outro nos afasta do bem, por enjoo... (grifamos).

Assim são essas publicações de boa imprensa, sem talento, sem gosto, sem graça, de um devocionismo barato e sentimental, solenes e perfiladas, cuja leitura é um convite ao pecado...

Já temos, felizmente, algumas publicações católicas que têm uma coisa e outra: a inteligência e a elevação moral, a arte viva em suas formas e a verdade perene dos princípios, como o Mundo Melhor, de São Paulo, ou essa revista das alunas do Curso Jacobina, do Rio, para citar apenas duas, e que não me pediram nem me sugeriram a menção...

Mas por outro lado, quando nos acontece baixar os olhos sobre essas publicações, que em nome da Moral entronizam a mais pedestre Mediocridade, temos o direito de dizer como um dos nossos maiores adversários: Meu Deus, livrai-me dos meus amigos, porque com os meus inimigos me arranjo..."


OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX

ENCERRA-SE UMA ÉPOCA

Fernando Furquim de Almeida

Em 1878 subiu ao trono pontifício o Santo Padre Leão XIII. No ano seguinte o novo Papa elevou ao cardinalato o Padre Newman. Assim, os dois homens que mais haviam influído na formação dos católicos ingleses do século XIX, Manning e Newman, eram cardeais da Santa Igreja e podiam pôr o prestígio da púrpura a serviço da propagação de suas idéias.

Em virtude de sua idade avançada, Newman foi autorizado pelo Pontífice a continuar residindo na Inglaterra, embora tivesse sido designado para a Cúria. Até sua morte, em 1890, dedicou-se ele aos estudos e a rever a sua obra. Legou à posteridade o fruto de toda uma vida consagrada à inteligência e assinalada pela glória de ter sido um dos fundadores desse Movimento de Oxford, de onde saíram os grandes convertidos que deram vida ao catolicismo inglês do século passado. O Cardeal Manning, mais ativo, continuava o seu profícuo apostolado. Sempre fiel à ortodoxia, sem velar as consequências dos seus princípios para captar simpatias, sem abrir mão de direitos da Igreja para fugir a dificuldades, cuidava com zelo e entusiasmo de formar os católicos e lançá-los ao combate. Desse modo ia restaurando em sua pátria a Religião verdadeira. Sua retidão, sua personalidade enérgica e seu apostolado infatigável acabaram por granjear a simpatia da opinião pública inglesa, apesar dos preconceitos protestantes, e lhe criaram uma posição de relevo na sociedade britânica, que nada ficava a dever à dos grandes políticos da época, como Disraeli e Gladstone.

Em junho de 1890, Manning completou 25 anos de episcopado, e grandes festas foram preparadas para celebrar o jubileu. Constituíram elas uma verdadeira apoteose. A alegria com que os católicos exprimiram seu reconhecimento ao Pastor, que durante um quarto de século os guiara com mão firme e segura, juntou-se ao aplauso de toda a nação ao grande inglês que elevara o conceito da Inglaterra perante a opinião mundial. Na sessão realizada em sua homenagem, no salão nobre do Arcebispado, o Cardeal entrou conduzido pelo Lord Mayor de Londres. O seu clero e o seu laicato, bem como os irlandeses, não regatearam louvores a uma vida tão cheia de trabalhos e triunfos. Respondendo aos irlandeses, o Arcebispo não pôde deixar de recordar o passado glorioso da terra de São Patrício. Depois de declarar que cada gota de seu sangue era inglês, e que amava a Inglaterra como filho de seu solo, continuou: "Quanto à Irlanda, eu não a amo só por ser aparentada com a Inglaterra, mas também por sua fé e pelo martírio que suportou".

Deu um admirável testemunho de si mesmo, ao responder ao Duque de Norfolk, que o saudara em nome dos leigos. Lembrou que tratara com muita gente e a respeito de muita coisa, e acrescentou: "É impossível que alguns de meus atos não tenham incorrido na reprovação de muitos ou desagradado pessoalmente a outros. Tudo isso, vossa afeição cobriu com o silêncio. Estando prestes a dar contas de minha vida a Deus, declaro não ter ofendido voluntariamente a ninguém". Pouco antes de sua morte, escreveu no diário esta frase impressionante: "Não tenho consciência de ter deixado perder-se uma pedra ou sequer um grão da verdade".

Os operários das docas de Londres associaram-se às comemorações enviando um donativo, resultado de uma coleta feita entre eles. Exprimiam assim sua gratidão pela interferência do Cardeal na célebre greve que vimos no artigo anterior. Comovido, Mons. Manning aplicou essa quantia na fundação de um leito de hospital para as vítimas de acidentes no trabalho. 0 seu prestígio nos meios operários levou o jornal protestante "Echo" a lamentar que a igreja oficial não tivesse homens capazes de conquistar igual popularidade, por seu devotamento sem limites à melhoria das condições de existência do povo.

Sentindo chegar a morte, o Cardeal Manning se preparou piedosamente para ela. Anotava num diário, iniciado em 1880, não só os pensamentos que lhe sugeriam as suas meditações, como também apreciações sobre os homens e fatos de toda a sua vida, o que revela cuidadosos exames de consciência. É por esse documento que sabemos que nenhuma outra cruz lhe pareceu tão pesada quanto a de ser combatido muito mais pelos católicos, sobretudo os de sua diocese, do que pelos inimigos da Igreja.

Manning morreu dezoito meses depois de Newman. Já desde algum tempo seu estado de saúde não lhe permitia a atividade prodigiosa de outrora, mas ele continuava a governar a diocese firmemente. Sua fraqueza acentuou-se no início de 1892, e a 13 de janeiro pediu a Extrema-Unção. No dia seguinte, Mons. Vaugham, que seria seu sucessor, celebrava a pedido do enfermo uma Missa ao lado de seu leito, quando o Cardeal serenamente entregou a alma a Deus.

Representantes da Rainha e do Príncipe de Gales, inúmeros dignitários eclesiásticos, todo o corpo diplomático, membros da aristocracia, personalidades das mais representativas e uma enorme multidão o acompanharam até o tumulo. À passagem do féretro, inúmeras pessoas se ajoelhavam e rezavam. A Inglaterra consagrava mais uma vez o apostolado do grande Cardeal Manning.

Um dos oradores que então exprimiram o pesar da nação disse que a morte dos dois purpurados encerrava uma época, e que outra iria começar. De fato, o desaparecimento dos dois homens que mais influíram na formação do movimento católico na Inglaterra encerrou no país o período- da reconquista dos direitos da Igreja, característica do século XIX. Com o século XX ia ter início o trabalho de consolidação.


NOVA ET VETERA

“A MÃE DA NATUREZA”

Plinio Vidigal Xavier da Silveira

Vendo a alegre e simpática fisionomia de um detento, o jovem visitante chegou a duvidar de que estivesse percorrendo uma penitenciaria. E menos ainda quis acreditar quando lhe contaram que aquele rosto jovial e aparentemente franco encobria um coração repleto de ódio e uma inteligência que premeditara crimes hediondos.

O estado de espírito com que aquela visita atravessou os portões do presídio está muito difundido em nossos dias. Ele existe no digno chefe de família que consente que seus filhos cresçam habituados a assistir espetáculos imorais, projetados nas telas de cinema e nos aparelhos de televisão. Ele existe na boa senhora que afirma que a educação moderna deve permitir às crianças o livre desenvolvimento de todas as suas tendências naturais. Ele existe na respeitável matrona que, ferrenhamente avessa, em seu comportamento pessoal, a certas novidades, não vê inconveniente em que seus netos assimilem os princípios morais (ou amorais) dos nossos tempos.

EXISTE O MAL?

O liberalismo é o pai desse estado de espírito. Ele parte do princípio de que o homem é naturalmente bom, nasce predisposto a praticar o bem, suas tendências naturais são boas. Ele desconhece o pecado original e a maldade humana.

Para o liberal tudo é bom, o mal moral não existe. Assim sendo, é natural que todos os homens só pratiquem o bem; é natural que a criança, entregue ao sabor de suas tendências espontâneas, trilhe sempre o caminho reto; é natural que os crimes sejam provocados por moléstias, e nunca pela própria maldade do seu autor.

Infelizmente, parece que Deus se enganou na criação, pois não fez o mundo segundo os moldes dessa miragem com que sonham os liberais. Ele permitiu que o mal existisse. A prova disso está patente na imagem de Nosso Senhor crucificado que se vê em cada lar católico. O liberal que vivesse por ocasião da Paixão acharia bons os membros do Sinédrio e os fariseus. Julgaria que só por um engano lastimável, devido às paixões da época, haviam eles chegado aos extremos a que chegaram. E acabaria, talvez, por ajudar a pregar os cravos da crucifixão.

A prova da existência do mal está nos crimes que enchem as páginas dos jornais; está na imprensa que explora sensacionalmente esses acontecimentos, sem tomar em consideração o dano que assim causa aos leitores; está em todos os que, com má fé comprovada, difundem o espírito de revolta igualitária tão frequente em nossos dias. Como o liberal interpretaria que tanta gente, movida às vezes por meros interesses pecuniários, sequer titubeie em fazer propaganda do crime, da inveja, da revolta?

A prova da existência do mal está na história dos mártires que precisaram enfrentar feras e sacrificar a vida na defesa de sua fé; está no encarceramento dos Cardeais Mindszenty e Stepinac porque quiseram antes servir a Deus do que aos homens; está no massacre de missionários que, em regiões rudes e incultas, difundiam a Verdade e a civilização; está na perseguição que nosso mundo neopagão move aos que têm amor à doutrina católica e são fiéis à Igreja. Mas, para o liberal, tudo isto foi e continua a ser provocado por lamentáveis enganos.

A INTRANSIGÊNCIA LIBERAL

Para o liberal nada existe de pior do que o espírito conservador, que ama a tradição e não tem a mania da novidade pela novidade; nada há de mais horrível do que a mentalidade do católico que permanece fiel a tudo quanto a Igreja ensinou através dos séculos, e vê com suspeita as concessões que muitos querem fazer, nesse particular, em nome de uma pretensa adaptação à realidade.

Para posições como essas o liberal tem um epíteto que considera o sumo da ofensa: intransigente. Assim, a mãe de família que impede que suas filhas se vistam de maneira menos modesta, é intransigente. Assim, o Sacerdote que não dá absolvição aos fiéis que persistem em frequentar os bailes imorais de nossos dias, é intransigente. Assim, o professor que exige de seus alunos todo o respeito e consideração a que a cátedra lhe dá direito, é intransigente.

E os liberais, que são condescendentes para com todo mal e para com todas as torpezas, são intransigentes para com a intransigência e para com os intransigentes.

A INCONSEQUÊNCIA LIBERAL

Conta-se — e o episódio é autentico, tendo ocorrido na capital paulista — que certa vez uma senhora idosa, uma dessas velhinhas que atraem naturalmente toda simpatia, foi levada perante o juiz para ser interditada: sofria das faculdades mentais. O magistrado, após longo interrogatório, diante das respostas claras e lúcidas que ia recebendo, já estava a ponto de repreender o neto que sujeitara a anciã, sem razão, àquela cena vexatória, quando perguntou: «Esse rapaz é seu filho?» A resposta veio pronta: «Sim, ele é meu filho, o Sr. é meu filho, todos aqui também o são, eu sou a mãe da natureza». E o juiz decretou imediatamente a interdição.

Isto faz lembrar a argumentação liberal. Se esquecêssemos que seu ponto de partida é o absurdo princípio da inexistência do mal, veríamos que dai ela segue logicamente até quase o fim, tirando todas as consequências que desse erro podem resultar. Se o mal não existe, todo comunista é bem intencionado, e devemos compreendê-lo e estender-lhe a mão; não há criminoso que não seja um desajustado que devemos educar; os hereges, os pagãos e os ateus têm sempre propósitos retos, e com todos eles nos devemos unir para trabalhar pelo bem da humanidade.

Mas, de repente, quando se referem aos intransigentes, os liberais os apresentam como pessoas intratáveis, contra quem todas as calúnias são verdadeiras; como homens orgulhosos, que se arvoram em defensores do bem e não são compreensivos para com a fraqueza humana; como espíritos estreitos com os quais é impossível cooperar.

E o mal, que o liberalismo não enxerga nos comunistas, nos criminosos e em tudo quanto há de pior na terra, esse mal que “não existe”, ele o encontra nos intransigentes. Com isso, toda a sua inconsequência se desvenda com a mesma clareza com que o juiz viu a demência da velhinha que, depois de tantas respostas lúcidas, se dizia “mãe da natureza”.