REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO EM 30 DIAS
(continuação)
civilizado, isto é, Paris. E depois, como acréscimo, foi dado a esse homem percorrer em viagem de propaganda o interior, no qual, ao contrário do que acontece na capital, se encontram as melhores reservas morais do povo francês.
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Procedendo por esta forma, ou seja, consentindo que se debilite a resistência da opinião anticomunista do Ocidente, a fim de obter vantagens para seu país, o Presidente Charles de Gaulle faz como um passageiro que, com o intuito de melhorar sua situação a bordo, consentisse que o adversário abrisse um orifício (um verdadeiro rombo, talvez melhor se dissesse) no casco do navio.
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De outro ponto de vista, a ação do chefe de Estado francês poderia ser comparada à de um governo que, para obter certas vantagens diplomáticas, aceitasse a visita de um político estrangeiro, sabendo embora de antemão que este iria disseminar por toda parte cápsulas contendo bacilos de cólera ou de peste. Pois outra coisa não é para as almas a propaganda comunista.
Como por ocasião da visita que fez ao Presidente Eisenhower, ou da que lhe fez o Presidente Gronchi, o tirano russo timbrou em fazer demagogia, exibindo aquele misto de vulgaridade, jocosidade, destreza, afabilidade e, paradoxalmente, também de insolência, que é próprio a seduzir a parte deteriorada e bolchevizável (não pequena, em todas as classes, infelizmente!) da opinião contemporânea. Exemplifiquemos.
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Logo ao descer do avião em Paris, Kruchev discursou, manifestando o desejo de boas relações econômicas com a França. A miragem de fazer bons negócios seduz e apaixona hoje em dia milhões de homens naquele país, como no mundo todo. Assim, o visitante foi escutado por muitos ouvidos bem predispostos. Mas ao mesmo tempo ele pediu intercâmbio cultural. O que quer dizer isto? O direito de mandar propagandistas de toda ordem à França, sábios, dançarinos, ou até ursos ensinados como este que está no Brasil.
Dar-vos-ei dinheiro. Deixai-me devastar as almas: é o sentido dessa proposta astuta...
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Todos notaram, quando Kruchev desceu do avião que o levava aos Estados Unidos, seu desembaraço: era um modo de agradar uma nação que aprecia acima de tudo, em matéria de maneiras, o “degagé” e a espontaneidade. Ao chegar à China glacial e reservada, poucas semanas depois ele se mostrou fechado e frio. Em Paris, desceu tímido: modo discreto de homenagear a elevação do ambiente francês, e de contrastar com a desenvoltura levemente desdenhosa dos turistas norte-americanos, que tanto choca na França. Demagogia...
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Em várias ocasiões, durante a visita, Kruchev atacou rudemente a Alemanha Ocidental. Esta atitude, do ponto de vista da diplomacia, é simplesmente insolente e selvagem. Quando um chefe de Estado visita outra nação, não tem o direito de aproveitar a oportunidade para empreender uma campanha de difamação contra os aliados ou vizinhos desta. Menos ainda tem ele o direito de interromper um discurso pronunciado em sua presença por uma alta autoridade local para protestar grosseiramente contra o fato de essa autoridade não falar tão abertamente mal do vizinho quanto o visitante desejaria. Foi, entretanto, o que Kruchev fez.
Essa invasão de hábitos bárbaros na diplomacia é um perigo para a civilização e a paz.
Mas assim costuma proceder o czar soviético em sua “política de paz”. Haja vista a insolência incrível com que tratou em Moscou o Presidente Gronchi. Por várias razões óbvias e uma não óbvia ele age desse modo. A não óbvia, pelo menos para alguns, é que quanto mais os costumes se rebaixam e degradam, tanto mais se prepara o mundo a ser bolchevizado.
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Outro exemplo dessa degradação sistemática.
Está na ordem natural das coisas que, quando se recebe um hóspede, se lhe dê o que há de melhor na casa.
Em consequência, os cardápios dos banquetes aos chefes de Estado visitantes sempre foram magníficos. O protocolo soviético aboliu isto, e salvas as ocasiões em que foi impossível evitá-lo, o “menu” e a lista de vinhos foram muito comuns.
Por que? Para acafajestar, nivelar, vulgarizar. É a civilização que vai morrendo em seus requintes, e a vulgaridade que vai subindo. Em suma, é o comunismo que vai impondo seus estilos e conquistando a humanidade.
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Vem agora um exemplo de cinismo.
O chanceler alemão von Brentano fez recentemente uma objeção decisiva à política soviética: enquanto às mínimas tribos da África se atribui o direito de escolher por plebiscito seus destinos, parte da Alemanha, a Polônia, a Tcheco-Eslováquia e a Hungria estão privadas de tal. E sobre elas pesa o jugo bolchevista em toda sua brutalidade.
Apesar disto, na França K. ousou falar em liberdade dos povos, em independência das massas, etc. A contradição é a mais flagrante possível. Aos espíritos retos ela causa horror. Mas para as camadas pré-bolchevizadas ou bolchevizadas esse cinismo fascina. Como sempre fascinaram os demagogos quando, para demonstrar seu poder, calcaram aos pés desabridamente todas as leis da decência e da compostura.
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O sangue dos húngaros martirizados não deixou, porém, de fazer ouvir seu clamor na França. A vergonha do ditador vermelho é tão flagrante a todos os olhos, que bastava ser desfraldada uma bandeira húngara para que isto fosse tido como um ultraje a ele.
Assim, numa casa fronteiriça ao Quai d’Orsay, foi preciso fazer retirar o pavilhão da Hungria que o morador respectivo ali hasteara. E é compreensível. Nada poderia incomodar mais a Caim, do que a visão de algo que lhe lembrasse Abel.
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Quando, passada a “procella tenebrarum” (Jud. 13) em que estamos, se fizer a história de nossos dias, há de ser reconhecido como uma glória do povo alemão o fato de que, esmagado pela derrota a que o arrastaram os facínoras nazistas, humilhado e dividido em consequência dessa derrota, reduzido pois a um mero fragmento de sua grandeza antiga, teve à sua frente um homem que, como Adenauer (o qual tem, aliás, defeitos não peque-nos), reivindicou a árdua tarefa de empunhar o gládio de Deus contra o anticristo soviético.
Kruchev caçoou dele por isto, e o difamou quanto pôde, é certo.
Por detrás dos sarcasmos e das injúrias transparecia muito visivelmente outro sentimento: o medo.
Há algo de mais glorioso do que um ferido de guerra a meter medo, com o único braço que de momento lhe resta válido, a um gigante que por sua vez faz tremer toda a terra?
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Se isto será para a Alemanha uma glória, será para todo o sempre uma tristeza para nós, católicos, a atitude do Cônego Kirr, deputado e prefeito de Dijon, que se dispunha, nessa qualidade, a receber Nikita Kruchev e a apertar com sua mão sacerdotal a mão do tirano tinta com o sangue dos mártires da Igreja do Silêncio.
Que o Cônego Kirr tenha declarado haver chorado quando leu as referências que o Sr. Kruchev lhe fez em seus discursos em Dijon, nos enche de consternação. E uma pergunta nos vem aos lábios: chora ele quando lê descrições das atrocidades levadas a cabo pelos asseclas do ditador? Chorou ao saber que em Siracusa Nossa Senhora derramava lágrimas pelos pecados deste mundo ( ), dos quais por certo um dos mais graves é a indiferença de tantos filhos da luz em relação aos progressos das trevas?
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Em compensação, os Anjos se alegraram no mais alto dos Céus quando o Exmo. Revmo. Sr. Bispo de Dijon proibiu o Cônego Kirr de receber o visitante bolchevista.
Teria o Prelado andado mal? Um leigo católico, pessoa conspícua da cidade, entendeu que sim. E publicou na imprensa um protesto, no qual lembrava que Nosso Senhor recomendou o perdão das injúrias e deseja que a pessoa esbofeteada em uma face ofereça a outra.
Como se não tivesse havido pecadores a quem o Divino Mestre increpou de frente seus pecados, e até fustigou!
Haveria então uma contradição entre os conselhos e os atos do Salvador? Não. Nunca. Mas pecadores há, que não se comovem com o perdão. Para a glória de Deus, para o bem deles e de todos, cumpre enfrentá-los.
E Kruchev é um destes.
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Se fosse necessário prová-lo, o próprio tirano o teria feito. Pois, pouco depois deste fato, em conversa com os jornalistas, fez o elogio de Nosso Senhor Jesus Cristo (que hon-ra para o Homem-Deus...) e acrescentou que, entretanto, não aceitava a máxima de voltar o rosto para outra bofetada, o que lhe parecia desarrazoado.
Como então esperar que a mansidão o comova? E o que fazer então? Deixar-lhe livre campo para praticar todo o mal que deseje?
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Não acreditamos, porém, que isto impressione o expansivo líder esquerdista católico a que aludimos. Há algo mais difícil do que reconduzir à razão quem, como o católico de esquerda, vive na e da contradição?
Dizem os telegramas que o Exmo. Revmo. Sr. Bispo de Dijon publicou uma declaração de que agira sob ordens da Santa Sé.
Se disseram a verdade esses despachos – e provavelmente S. Excia. terá pelo menos auscultado Roma antes de tomar atitude tão importante, e terá recebido o conselho de agir com energia – há nisto mais um título de glória para o pontificado curto mas já imortal do Santo Padre João XXIII, este Papa que é um dom de Deus para a terra.
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Estas considerações nos levam a comentar o episódio culminante da visita de Kruchev à França, episódio este que está todo ele na linha do reinado de Sua Santidade o Papa João XXIII. A velha Catedral de Reims, na qual Santa Joana d’Arc promoveu, por missão divina, a coroação do Rei Carlos VII, foi visitada pelo representante máximo de um regime a um tempo regicida e ateu.
Mas antes disto, num protesto simbólico, sublime em sua singeleza e em sua significação, o Clero da igreja histórica havia apagado as luzes e retirado para a cripta o SS. Sacramento. A visita, feita em densa penumbra, durou dez minutos...
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Há tanta força, tanta beleza neste episódio, que não podemos deixar de assinalá-lo comovidos.
(1) cf. "Há cinco anos em Siracusa...", Giocondo Mario Vita, CATOLICISMO, no. 92, de agosto de 1958.
ESCREVEM OS LEITORES
Sua Alteza Real o Príncipe Dom Duarte, Duque de Bragança (Casa de São Marcos, Coimbra, Portugal), em carta a nosso colaborador Dr. Otto de Alencar e Sá Pereira: "Os quatro exemplares do CATOLICISMO, que acompanhavam a sua carta de 19 de fevereiro, são de excelente leitura pela variedade e qualidade dos seus artigos e amplamente reforçam o alto conceito em que tenho o vosso jornal".
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General Rinaldo Camara, Porto Alegre (Est. Rio Grande do Sul): "Continuo a apreciar muito o seu magnífico jornal. Lastima é que não me tenham chegado os nos relativos aos meses de abril, março e dezembro de 1958. Já recebi os n.°8 de janeiro e fevereiro deste ano (1959)... Publicações como essa, de CATOLICISMO, são raras... e preciosas".
FILOSOFIA DA HISTÓRIA
OU GNOSTICISMO DA HISTÓRIA?
Atanasio Aubertin
Em 1957 saiu a lume um novo livro do Sr. Jacques Maritain (1), livro esse que encerra um curso sobre filosofia da história dado em seminários na Universidade norte-americana de Notre Dame.
Nesse trabalho, o autor procura formular sua concepção da filosofia da história à luz de teses já conhecidas, que encontramos no "Humanisme Integral", “Du Regime Temporel et la Liberté”, "La Personne et le Bien Commun", "Christianisme et Démocratie", "Man and the State".
Mas, "On the Philosophy of History" não consiste somente em teses conhecidas. Maritain apresenta nele algo novo, que ainda não tinha sido explicitado em suas obras anteriores, embora já se encontrasse em germe na ambiguidade e obscuridade do pensamento desse pseudo tomista. Queremos no presente artigo focalizar a atenção sobre esse aspecto do livro, que podemos resumir nos seguintes tópicos: a relação entre filosofia da história e teologia, o conceito evolutivo da história, e a relação entre natureza e graça.
Antes de entrarmos no assunto, cabe uma observação: certas suspeitas do Pe. Messineo (2) assim como certas conclusões do Sr. Cunha Alvarenga (3) parecem encontrar confirmação em "On the Philosophy of History.". Podemos dizer que este livro explicita mais ainda a existência de uma neurose dualista de sabor gnóstico perseguindo o pensamento maritainiano e consubstanciada nas distinções indivíduo - pessoa, espírito - matéria, cristandade - cristianismo, Igreja - Estado, graça - natureza, as quais possuem um sentido bem diferente no ensino tradicional da Igreja; este livro parece mostrar também que, na base dos erros de seu autor, existe uma concepção modernista da ordem sobrenatural.
A) Uma distinção entre filosofia da história e teologia da história que não pode subsistir
Dentro do contexto deste artigo não seria cabível uma análise crítica do conceito de filosofia da história de Maritain, já que, para isso, teríamos que enveredar pelo plano puramente filosófico, alheio ao escopo que temos em vista. A este respeito, apenas diremos que a formulação de filosofia da história, feita pelo filósofo francês, não pode ser aceita sem objeções do ponto de vista da teoria do conhecimento. O que nos interessa no momento é a relação que Maritain estabelece entre filosofia da história e teologia da história. Vejamos o que diz ele sobre esta distinção. Citemos o seguinte trecho: "Existe uma teologia da história, que está centrada no Reino de Deus e na história da salvação — uma teologia da história da salvação — e que considera os dois desenvolvimentos, do mundo e da Igreja, mas do ponto de vista do desenvolvimento da Igreja. E existe uma filosofia da história, que está centrada no mundo e na história das civilizações, e que considera os dois desenvolvimentos, da Igreja e do mundo, do ponto de vista do desenvolvimento do mundo. Em outras palavras, a teologia da história está colocada no centro do mistério da Igreja, enquanto considera a relação deste com o mundo; por outro lado, a filosofia da história está colocada no centro do mistério do mundo, enquanto considerado em relação com a Igreja, com o Reino de Deus no estado de peregrinação" (4).
Esta distinção é estranha. Sabemos pela Fé que o mistério do mundo se encontra nos planos de Deus realizados no Sacrifício do Calvário, o que significa que o mistério do mundo está também no mistério da Igreja; a história do mundo só tem sentido quando vista à luz da história da Igreja. Quando o Apóstolo São João descreve o Cordeiro de Deus abrindo o livro dos sete selos (5), ele nos mostra Jesus Cristo como Aquele que detém os segredos da história, que faz executar os planos divinos na história a partir do mistério do Calvário. Ora, como Jesus Cristo é a cabeça da Igreja, temos que o mistério do mundo está no mistério da Igreja. Em outros termos: o mistério da história do mundo e da Igreja é de caráter sobrenatural, e portanto só pode ser estudado à luz da Fé. Quer dizer: uma verdadeira filosofia da história só pode ser teologia da história.
A doutrina maritainista admite como legítima uma análise profana da história da Igreja, consubstanciada numa distinção especiosa. Isso se parece com a visualização modernista da história, condenada por São Pio X na "Pascendi", segundo a qual existe uma diferença entre uma Igreja da Fé e uma Igreja da história, um Cristo da Fé e um Cristo da história. Já podemos ver como essa distinção se parece com a conhecida distinção entre cristandade sacral e cristandade profana.
Santo Agostinho, em "A Cidade de Deus", não estabelece distinção dessa ordem, e faz o estudo da história em função da filosofia e da teologia simultaneamente, mostrando com isso que a história possui um sentido último que é de ordem sobrenatural. Por conseguinte, não há lugar para um estudo profano da história da Igreja.
Esta distinção maritainiana afigurar-se-á inocente se considerarmos que, na prática, o autor de "On the Philosophy of History" tem sempre em conta os dados da Revelação. Mas; acontece que essa distinção, estabelecida no plano teórico, diz respeito a uma concepção das relações entre ordem natural e sobrenatural que parece obedecer, em Maritain, a um contexto de ideias não ortodoxo. É o que teremos oportunidade de ver mais pormenorizadamente no correr deste artigo.
B) Conceito evolutivo de história, onde aparece a dialética de Hegel
O Pe. Messineo, analisando o estranho conceito evolutivo de história do "Humanisme Integral", faz o seguinte comentário: "E, no entanto, a filosofia de Maritain não se funda na dialética de Hegel, de onde a dificuldade de enquadrar essas afirmações de sabor dialético no seu sistema filosófico; nem acreditamos que seu historicismo possa ser reduzido ao sistema idealista de Benedetto Croce, da síntese dos contrários. Semelhanças externas, certamente, mas que fazem pensar" (8).
A perplexidade do ilustre Jesuíta é muito justa, pois Maritain se apresenta como tomista e, ao mesmo tempo, desenvolve uma teoria evolucionista da história com sabor hegeliano. Em "On the Philosophy of History" o sabor é acrescido do rótulo respectivo. É o próprio autor quem o exibe. O que parecia semelhança externa no "Humanisme Integral" e outros livros, não o é nesta nova obra. Nela se faz uma análise crítica do sistema hegeliano, em que corretamente se rejeita o idealismo e o apriorismo da metafísica do pensador alemão. Um filósofo de formação realista e católica poderia sem dificuldade aceitar essa crítica, se ela não terminasse pela aceitação do próprio mecanismo da dialética da síntese dos contrários. Deixemos Maritain falar: "Havia em Hegel, como em todo grande filósofo, uma intuição básica que diz respeito à experiência, à realidade, e não simplesmente aos entia rationis ou entidades de sua dialética feitas pela razão. E esta intuição básica tem sido descrita como a intuição da mobilidade e inquietação que são essenciais para a vida, e especialmente para o ser do homem, que nunca é o que ele é, e é sempre o que ele não é. Noutros termos, poderíamos dizer que é a intuição da realidade como história, isto é, como mobilidade, como movimento, como mudança, mudança perpétua" (7).
Parece claro: a metafísica idealista de Hegel ("as entidades de sua dialética feitas pela razão") é rejeitada, mas subsiste uma intuição básica, que é a própria dialética da síntese dos contrários ("intuição da realidade como mudança perpétua"). Mais adiante, o autor dá os ingredientes que completam o rótulo. Vejamos como esse pseudo tomista ingere a pílula da dialética hegeliana. Maritain faz passar a Ideia de Hegel pelo filtro de sua filosofia-alquimia, de onde extrai a tal intuição básica com o seguinte raciocino: "Estas ideias históricas - formas imanentes no tempo, por assim dizer - pressupõem a natureza, o ser das coisas e o ser do homem, não têm nada a ver com a Ideia hegeliana e os processos autogeradores da lógica crítica de Hegel. Além do mais, essas ideias históricas estão longe de constituir toda a história. Por admissão, se considerarmos a maneira pela qual essas ideias históricas atuam na história, pode-se dizer que cada uma delas, cada uma dessas formas imanentes no tempo, pode atingir seu acabamento final no tempo só pela provocação de seu oposto e negando-se a si mesma. Mas por que é assim? É porque o seu próprio triunfo exaure as potencialidades que a incoam, e ao mesmo tempo desmascara e provoca no abismo do real as potencialidades opostas. Aqui está uma interpretação que nada tem a ver com a alienação e integração dialética, mas que mostra, segundo me parece, que a história ofereceu a Hegel um tipo de material aparentado com sua filosofia geral" (8).
Em Hegel, a realidade se identifica com o vir-a-ser de uma Ideia absoluta que absorve toda a realidade numa espécie de panteísmo; essa Ideia, semelhante ao "todo transcendente" dos sistemas gnósticos, é intrinsecamente instável, estando sujeita a um evolucionismo que obedece ao seguinte processo: a Ideia se nega provocando seu oposto, que por outro lado, num momento seguinte, constitui uma síntese com a Ideia inicial; esta síntese é uma nova Ideia, que passa a se negar de novo, provocando uma nova Ideia-síntese, que vem a sofrer o processo novamente. Esta é a celebre dialética hegeliana, segundo a qual procuram alguns interpretar a evolução da história.
Conforme este esquema, como podemos ver, a história progride de modo linear, sem possibilidade de restaurações de estados e culturas passadas. Maritain rejeita a Ideia absoluta, mas aceita a dialética. Isto pode muito bem explicar seu conceito progressivo da história, contido na celebre lei da tomada de consciência.
A coletividade possui certas ideias, "formas imanentes ao tempo"; pela tomada de consciência, as potencialidades dessas formas são esgotadas, gerando formas opostas, as quais, por seu lado, contêm algo de positivo (a síntese) que perdura até serem esgotadas suas possibilidades, repetindo-se o processo dialético de modo ininterrupto. Mas não é isto que está contido na teoria maritainista da formação de uma cristandade profana? Vejamos. A cristandade sacral é constituída por formas cujas possibilidades vão-se esgotando com o tempo pela tomada de consciência, que vai gerando formas opostas, consubstanciando o espírito profano. Em outros termos, a sociedade cristã esgota suas energias gerando sua própria negação, que é uma sociedade profana. Mas a negação contém algo de positivo, resultado da refração das formas contidas na sociedade cristã; de onde a constituição da síntese: sociedade cristã-profana. A cristandade sacral da Idade Média negou-se pelo esgotamento de suas energias, gerando o espírito profano, que veio constituir novas formas de potencialidades, ou seja, a cristandade profana.
Este livro nos tira da perplexidade em que nos induzia o "Humanismo Integral", e nos dá plena certeza de que seu autor utiliza a dialética de Hegel. Maritain, filosofo tomista?
C) A razão apresentada como de natureza progressiva. Um trecho curioso do Sr. Maritain
Mencionamos, de início, invocando as conclusões do Sr. Cunha, Alvarenga, que o sistema maritainiano é de fundo gnóstico, o que está consubstanciado na dialética hegeliana utilizada por Maritain. Este último, quando critica Hegel, faz uma censura ao gnosticismo do filósofo alemão, o que não deixa de ser curioso. Citemo-lo: "O que ele (o historiador) repele na realidade não é a genuína filosofia da história, mas o gnosticismo da história — aquele gnosticismo da história levado por Hegel a supremas alturas metafísicas, mas que pode ser encontrado também, em outro nível bem diferente, num sistema tão completamente fascinado pelas ciências positivas e tão decididamente anti-metafísico, como o sistema de Comte.
"Filosofia espúria da história, eis, pois, que é o gnosticismo da história, no sentido mais geral desta expressão, e na medida em que ele é caracterizado pelos quatro pecados capitais que foram mencionados logo atrás" (9).
Ora, dado que a dialética hegeliana, como tal, não está incluída nesses quatro "pecados capitais" de Henri Marrou, o sistema maritainiano não seria gnóstico. Mas, este texto que transcrevemos não visaria apenas a salvar as aparências?
É pela adesão à dialética hegeliana que o Sr. Jacques Maritain, este "profeta" de tempos tenebrosos, nega toda e qualquer volta da civilização a uma forma tradicional desejada pela Igreja e que teve realização das mais perfeitas na cristandade medieval. Numa de suas obras, afirma ele categoricamente: "Eles (cristãos hegelianos ou maritainianos) sabem que uma civilização de inspiração cristã, se e quando se desenvolve na história, de nenhum modo retornará à Idade Média, mas deverá ser uma tentativa tipicamente diferente, de fazer o fermento do Evangelho levedar as profundezas da existência temporal" (10). Claro. Pela dialética da síntese dos contrários, a história é progressiva, desenvolve-se de modo linear, não podendo haver restaurações, portanto.
Como conseqüência da aplicação da dialética de Hegel à história, a razão e a moral devem ser vistas como em contínuo progresso. Isto se encontra no "Humanismo Integral" e é corretamente posto em foco pelo Pe. Messineo. Lemos em "On the Philosophy of History": "A razão é por si mesma essencialmente progressiva". E mais adiante: "Em outras palavras, nosso conhecimento das leis morais é progressivo na natureza". E ainda: "Penso que este progresso da consciência moral quanto a seu conhecimento explícito da lei natural é um dos menos questionáveis exemplos do progresso da humanidade. Permitam-me frisar que não estou apontando para nenhum progresso humano no comportamento moral... Estou apontando para, um progresso da consciência moral como conhecimento dos preceitos particulares da lei natural" (11). Ora, sabemos que nem mesmo o conhecimento da lei moral é progressivo, pois conhecer a lei moral é reconhecê-la como lei normativa que visa o bem do homem, e nisto, segundo o testemunho da história, não há progresso linear. É o que se acha contido no juízo de Pio XII, de que o pecado do mundo moderno está em ter perdido a consciência do pecado. Vale dizer que houve uma decadência no conhecimento da lei moral nos últimos tempos, pois o pecado embota a inteligência a ponto de ela não compreender o sentido da lei moral. Mas o Papa desconhecia as luminosas leis de Maritain, vivificadas pela filosofia de Hegel. Poder-se-ia objetar: Maritain fala de uma lei do crescimento do bem e do mal na história, a qual ele fundamenta numa parábola evangélica (12), e que parece também estar contida na seguinte passagem do Novo Testamento: "Aquele que fere, deixai-o ferir ainda; o que é impuro, que seja mais impuro ainda; o que é justo, que se justifique mais
(continua)