“Toda minha felicidade está em ser esposa do Coração de Jesus e Filha da Santa Igreja”
José Carlos Castilho de Andrade
Às santas mulheres que, ao terceiro dia, foram visitar o sepulcro do Senhor, o Anjo deu uma grave incumbência: “Ide ... e dizei aos seus discípulos e a Pedro que Ele ressuscitou, e eis que vai adiante de vós para a Galiléia. Lá o vereis” (Mt. 27, 7, e Mc. 16, 7). Cheias de alegria e de medo, a mãe de Tiago e Salomé partiram a toda a pressa, para dar a nova aos Apóstolos. “Mas eis que Jesus lhes saiu ao encontro” (Mt. 28, 9), e, depois de saudá-las, reiterou o encargo: “Ide, anunciai a meus irmãos, para que sigam à Galiléia, que lá Me verão” (ibid., 10).
Assim, essa notícia e essa ordem — cuja imensa importância não é necessário frisar — foram comunicadas ao Príncipe dos Apóstolos, não diretamente, mas por intermédio de almas piedosas, favorecidas com uma aparição. Assim o quis, em sua sabedoria, o Divino Fundador da Igreja.
Ao ser introduzido na sala de trabalho do Papa, para a audiência particular que Leão XIII lhe concedera, bem longe estava Mons. Doutreloux, Bispo de Liège, de imaginar que ia tomar conhecimento de um fato análogo ao que narram os Evangelhos.
“POR CAUSA DO QUE ELA NOS FEZ SABER”
Foi no mês de abril de 1899. Leão XIII, que contava então 89 anos de idade, assinalara seu já longo reinado com numerosas iniciativas destinadas a terem a mais profunda e benéfica repercussão sobre os destinos da Igreja.
Não terá sido, pois, pequena a surpresa do Prelado belga quando Sua Santidade lhe disse: “Vou praticar o ato mais grandioso de meu pontificado”. O Papa calou-se, então, parecendo recolher-se em seu íntimo, e depois de um momento ergueu-se para anunciar a Mons. Doutreloux que, em breve, consagraria o mundo inteiro ao Coração de Jesus. “Sabemos por revelação divina, acrescentou, que esse ato apressará as misericórdias que esperamos”.
E o Pontífice esclareceu como lhe fora feita a revelação a que aludia: “Há no mundo almas que recebem comunicações do Céu, e algumas vezes são elas transmitidas ao Papa em circunstancias tais, que é impossível duvidar que venham de Deus... Pois bem, foi o que se passou com referência à consagração do gênero humano ao Sagrado Coração de Jesus”.
Se, ao entrar no Vaticano, o Bispo de Liège estava longe de supor que o Santo Padre lhe reservava uma tal confidência, revelação ainda mais surpreendente aguardava o Conde Clemente Droste zu Vischering e sua esposa, a Condessa Helena von Galen, na audiência privada que lhes foi concedida no mês seguinte.
Recebendo-os com o afeto paterno a que faziam jus como representantes de antiga, ilustre e católica estirpe da Westfalia, Leão XIII pediu notícias de uma filha do casal que era, então, Superiora do Bom Pastor do Porto, em Portugal. “É uma alma privilegiada, exclamou, que tem luzes sobrenaturais”. Em seguida, comunicou aos atônitos visitantes que a iminente consagração do gênero humano ao Sagrado Coração fora decidida “pelas revelações que vossa filha Nos transmitiu”. E, tomando um tom de autoridade, encarregou-os de anunciarem a ela as solenidades programadas para o ato: “Escrevei-lhe tudo isso e dizei-lhe que tudo isso resolvemos por causa do que ela Nos fez saber, e que daí esperamos as mais abundantes graças para todo o mundo ... Oh!, neste momento Nós a vemos aí convosco, a Nossos pés! Agora fazei o sinal da cruz”.
DESDE OS QUATRO ANOS TEVE ARDENTE DEVOÇÃO À IGREJA
Maria Droste zu Vischering, a futura mensageira do Sagrado Coração, nasceu em Munster, capital da Westfalia, na festa da Natividade de Nossa Senhora do ano de 1863. Sua família paterna, pertencente à melhor nobreza do país, se distinguira na história da Alemanha desde o século XIII; no século XIX deu à Igreja o grande Arcebispo de Colônia, Clemente Augusto Droste-Vischering, chamado o Atanásio germânico por sua resistência à opressão da Igreja pelo governo de Berlim.
A Serva de Deus passou a infância no castelo de Darfeld, residência de sua família desde fins do século XVII. Sobre a porta principal do nobre solar lê-se esta inscrição: “Em Vós, Senhor, esperei: não serei confundido”.
Fiéis às tradições de piedade de seus maiores, os Condes eram excelentes católicos e educavam seus filhos na prática fervorosa da Religião: nessa época remota ainda não se sabia que é preciso deixar as crianças entregues a suas tendências “espontaneas”... Maria se destacava entre os irmãos por ser mais alegre, mais animada, mais folgazã do que todos. Para dizer toda a verdade, era também um pouquinho irriquieta: durante as aulas, sua preceptora tinha que fazer varias pausas de cinco minutos a fim de que a pequena, correndo para diante de um relógio e atenta a seus ponteiros, passasse o intervalo a pular e brincar.
Mas pouco a pouco Nosso Senhor a ia atraindo mais para Si. Concedia-lhe grandes consolações interiores nas festas litúrgicas. Desde os quatro anos — segundo as notas autobiográficas que ela escreveu no fim da vida, por ordem do confessor — favoreceu-a com a graça de uma ardente devoção à Igreja. O “Kulturkampf”, que começou em 1872, levou prisão e depois ao desterro o Bispo de Munster e quase todos os Religiosos que Maria conhecia; muitas paróquias ficaram sem Pastor: “pois bem — escreveu ela mais tarde — tudo isso avivava meu entusiasmo pela Santa Igreja”. — Exemplo oportuno, diga-se de passagem, para nós que vivemos em tempo de perseguições.
Aos onze anos, logo depois de crismada, começou a sentir a vocação para o estado religioso, pela qual já antes suspirava. “Guardava meu segredo de querer ser Religiosa, mas nem por isto me tornava mais ajuizada ... Do que mais me lembro naquele tempo é das festas da Igreja e de meus divertimentos inocentes com meus irmãos. Parecia então mais menino do que menina; achava que ninguém era mais feliz do que eu, e queria ser menino para fazer-me Jesuíta e poder trabalhar nas missões da África”.
Considerando com severidade extremada — como é costume dos Santos — as suas pequenas faltas infantis, a Serva de Deus afirmava no fim da vida que fora nesse período dos doze aos dezesseis anos que ela “mais ofendera a Deus”. E acrescentava: “Mas o Senhor não me abandonava; longe disso, trata-me sempre com a mesma misericórdia”.
TUDO NELA REVELAVA A NOBREZA DE SUA ESTIRPE
“A SS. Virgem — lê-se na autobiografia — foi-me sempre mãe carinhosa; muitos dos dias mais memoráveis para mim coincidiram com festas suas”. Foi no dia da Apresentação de Nossa Senhora, em 1878, que um sermão ouvido na igreja paroquial de Darfeld abriu uma nova fase na vida espiritual da Condessinha Droste-Vischering. O Divino Esposo serviu-Se desse meio para “fazer-me compreender mais claramente —são palavras dela — que me queria toda para Si e que me pedia meu coração”.
A partir desse “dia decisivo”, Deus começou a atraí-la de maneira diferente: “Mostrava-me mais a descoberto os mistérios de seu Sagrado Coração. Na comunhão e na exposição do SS. Sacramento, inundava minha alma com suas mais doces consolações”.
Não lhe faltavam tão pouco as ocasiões de aumentar sua devoção para com a Igreja. Entre essas ocasiões ela mesma inclui o contato que teve em Berlim com os deputados do Partido do Centro, que durante o “Kulturkampf” tinham lutado valorosamente pela causa católica. A esse propósito exclama: “Toda a minha felicidade, eu a cifrava em ser esposa de Jesus Cristo e filha da Igreja”.
Cinco anos depois do sermão de Darfeld, o Divino Mestre deu à jovem o primeiro anuncio da união mais estreita que queria ter com sua alma. Foi na capela do castelo: “Acabava de comungar, e unida intimamente com o Senhor me inebriava com as delícias de seu Coração, quando Ele me disse, não com a voz que soa aos ouvidos, mas com aquela outra que eu ainda não conhecia: Serás a esposa de meu Coração... ó Jesus, só Vós sabeis o que se passou entre nós naquele momento, e ninguém o compreenderá jamais”.
Nesse mesmo dia a Serva de Deus, recebeu aquele privilégio misterioso que refere em sua, autobiografia: “Jesus prometeu ficar em meu coração, permanecer em mim, não só com sua divindade, mas também com sua humanidade. De que modo, não o sei; o que sei é que desde então senti quase continuamente a divina presença: não vejo nada, porém sei que Jesus está ali, em mim e perto de mim”.
Também por essa época começou Nosso Senhor a dizer-lhe “palavras proféticas, breves e precisas”, relativas a ela mesma ou a terceiros.
Ao mesmo tempo, ia-se acentuando outra característica da fisionomia espiritual de Maria: “Nosso Senhor me chamava cada vez mais a caminhar pela via dos sofrimentos: eu ansiava, pois, por sofrer; compreendia que sofrer com Ele, por amor a Ele, era minha vocação tanto quanto estar-Lhe unida”.
Somente seus diretores espirituais, porém, sabiam o que se passava no íntimo dessa alma. Pois, dos 16 aos 23 anos, a castelãzinha, de Darfeld levou uma vida que, exteriormente, se assemelhava à de qualquer outra moça nobre bastante piedosa. Rezava, estudava, dedicava o devido tempo ao piano e ao canto, eram frequentes suas visitas aos pobres e doentes. Sobretudo, esforçava-se por propagar entre os habitantes de Darfeld a devoção ao Coração de Jesus.
Notava-se que ela se aplicava generosamente a “domar — como lhe recomendava o confessor — a vivacidade e impetuosidade de seu caráter, e a fazer-se prudente e submissa” (até o fim da vida precisou manter-se em guarda contra essa tendência de seu temperamento). Quanto ao mais, continuava alegre e gostava do ruído e do movimento. Quando oportuno, o alto grau a que chegara na vida mística não a impedia de fazer rir com alguma graça inocente. Uma de suas colegas do internato aristocrático em que a Serva de Deus passou dois anos, fez mais tarde esta observação pitoresca, que revela o esplêndido equilíbrio da personalidade da nossa jovem: “No pateo de recreio, ... ninguém corria mais do que ela, ninguém jogava a bola tão alto e tão bem como ela. Nisto, o sino anunciava o fim do jogo, ... e então a mais serena a mais tranqüila de todas era Maria”.
Seu biógrafo — de cuja excelente obra (1) extraímos os dados históricos deste artigo, descreve assim os dotes naturais da filha dos Condes Droste zu Vischering nos últimes anos que passou no século: “Alta, traços bem proporcionado, nariz um pouco aquilino, sobrancelhas arqueadas sob as quais brilhavam dois olhos formosos e expressivos; bem apessoada, inteligente e afetuosa, viva e jovial, distinta em tudo, a todos agradava, aos nobres e aos plebeus, às crianças, aos pobres e aos doentes: os grandes viam-na à altura deles, os humildes ficavam cativados pelo interesse que manifestava por quanto lhes dizia respeito. Numa palavra, tudo nela era encantador”.
A par disso, revelava uma inteligência lúcida, uma vontade varonil, afeita por natureza a mandar e á dirigir, e — coisa rara numa alma chamada às alturas da via unitiva — uma real aptidão para os negócios da economia e administração doméstica.
Era, enfim, uma verdadeira aristocrata, herdeira de um rico patrimônio de qualidades naturais adquiridas pelos nobres senhores e guerreiros de que descendia, e por eles transmitidas, de geração em geração até a Condessinha que o Divino Coração escolhera para sua esposa
“DEVES ENTRAR, DISSE JESUS, NO BOM PASTOR
Em 1888, na véspera da festa da Visitação, achava-se Maria na igreja de Darfeld quando este pensamento lhe cruzou a mente como um relâmpago, “Deves entrar no Bom Pastor”. Consultado, seu confessor não gostou da idéia, mas, três meses depois, deu sua aprovação.
Foi, assim, de modo extraordinário que Fräulein Droste-Vischering — que havia dois anos procurava uma família religiosa cujo regime de vida fosse compatível com sua saúde, que então começava a se tornar débil — viu-se chamada à Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor de Angers.
No século XVII fundara São João Eudes a Ordem de Nossa Senhora da Caridade, dando-lhe a regra de Santo Agostinho e exigindo de suas Religiosas o voto especial de trabalhar pela salvação das almas. Incutira-lhes, outrossim, uma singular devoção aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria. Dessa árvore frondosa é que nasceu, no segundo quartel do século XIX, o Bom Pastor. Sua fundadora, Santa Maria de Santa Eufrasia Pelletier, conservou integralmente o espírito do Instituto eudista, modificando-lhe apenas a forma. Destinou suas filhas de modo especial à reabilitação de jovens pecadoras arrependidas, à reforma das delinquentes, e à educação de meninas órfãs ou abandonadas.
Com a entrada nessa Congregação de vida ativa se acentua a grande singularidade dos desígnios de Nosso Senhor a respeito de Maria: conduzindo-a aos mais altos páramos da via unitiva, ao mesmo tempo quis que ela aplicasse intensamente as eminentes aptidões que lhe dera para o trabalho apostólico.
Tendo recebido o hábito em 1889, cinco anos viveu Soror Maria do Divino Coração — esse o seu nome em Religião — no Bom Pastor de Munster. A medida em que se multiplicavam as graças de união com Deus, crescia seu desejo de sofrer.
E esse desejo o Senhor o atendeu amplissimamente: “Sofria tentações horríveis — escreve ela a propósito do biênio de noviciado — desalentos, angústias de consciência, separação da família, dores físicas e morais, e, depois de tudo, sofria por não poder sofrer mais”. Parecia-lhe não ter vocação para o Bom Pastor; as ocupações exteriores perturbavam dolorosamente seu recolhimento. Nunca, porém, se deixou vencer, graças a seu perfeito espírito de obediência e às consolações que ao mesmo tempo recebia do Divino Esposo.
Quando sua alma se tornou mais forte, começaram a diminuir as manifestações de ternura do Sagrado Coração. Chegou assim a um estado de abandono semelhante ao de Jesus no Horto.
“QUERO SOFRER EM TI E SER FORMADO POR TI NAS ALMAS”
O ano de 1894 trouxe nova cruz para a jovem Religiosa. Uma decisão da Madre Geral transferiu-a para Portugal. Naquele país tão distante e tão diferente da sua Westfalia natal, ela deveria exercer o cargo de Superiora da casa do Porto.
Era ali, na velha e ilustre “Cidade da Virgem”, que se ia verificar plenamente o que nosso Senhor dissera, pouco antes, à sua esposa: “Deixa-Me operar e agir em ti como Me aprouver, pois só assim se cumprirão os desígnios que tenho a teu respeito. Quero sofrer em ti e ser formado e glorificado por ti nas almas. Faze irradiar minha amabilidade sobre o coração dos outros”.
O Bom Pastor do Porto ocupava uma antiga quinta da Rua do Vale Formoso. Suas vinte Religiosas se ocupavam de 78 asiladas.
A comunidade lutava com serias dificuldades financeiras. A primeira providência da nova Madre foi consagrar o convento ao Coração de Jesus. Em seguida, escreveu no início de seus livros de contas aquele brado de confiança que vira gravado na fachada do castelo de Darfeld: “Em Vós, Senhor, esperei: não serei confundida”. Logo começou a se manifestar de modo impressionante a assistência do Céu, através de esmolas que chegavam no momento adequado e na quantidade necessária. Ao mesmo tempo, a Serva de Deus valeu-se de suas admiráveis qualidades de administradora e de sua penetração em assuntos de economia doméstica. Desse modo, ao fim de quinze meses, dobrara o número de asiladas, e nada do necessário faltava a elas ou às Freiras.
No governo das Religiosas mostrou a Serva de Deus que sua missão de “irradiar a amabilidade do Coração de Jesus” não era incompatível com a severidade, quando esta se fazia necessária. Diz-nos o seu biógrafo que até o fim da vida conservou ela “aversão a tudo o que, mesmo de longe, parecesse duplicidade ou tibieza: não tolerava que se procurasse escusar uma falta cometida, acima de tudo era rígida com relação à obediência”. Quanto às asiladas, refere um contemporâneo que “para umas era o bom samaritano que derrama vinho e azeite nas feridas; para outras, o cirurgião que examina, corta e queima sem piedade”.
O zelo pela salvação do próximo levava, outrossim, a Madre a exercer um fecundo apostolado junto às pessoas seculares que, em número sempre crescente, a chamavam ao locutório.
AJUDANDO O SENHOR A CARREGAR A CRUZ DE PORTUGAL
Havia já dois anos que a nossa santa Religiosa residia em Portugal, quando começou a dolorosíssima enfermidade da medula espinhal que devia prostrá-la no leito, quase sem interrupção, durante o tempo que lhe restava de vida.
Nosso Senhor lhe manifestou, então, que “quando o Corpo místico da Igreja reclamava socorros por alguma necessidade geral ou particular, Ele costumava enviar sofrimentos corporais... a algumas de suas esposas, para que estas, com suas dores, O movessem a conceder as graças tornadas necessárias. Assim, a doença de Maria serviria especialmente para ajudar o Salvador a carregar a cruz de Portugal”.
Serviria também para acelerar o processo da união de sua alma com o Divino Esposo.
A santa Superiora — assim a chamavam na cidade — acolheu com júbilo essa moléstia que a obrigava à inação quase total e, portanto, lhe permitia entregar-se inteiramente ao convívio com o seu Amado.
Um ano decorreu, pois, numa maravilhosa intimidade com o Coração Sagrado. Di-lo bem esta carta de Maria ao confessor, que também revela seu espírito de obediência aos Superiores: “Às vezes as visitas de Nosso Senhor me enchem de tal consolação, que se ressentem minhas forças físicas, e por isto, como elas se repetissem muito nos dois últimos meses, roguei-Lhe que esperasse, para que eu não desobedecesse às ordens do Sr. Cardeal (o Bispo do Porto, seu Diocesano), prestando-me a coisa que me cansava. Ele secundou as ordens dadas”.
Ao cabo desses meses, o Senhor quis que sua escolhida voltasse à vida ativa, para fazer bem às almas e propagar a devoção ao Coração Divino.
Não lhe restituiu, porém, a saúde. Durante os dois anos que ainda viveu, a Madre teve que permanecer constantemente deitada (a última vez em que se levantou foi para cantar o “Magnificat”) e esteve dominada por uma paralisia quase total. Continuou, outrossim, sofrendo dores e indisposições que, ora mais, ora menos intensas, quase nunca deixavam de ser humanamente insuportáveis.
Agravaram-se, ao mesmo tempo, suas penas interiores.
"ENQUANTO O DEMÔNIO TRABALHAR, NÃO REPOUSAREI"
A exemplo do Salvador, agora que estava literalmente pregada à cruz é que Maria Droste-Vischering iria atrair mais almas para Deus. A todo momento ouviam-na exclamar: “O amor do Sagrado Coração sem espírito de sacrifício não passa de imaginação. Propagar o culto ao Sagrado Coração custe o que custar, eis tudo o que desejo! Enquanto o demônio trabalhar, não me permitirei um momento de repouso, ainda que só me reste um sopro de vida. — Sofrer por Jesus, sacrificar-me pelos pecadores, viver esquecida, são esses os meus únicos anelos”.
A jovem Superiora do Bom Pastor — tinha, nessa ocasião, apenas 34 anos de idade — retomou, pois, a direção geral da casa e os contatos com pessoas de fora.
Diariamente, ao meio dia, quatro Religiosas transportavam sua cama até o locutório, e a Serva de Deus ali permanecia até a tarde, atendendo a quantos a procuravam. Em certos dias não lhe sobrava tempo para almoçar. Homens e mulheres de todas as idades e condições sociais, inclusive Sacerdotes, recorriam a suas luzes. Cristãos fervorosos e pecadores inveterados pediam-lhe conselhos, faziam-lhe confidencias, solicitavam seu auxílio em alguma aflição, e com todos se realizava a promessa que o Coração de Jesus fizera à sua esposa: “Quem tratar contigo nunca se separará de ti sem que sua alma seja de algum modo consolada, aliviada ou santificada, ou sem que receba alguma graça, embora seja o pecador mais empedernido: e para aproveitar a graça, bastará que o queira”.
Seu influxo sobre as almas era por vezes fulminante. Em geral, porém — lê-se em sua biografia — “era antes por via de persuasão que ela agia”.
Nem a moléstia nem essa exaustiva, atividade exterior a impediram de continuar dirigindo perfeitamente o convento. “Esta boa Madre — dizia a Superiora de uma outra casa— fez em dois anos o que outras fazem em dez”. A pedido do Coração de Jesus, aplicou-se à construção de uma nova e ampla igreja, cujos planos ela mesma desenhou.
Ainda lhe sobrava tempo e ânimo para frequentes conversas particulares com as Religiosas, bem como, sempre que preciso, com as asiladas. Exceto nas crises mais fortes de sua moléstia, nunca faltou ao recreio diário da comunidade, no qual edificava a todas por sua alegria e vivacidade.
A santa Madre só não saia da cela nos dias em que se lavava o seu velho hábito remendado: por amor à pobreza, não permitia que lhe fizessem outro...
Assim se passaram os dois últimos anos de sua vida. “Ficaria mais doente se não trabalhasse”, respondia aos médicos que protestavam contra tanta atividade.
ALUSÃO MISTERIOSA À GUERRA ENTRE ESPANHA E EE. UU.
A Santa predileta da Madre Maria era Catarina de Siena. Admirava na intrépida virgem dominicana sobretudo seu zelo veemente pela causa da Igreja (2).
Tal como acontecera cinco séculos antes com a jovem irmã terceira, a Superiora do Bom Pastor teve que se desincumbir de uma alta missão junto ao Chefe visível da Igreja. Já aludimos ao fato. Consideremo-lo, agora, mais pormenorizadamente.
Em outubro de 1896, apresentou-se à esposa do Coração de Jesus uma “imagem interior” que lhe deixou a impressão de que se tramavam em segredo assaltos pérfidos contra a Igreja. Viu uma alcateia de lobos enfurecidos, e, ao mesmo tempo, uma voz repetiu a promessa de Nosso Senhor (cf. Mt. 16, 18): “Está edificada sobre a Pedra, as portas do inferno não prevalecerão contra Ela”. Pareceu-lhe que se tratava de maçons disfarçados em católicos militantes, e que Jesus lhe mandava prevenir a Santa Sé a respeito.
O confessor da Serva de Deus — a cujo juízo quis o Divino Mestre que ela submetesse todas as comunicações interiores que viesse a receber — não a animou a “dar conselhos a Sua Santidade, que já tinha seus conselheiros”. Maria limitou-se, pois, a rezar e oferecer seus sofrimentos para afastar o perigo que parecia ameaçar a Igreja. Por essa vez ficara ela dispensada da missão de mensageira entre Deus e o Papa, que repugnava vivamente à sua humildade.
Meio ano mais tarde, em junho de 1897, o Senhor ordenou-lhe uma ingerência ainda mais funda nos negócios da Igreja: a Superiora do Bom Pastor devia comunicar a Leão XIII o desejo do Coração de Jesus de que o mundo todo Lhe fosse consagrado, bem como anunciar ao Papa as graças que acompanhariam esse ato.
Obtida, depois de onze meses de espera, a autorização do diretor de sua alma, Maria escreveu a Leão XIII em junho de 1898.
Sabe-se que a carta chegou às mãos do Papa e o impressionou profundamente. Não se conhece, porém, o texto desse documento. Permanece por isso misteriosa a alusão que a Madre lhe faz nestas linhas que enviou a seu antigo confessor, o Abade beneditino de Seckau, em setembro do mesmo ano, logo depois de iniciadas as conversações entre a Espanha e os Estados Unidos para por fim à guerra pela posse de Cuba, Porto Rico e Filipinas: “A guerra hispano-americana fez-me sofrer muito: primeiramente por sua duração, até que obtive do Sr. Reitor (seu confessor de então) autorização para transmitir ao Papa uma comunicação de Nosso Senhor: logo depois de uma batalha perto de Cuba, que se julgou decisiva: como parecesse que ainda se prolongaria a guerra, sofri muito para alcançar do Sagrado Coração a paz. Ainda não está tudo concluído, porém me foi assegurado que à confiança corresponderá o êxito: consagração ao Sagrado Coração, desagravos, abandono e confiança, sofrer com Ele e por Ele”.
Como se vê, essas palavras obscuras parecem significar que Jesus teria estabelecido alguma relação entre a consagração pedida a Leão XIII e a conclusão da paz. O que não seria de admirar, dado o muito que favoreceria a Revolução, e pois prejudicaria a Igreja, o fato de a nobre pátria de tantos Santos levar a pior e seus domínios das Filipinas, Cuba e Porto Rico — derradeiras e importantes relíquias do império dos Reis Católicos — caírem em poder dos Estados Unidos, que eram, no mundo de então, o país de instituições e costumes mais infectados de liberalismo e igualitarismo. Bem compreendera, aliás, a santa Madre a importância religiosa dessa guerra: durante o conflito, ela “acompanhava nos jornais e no atlas, com sumo interesse, as operações militares; diariamente a comunidade, reunida na capela, rezava pela Espanha, invocando principalmente o Sagrado Coração de Jesus e Santo Inácio; às orações a Serva de Deus acrescentou os sacrifícios”.
O mistério que a carta ao Abade de Seckau deixa entrever merece a atenção dos historiadores. Esperemos que um dia se faça luz sobre ele.
DESTA VEZ O CORAÇÃO DE JESUS TINHA PRESSA
Seis meses se passaram sem que viesse resposta de Roma. Em dezembro, o Divino Esposo mandou que Maria escrevesse novamente ao Papa, reiterando o pedido da consagração e a promessa das graças que a acompanhariam. Pelo incremento que havia de tomar o seu culto, o Sacratíssimo Coração faria brilhar uma luz nova sobre todo o mundo. A Serva de Deus viu interiormente seus raios descerem sobre a terra, em fases sucessivas que correspondem, obviamente, a períodos históricos: “primeiro tenuemente, depois com maior intensidade, e por fim a modo de torrentes que inundavam de luz todo o orbe”.
Desta vez parecia que o Senhor tinha pressa, não queria mais que se retardasse a hora de suas misericórdias.
Em poucos dias o confessor deu sua autorização, a carta foi escrita e expedida.
Leão XIII recebeu-a a 15 de janeiro. Como acontecera com a primeira mensagem, sua leitura causou-lhe profunda impressão. E em fevereiro, antes mesmo que chegassem as informações que mandara pedir à Cúria do Porto a respeito da Madre, o Papa decidiu fazer a consagração que lhe era solicitada, fixando o ato para dali a um ano.
Na realidade, esse prazo — que não seria longo para ato de tal magnitude — foi reduzido para quatro meses. No dia 11 de junho de 1899, em soleníssima cerimônia na Capela Paulina, o Vigário de Cristo leu o ato de consagração do gênero humano ao Sagrado Coração; em união com ele, o mesmo fizeram os Bispos, em suas Catedrais, por toda a extensão da terra.
Estava, pois, realizado o que a santa Religiosa dissera ser vontade expressa de seu Esposo Divino. Mas ela acrescentara, na mesma carta (cujo texto, ao contrário da anterior, é conhecido): “Parece-me que Lhe seria agradável que se estimule a devoção das primeiras sextas-feiras por uma exortação de Vossa Santidade... Nosso Senhor não mo disse expressamente... porém acreditei perceber este desejo ardente de seu Coração, sem poder, contudo, afirmá-lo”. Em junho, Leão XIII fazia a Congregação dos Ritos exortar calorosamente os Bispos de todo o mundo a propagarem essa “prática muito recomendável, já em uso em algumas regiões”.
*
A Serva de Deus assistiu do Céu a esses acontecimentos. Três dias antes da consagração, à hora das primeiras vésperas da festa do Sagrado Coração, o Esposo chamou-a às núpcias eternas. Contava ela, então, 35 anos e 9 meses de idade.
Seu enterro serviu de ocasião para que todas as classes sociais da cidade lhe exprimissem o afeto, a veneração, a gratidão que tinham para com a “santa Superiora”. Trinta Sacerdotes estiveram presentes e — homenagem nunca vista no Porto — seis fidalgos carregaram o caixão até o cemitério.
Os documentos oficiais relativos à consagração não mencionam a intervenção da Serva de Deus. Mas, como indicamos, Leão XIII falou a diversos visitantes, com toda a clareza, da parte que ela teve no grande acontecimento.
Com isso, e com a divulgação de suas notas autobiográficas, a fama da nova flor de santidade do Bom Pastor ultrapassou os limites do Porto e as fronteiras de Portugal. Segundo testemunhas fidedignas, graças insignes, de ordem natural e sobrenatural, têm sido alcançadas por sua intercessão.
A causa de beatificação da Madre Maria do Divino Coração Droste zu Vischering está-se processando em Roma. Sem nos pretendermos antecipar ao juízo infalível do Vigário de Cristo, podemos pedir que ela nos obtenha a graça de imitarmos seu exemplo — tão oportuno para os nossos dias — de amor ao Coração de Jesus, unido ao amor à Cruz, de devoção à Igreja, intensificada pela perseguição que Lhe movem os seus inimigos.
1) “Emisaria de Cristo Rey — Sor Maria del Divino Corazón” — Luis Chasle, pbro. — nova edição castelhana — Publicaciones “Cristlandad” — Barcelona, 1950 (prólogo do R. P. Ramón Orlandis, S. J.).
(2) Cf. “Santa Catarina de Siena — O zelo pela Igreja me queima e me consome”; “Se desprezarem esta salutar humilhação, esmagá-los-ei sob minha cólera” — José Carlos Castilho de Andrade — “Catolicismo”, nos 78 e 79.