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GNOSTICISMO DA HISTÓRIA?

UMA SOCIEDADE CRISTÃ SÓ PODE SER SACRAL, COMO O FOI NA IDADE MÉDIA

(continuação)

ainda; e o que é santo, que se justifique ainda mais “(13). De acordo com este versículo, o mal, assim como a santidade, cresce até o fim dos tempos; isto não representa a lei do crescimento linear do bem e do mal? Não, e veremos porque.

Em primeiro lugar, o crescimento da santidade na história não é sinônimo do crescimento em santidade da coletividade: observemos que o texto inspirado se refere a indivíduos humanos. A sociedade pode involuir no conhecimento e na prática das leis morais, enquanto um número pequeno de homens se santifica mais e mais através dos tempos. Aliás, a história da Igreja mostra como a Providência suscita Santos de grande estatura em épocas de grande iniquidade. São Luís Grignion de Montfort afirma que os Santos dos últimos tempos - época da consumação da iniquidade - serão mais perfeitos que os dos primeiros séculos. Ora, Maritain concebe o crescimento do bem na história como próprio à sociedade toda e contido no mesmo crescimento do mal, pois, de acordo com a dialética, a tese carrega a antítese. Assim, por exemplo, os princípios da Revolução Francesa são vistos como um bem misturado com seu oposto, representado pelas violências contra a Igreja.

Além do mais, o Sr. Jacques Maritain concebe a razão humana como essencialmente progressiva; ora, sabemos pela Fé que, devido ao pecado original, ela tende, sem a ajuda da graça, mais ao erro e à decadência. A história dá testemunho em contrário a essa lei do crescimento necessário no conhecimento das leis morais. A história de Israel, por exemplo: o Rei Josias, tendo descoberto o Deuteronômio, até então escondido e esquecido por várias gerações de seus antecessores, rasgou as vestes para exprimir sua dor por ver quanto se tinham afastado da lei divina esses príncipes e o povo (14).

Observemos o seguinte: este poder progressivo da razão humana, centrado na dialética hegeliana, parece possuir uma relação de concordância com a teoria personalista de Maritain. Pois sabemos que, segundo ele, a pessoa, polo espiritual, tem um quê de sagrado; "as pessoas sobrepassam a ordem social e são diretamente ordenadas ao Todo transcendente" (15). Quer dizer: a razão humana, pertencendo à pessoa, só pode progredir, pois a pessoa tende diretamente para o Todo transcendente. Assim, a lei da evolução progressiva da história está em adequação com a sacralidade gnóstica da pessoa na concepção maritainista.

Vejamos agora mais alguma coisa sobre o personalismo e o espiritualismo deste pseudo tomista.

D) A dicotomia espírito-matéria. A pessoa pertenceria à igreja pneumática.

O Sr. Cunha Alvarenga, num de seus artigos em CATOLICISMO (16), mostrou que a distinção maritainiana indivíduo-pessoa possui uma estrutura filosófica platônica, e não tomista. Propomo-nos apontar como "On, the Philosophy of History" traz novos elementos para reforçar tal conclusão.

Segundo Maritain, os conceitos de indivíduo e pessoa, contrariamente ao que ensina São Tomás de Aquino (17), são "aspectos” (18) do ser humano, dois "polos” (19): o indivíduo é o polo material, que se encontra em tensão com a pessoa, polo espiritual. Neste ponto, queremos observar que este dualismo indivíduo-pessoa também apresenta parentesco com a dialética hegeliana. Para Hegel, a evolução da história é fruto da oposição entre a Ideia e sua negação; entre tese e antítese. Vale dizer: a tensão entre tese e antítese gera a evolução histórica. Ora, o escritor francês nos fala da tensão entre indivíduo e pessoa, onde o indivíduo é a razão de ser do mal, e a pessoa é o polo espiritual, "princípio de unidade criadora de independência e liberdade" (20), razão de ser do bem na sociedade. Assim, por exemplo, os princípios do igualitarismo da Revolução Francesa são um valor positivo, porque frutos do espírito, da tomada de consciência da pessoa, como já apontamos acima. A propósito de sua lei do crescimento do bem e do mal, estruturada sobre a dialética dos contrários, o autor de "On the Philosophy of History" se refere a essa tensão entre a energia criadora do espírito e o princípio de passividade da matéria, com as seguintes palavras: "E devemos dizer, do ponto de vista filosófico, que o movimento de progresso das sociedades no tempo depende desta lei do duplo movimento - que pode ser chamada, neste caso, lei de degradação por um lado, e lei de revitalização, por outro, da energia da história, ou da massa da atividade humana da qual depende o movimento da história. Enquanto o desgaste do tempo e a passividade da matéria naturalmente dissipam e degradam as coisas deste mundo e a energia da história, as forças criadoras que são próprias do espírito e da liberdade e que são sua prova, e que normalmente têm seu ponto de aplicação no esforço de poucos, constantemente revitalizam a qualidade desta energia". A seguir, diz: "Ela (a vida das sociedades humanas) avança e progride graças à vitalização ou, superelevação da energia da história emergindo do espírito e da liberdade humana. Mas, ao mesmo tempo, esta mesma energia da história é degradada e dissipada por motivo da passividade da matéria" (21).

Este trecho do livro que estamos considerando relaciona a tensão dialética da tese-antítese com a tensão espírito-matéria. Como a tensão espírito-matéria equivale à tensão indivíduo-pessoa, concluímos que há interdependência lógica entre a tensão indivíduo-pessoa e a tensão dialética tese-antítese. Vemos, assim, como a teoria do dualismo indivíduo-pessoa se encaixa de modo perfeito na "intuição básica" (7) de Hegel. Essa tensão entre espírito e matéria é de cunho platônico, pois, para Platão, espírito e matéria encontram-se numa oposição de incompatibilidade; tal oposição é típica na luta dialética entre tese e antítese e na concepção maritainiana da distinção entre espírito e matéria.

Acentuemos também que nos trechos citados o autor faz da matéria o princípio do mal. Como explicaria o pecado dos anjos? Ou será que ele admitiria nos anjos?

Isso tudo gera uma falsa espiritualidade. Vejamos o que Maritain entende por espiritualidade. Mostra-se pródigo em elogios ao Maatma Gandhi em seus livros "Du Régime Temporel et la Liberté", "Man and the State" e "On the Philosophy of History". Nesta última obra encontramos a seguinte referência àquele pagão: "Gostaria de frisar que Gandhi não foi só uma excepcional figura de profeta. Ele deve ser considerado como o fundador de uma escola de pensamento" (22). Ora, quem foi o Maatma? Um herdeiro nada original do pensamento bramane. Toda a sua teoria da não-violência é tão velha quanto a Índia, pois está baseada na antiquíssima doutrina bramane de que a matéria é má, a individualidade é má, o agir segundo a razão é mau, e o homem tem que se libertar disto pela passividade absoluta, a fim de poder imergir no Todo panteísta. Para o bramanismo, qualquer disputa, polêmica, luta armada, é um mal, pois é ação que deriva da individualidade, a qual deve ser destruída.

As simpatias de Maritain por um homem cujo "background" moral e intelectual é esse, são muito sintomáticas. Citemos uma passagem do livro que estamos focalizando. Lê-se ali, a respeito da essência da vida espiritual: "A pura essência do espiritual deve ser achada na atividade totalmente imanente, na contemplação, cuja eficácia peculiar em tocar o coração de Deus não perturba nenhum átomo na terra. Quanto mais perto se chega da pura essência do espiritual, tanto mais leves, menos palpáveis, e mais espontaneamente agudos se tornam os meios temporais empregados em seu serviço. E essa é a condição de sua eficácia" (21). Não é propriamente isto que a Santa Igreja considera como vida espiritual. "Atividade totalmente imanente" e que "não perturba nenhum átomo da terra" não é, em si, o que constitui a vida espiritual; isto é mais imaterialismo bramane do que doutrina católica.

São Tomás de Aquino ensina que o prêmio eterno dos Príncipes santos é dos maiores, porque o governo dos outros é mais difícil do que o difícil governo de si mesmo (24). Ora, isto significa que a temporal e materialmente pesada atividade de um Rei é atividade espiritual. A doutrina católica não identifica espiritualidade com imaterialidade pura. A defesa da Igreja por meio da espada é atividade espiritual sob certo título, assim como a atividade contemplativa o é sob outro. O espiritualismo maritainista apresenta sabor brâmane. Não é, pois, à toa que Gandhi é tão cultuado por Maritain e seus seguidores.

Esta fábula sobre espiritualidade contém, em germe um erro teológico. A tensão indivíduo-pessoa já sugere que o Sr. Jacques Maritain possui um conceito errado da ordem da graça. Vejamos que esclarecimentos nos pode fornecer ainda o "On the Philosophy of History".

Parece que seu autor identifica o dualismo natureza-graça com o dualismo temporal-espiritual. O fato de ele considerar a heresia igualitária da Revolução Francesa, "obra do espírito", como de "inspiração cristã", nos está sugerindo isto; mas deixemos tal assunto para a última parte deste artigo, e citemos o seguinte texto: "O teólogo da história observará que através do tempo, e apesar do impulso permanente destas sociedades (as igrejas heréticas e cismáticas) para a separação, em número sempre maior os que nascem em tais comunidades religiosas se tornam, por motivo de sua boa fé, isentos do pecado do cisma e da heresia, de modo que essas comunidades não deveriam ser chamadas de heréticas ou cismáticas, mas simplesmente dissidentes" (25). Uma coisa é questão relativa à boa fé, a qual se refere à vontade, outra é questão relativa ao cisma e à heresia, que antes de tudo diz respeito à ordem doutrinaria. Sabemos que um luterano não deixa de ser herege pelo simples fato de estar de boa-fé. Aquela afirmação absurda de Maritain tem uma explicação: os indivíduos destas religiões falsas não são católicos, mas a pessoa, ah!, pelo fato de estar "diretamente ordenada à beatitude" (25) pertence necessariamente à Igreja. Isso tudo não sugere que o indivíduo, não pertencendo à Igreja visível, se encontra ligado a uma pessoa necessariamente pertinente a uma Igreja pneumática (26)?

E) A CONCEPÇÃO MARITAINIANA DA ORDEM SOBRENATURAL. ESCLARECIMENTO DO NOVO LIVRO: MODERNISMO.

O Pe. Messineo, na crítica que dirige ao "Humanisme Intégral" (26), mostra que seu autor faz uma distinção entre Religião e civilização de que resulta ficar a primeira localizada fora do tempo e do espaço. Trata-se simplesmente de uma dicotomia idêntica à que Maritain estabelece entre indivíduo e pessoa, entre espírito e matéria. A distinção é uma separação. Este "leitmotiv" da dicotomia, da tensão entre contrários, se manifesta em todo o pensamento desse pseudo tomista, e vamos encontrá-lo sob a forma Igreja-corpo político em "Man and the State". Neste livro vemos esta dicotomia sugerindo a idéia da Igreja pneumática, a qual se apresenta mais claramente em "On the Philosophy of History". Em "Man and the State" se sustenta que o corpo político é uma entidade temporal visível, e a Igreja é atemporal e invisível no "mistério da graça e caridade vivificando as almas humanas, mesmo aquelas que pertencem ao corpo da Igreja sem o saber e somente pelo movimento interior de seus corações, porque vivem fora da esfera da fé explícita mas procuram Deus na verdade" (27).

O mundo, para Maritain, se distingue da Igreja numa distinção de separação; trata-se de uma dicotomia, um dualismo, na mesma linha dos dualismos que apontamos antes. O mundo, nessa teoria, possui um fim puramente natural; a Igreja, um fim sobrenatural; e nada tem este fim a ver com aquele. A união das duas ordens se faz nos corações. É pelos corações que as profundezas profanas do mundo são inspiradas evangelicamente. Quer dizer: o fim natural do mundo, permanecendo intrinsecamente natural, é sobre elevado pelos corações, ou - o que é a mesma coisa - pelas pessoas.

A Igreja fica longe do mundo, gravitando na órbita intangível dos princípios analógicos imutáveis. À guisa de satélite artificial da terra, emite a mensagem evangélica por um transmissor, e esta é captada de modo refratado na atmosfera do mundo, pelos corações humanos da cristandade profana. O mundo, nessa teoria, é apenas sobre elevado invisivelmente, em nada sendo modificado na sua estrutura profana.

Aqui aparece o conceito modernista da graça. Na sua estrutura social, como conjunto de indivíduos, o mundo é puramente natural, mas, na intimidade das pessoas, nos corações, ele é sobre elevado.

Sabemos que, para São Tomás, a graça (sobre natureza) está para a natureza assim como o ato está para a potência. Na doutrina tomista, chama-se ato a perfeição última de um ser. A graça é um ato sobrenatural que aperfeiçoa a natureza. Isto quer dizer que, na sociedade sobrenaturalizada pela graça, já não se pode distinguir um fim natural ao lado de um fim sobrenatural: a natureza sobrenaturalizada pela graça passa a ter um só fim, o sobrenatural, isto é, em toda esfera de atividade e costumes deve estar presente o espírito sobrenatural, à semelhança do católico militante que manifesta o estado de graça em seus pensamentos, palavras e obras.

Uma sociedade cristã só pode ser sacral, como o foi na Idade Média. A sobrenaturalização da sociedade tem que ser algo de atual, explícito, do contrário não há sobre-naturalização. Mas, isto significa, como já dissemos, que a sociedade sobrenaturalizada não possui um fim "puramente natural sobre elevado", mas passa a ter um fim sobrenatural. A Igreja na sociedade cristã, sociedade sacral, vive na sociedade, é visível, pois Ela é a origem da sobrenatureza que eleva a sociedade. Não existe, portanto, um fim profano cristão, como quer o Sr. Maritain. O conceito maritainista da graça é algo mágico, pois, segundo ele, a graça sobreeleva a sociedade sem modificá-la em sua estrutura. Ora, a doutrina da distinção entre ato e potência não conhece isto: sendo o ato perfeição de ser, explicita uma realidade; há algo de novo e profundo quando algo se atualiza: a intenção de escrever o artigo é muito diferente do artigo escrito. Assim, pois, a sociedade sobrenaturalizada tem que ser algo profundamente distinto de uma sociedade profana.

É um absurdo conceber-se uma sociedade sobrenaturalizada que permanece com uma estrutura puramente profana. A sociedade profano-cristã do Sr. Jacques Maritain é uma contradição. Por aí vemos como esse escritor se encontra longe da boa linha tomista. Sua concepção da graça é de sabor modernista. E isso nos leva ao naturalismo apontado pelo Pe. A. Messineo. Maritain, identificando toda obra do espírito com obra inspirada pela graça, está fazendo da graça algo imanente à natureza espiritual criada, o que não passa de naturalismo. Em suma, podemos dizer que a doutrina maritainiana gravita em torno de uma psicose dualista consubstanciada nas oposições espírito-matéria, pessoa-indivíduo, mundo-Igreja, natureza-graça, onde encontramos uma concepção imanentista e naturalista da graça, conforme o modelo da heresia gnóstica e modernista.

(1) Jacques Maritain - "On the Philosophy of History". Charles Scribner's Sons, New York, 1957.

(2) Padre A. Messineo, S.J. - "O Humanismo Integral", in CATOLICISMO, ns. 75 a 77, de 1957.

(3) Cunha Alvarenga - in CATOLICISMO, ns. 99 e 101, de 1959.

(4) "On the Philosophy of History", p. 38.

(5) Apoc. 4.

(6) Padre A. Messineo, S.J. - art. cit., in CATOLICISMO, no 75, de 1957.

(7) "On the Philosophy of History", p. 20.

(8) Op, cit., p. 21.

(9) Op. cit., p. 31.

(10) J. Maritain - "Man and the State". The University of Chicago Press, 1951, p. 159.

(11) "On the Philosophy of History", p. 10 e p. 105.

(12) Mt. 13.

(13) Apoc. 22, 11.

(14) 4 Reis 22, 11 a 13.

(15) J. Maritain - "La Personne et le Bien Commum". Desclée, 1947, p. 68.

(16) Cunha Alvarenga - "Jacob Boehme no Pensamento de Berdiaef e Maritain", in CATOLICISMO, no 101, de 1959.

(17) São Tomás de Aquino - S. T., I, q. 29.

(18) J. Maritain - "Du Régime Temporel et la Liberté". Desclée, 1933, p. 56.

(19) "La Personne et le Bien Commum", p. 27.

(20) Op. cit., p. 31.

(21) "On the Philosophy of History", pp. 46 e 47.

(22) Op. cit., p. 73.

(23) Op. cit., p. 71.

(24) São Tomás de Aquino - "Sobre o Reino", VIII, IX.

(25) "La Personne et le Bien Commum", p. 55.

(26) Padre A. Messineo, S.J. - CATOLICISMO, no 77, de 1957.

(27) "Man and the State", p. 151.

(28) "On the Philosophy of History", p. 128.

(29) São Tomás de Aquino - S. T., III, q. 8, a. 3.

(300 "On the Philosophy of History", p. 141.


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LIVRO DE UM APÓSTATA

Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira

Há alguns anos, um Religioso espanhol, o Padre Angel Carrillo de Albornoz, apostatava de sua Ordem — a Companhia de Jesus — e da Igreja, provocando grande escândalo em todo o orbe católico. Esse escândalo foi tanto maior quanto era elevado o cargo que o infeliz ocupara em Roma: Diretor do Secretariado Mundial das Congregações Marianas. Como é frequente em tais casos, a apostasia teve como causa próxima o pecado de impureza, e terminou com a adesão do novo Judas a uma dessas seitas protestantes que andam por ai...

Agora — segundo telegrama da U.P.I. —esse triste personagem acaba de publicar, sob os auspícios do Conselho Mundial das Igrejas, um livro intitulado "O Catolicismo Romano e a Liberdade Religiosa", no qual defende as surradas teses protestantes de união das igrejas, de tolerância religiosa e de liberdade onímoda para todos os credos. Focaliza de modo especial a atitude da Igreja Católica, afirmando que existe em seu seio uma corrente que se bate pela plena liberdade de todas as religiões. Diz, textualmente: "Não resta dúvida de que se abriram novos caminhos para a compreensão ecumênica com nossos irmãos católicos".

O Conselho Mundial das Igrejas é constituído por 172 seitas "ortodoxas" e protestantes. Vêm elas, há tempos, procurando unir as mais diferentes confissões e estabelecer no mundo inteiro os princípios de tolerância e liberdade religiosas. Poderia haver fato que demonstrasse com maior evidencia que são todas falsas? Com efeito, assim como a Igreja verdadeira apresenta quatro notas características — é una, santa, católica e apostólica — assim também as igrejolas falsas se distinguem geralmente por uma nota: são favoráveis à coexistência amigável e pacífica de todas as religiões.

Apenas a Santa Igreja Católica afirma que a Verdade é uma só, e que não há paz possível entre ela e o erro. Para os hereges, os princípios da fé são relativos. Quem, entre eles, admite a divindade de Nosso Senhor, por exemplo, apertará com um sorriso a mão de quem a nega, dizendo: "Não importa tanto saber se Jesus Cristo é Deus ou não; o que realmente importa é que eu reconheço a todo homem o direito de afirmar, sobre esse assunto, o que bem quiser".

Pois não é verdade que, numa reunião de teólogos protestantes que se celebrou há algum tempo na Inglaterra, só houve unidade de pontos de vista quanto à existência de Deus? Nem sequer a divindade de Cristo é ponto pacifico entre essa gente! ...

Mas voltemos ao lamentável livro do ex-jesuíta Carrillo de Albornoz, e reconheçamos, tirando daí uma lição útil para nós, que numa coisa ele acertou. Foi ao afirmar que há, entre os católicos, uma corrente que já não admite o princípio da intolerância religiosa.

Lá isso é... Há católicos que caíram nesse desvio. Mas, por isso mesmo, deixaram de ser filhos fiéis da Igreja, pois, ao longo dos últimos cem anos, os Sumos Pontífices têm lançado sobre esse erro, reiteradas vezes, o inexorável "anathema sit".


CALICEM DOMINI BIBERUNT

O Exército da França em Continência a uma Freira

Fernando Furquim de Almeida

Na transição entre seus estudos sobre os católicos ingleses no século XIX e tema congênere referente a outros países europeus, o Prof. Fernando Furquim de Almeida elaborou alguns artigos biográficos cuja publicação hoje iniciamos com prazer, sob epígrafe extraída do II Noturno da festa de Todos os Santos: Calicem Domini biberunt, et amici Dei facti sunt.

Se quisermos estudar as verdadeiras causas do esplendor do século XVII francês, será necessário investigarmos o ambiente que produziu o reinado de Luís XIV, possibilitando o desenvolvimento rápido da cultura fecunda que nele predominou, e a consolidação da França como a mais poderosa, a mais culta e a mais gloriosa das nações civilizadas de então. Esse estudo seria longo, complexo e exigiria, preliminarmente, um trabalho todo especial de restabelecimento objetivo dos fatos, pois o espirito revolucionário reinante em nossa época só registra e louva, no passado, o que já trazia em si o germe da Revolução. Não é esse o nosso objetivo. Queremos apenas recordar que a Contra-Reforma imprimiu ao século XVII um espírito tão profundamente católico que, para combatê-lo, os adversários da Igreja tiveram que usar de heresias do porte do jansenismo e do galicanismo, cujos últimos resquícios ainda hoje se encontram em alguns representantes do catolicismo na pátria de São Luís.

Esse espírito católico presidiu à formação do ambiente dominante na França daquele tempo e nos deu inúmeros Santos extraordinários, como São Vicente de Paulo, São Francisco de Sales e tantos outros. Tão extensa era a influência desse espirito, que a todo momento deparamos, nas mais diversas categorias sociais, com exemplos de virtude dos mais edificantes. Vamos relatar um desses exemplos, para que os nossos leitores avaliem o que legou a Contra-Reforma às nações que se mantiveram fiéis à Igreja, combatendo o erro protestante que seduziu tantas outras.

Uma camponesa constrói um hospital

Marta de la Bausse nasceu em Baugé, pequena cidade no atual Departamento francês de Maine e Loire. Seus pais, modestos camponeses, deixaram-na órfã muito jovem, com um irmão para educar. Profundamente piedosa, dedicou-se ela à tarefa que lhe fora imposta pela Providência, ao mesmo tempo que, movida pelo amor aos pobres nos quais via Nosso Senhor Jesus Cristo, concebeu o projeto de construir um grande hospital que os abrigasse nas suas enfermidades. Não possuindo absolutamente nada, confiando exclusivamente no auxílio do Céu, começou a pedir esmolas, e com o pouco que pôde obter em cidade tão pobre como Baugé, deu início à sua obra.

Os homens mundanos não compreendem a virtude e chegam mesmo a detestá-la, procurando impedir que ela seja praticada. Vendo desproporção tão grande entre os meios e o ideal de Marta, os "espíritos esclarecidos" da região puseram-se a persegui-la: tratavam-na de louca, riam-se de seu sonho e, quando não a maltratavam e cobriam de injurias, divertiam-se indagando do andamento do projeto. Imperturbável, a jovem sofria tudo calada e, fiel à sua vocação, ia levando adiante a construção com as esmolas recebidas dos que se compadeciam de sua pretensa loucura.

Mademoiselle de Melun, Princesa de Épinoy

Dez anos depois de iniciadas as obras, a capela e metade das paredes já estavam prontas. Acreditando que era um penhor para o futuro o que já conseguira, Marta dirigiu-se à cidade de La Fleche para pedir à Superiora das Hospitalárias ali estabelecidas algumas Religiosas que pudessem auxiliar o seu trabalho. A prudência humana repeliu o pedido e, infelizmente, a comunidade uniu-se aos homens do século para rir do projeto e da pobreza da visionária que o concebera. Havia, no entanto, no convento uma Freira conhecida como Soror de la Haie, que se interessou pela visitante e, depois de tomar todas as informações necessárias, decidiu, com anuência da Superiora, ir para Baugé ajudar a construção.

A Irmã de la Haie era na realidade Mlle. de Melun, Princesa de Épinoy, de uma casa nobilíssima aliada a todas as famílias reinantes da Europa. Chegara a La Fleche sob um nome suposto, levada pelo desejo de ser uma simples Religiosa.

Seus pais eram profundamente piedosos e deram aos onze filhos que tiveram uma sólida educação católica. Quando nasceu a futura Soror de la Haie, o Príncipe de Épinoy colocou-lhe no pescoço uma corrente com uma parcela da verdadeira Cruz, e sua mãe, Ernestina de Aremberg, mandou procurar dois pobres para serem os padrinhos da criança.

A fim de completar-lhe a educação, aos dez anos os pais internaram-na no Convento de Sainte Vautrude, de onde só saiu seis anos após. Para comemorar sua volta ao seio da família, o Visconde de Gand, seu tio, deu-lhe um marquesado real. Um ano depois Mlle. de Melun tudo abandonava para entrar incógnita no Convento das Visitandinas de Saumur, já então seu ideal era ser uma Religiosa desconhecida, razão pela qual, descoberta a sua identidade, retirou-se do convento e, acompanhada pelo Príncipe Alexandre, seu irmão, que também aspirava a uma vida humilde, foi para La Fleche e entrou nas Hospitálarias.

Infame campanha de calúnias

Marta de la Bausse recebeu em Baugé a Irmã de la Haie e o jovem Alexandre sem conhecer os seus verdadeiros nomes; embora a família de Épinoy fosse muito rica, entregaram-se os três à árdua tarefa de edificar o hospital com o produto das esmolas que recebiam. Deus abençoou o trabalho perseverante da camponesa e a humildade da aristocrata. Em menos de três anos Baugé tinha o seu hospital para os pobres, cuja administração coube inicialmente a Marta, como enfermeira, a Soror de la Haie, como servente, e ao Príncipe Alexandre, como sacristão.

Não podia o mundo suportar calado tão grande vitória de Deus. Mlle. de Melun tinha um porte aristocrático e, apesar da vida de austera penitência que levava, era extraordinariamente bela. Começaram certos habitantes de Baugé a caluniá-la, acusando-a de viver em pecado com Alexandre. Logo depois de pronto o hospital, ela ficou doente, e os caluniadores espalharam por toda parte que a forasteira escondia o resultado do seu mau comportamento. A vítima dessa infâmia limitou-se a instalar seu leito numa enfermaria comum, onde pudesse ser vista por todo o mundo. Nenhuma palavra de defesa, porém, foi pronunciada por ela ou por seus companheiros, nem o zelo com que se dedicavam aos pobres da cidade arrefeceu.

A surpresa do Marechal

Em 1652, o Marechal d'Hocquincourt acampou próximo de Baugé com o exército que ia submeter Angers à autoridade da Rainha-Regente. Um habitante da cidade teve uma desinteligência com um soldado e o matou. Em represália, o Marechal resolveu arrasar Baugé. Mlle. de Melun obteve uma audiência e implorou-lhe que não o fizesse; de nada valendo as súplicas da humilde Religiosa que ele condescendera em receber, revelou-lhe confidencialmente que era a Princesa d'Épinoy. Admirado de tanta virtude, Hocquincourt renunciou à punição projetada, mas exigiu, para guardar segredo sobre a identidade da nobre dama, que esta anuísse a que suas tropas lhe apresentassem armas.

No dia seguinte, o povo de Baugé viu, surpreso e sem compreender, o exército que pouco antes se dispunha a esmagá-lo, desfilar diante de Soror de la Haie, prestando-lhe honras de Princesa real.

Os habitantes da cidade passaram a ajudar o hospital da Religiosa que os tinha salvo, e o Marechal d'Hocquincourt espalhou por toda França que vira naquele lugarejo um exemplo raríssimo de virtude, embora, fiel à sua palavra, não dissesse a ninguém quem era a Irmã de la Haie.


NOVA ET VETERA

O Tradicionalista Eduardo Prado

J. de Azeredo Santos

De certo figurão dos primeiros tempos da Republica, disse Eduardo Prado que sua passagem por determinado posto teve a rapidez, mas não o brilho de um relâmpago. Morrendo aos 41 anos, e deixando atrás de si a fulgurante esteira de uma vida intensamente vivida, viajando, estudando, e levando para os salões, para as tribunas, para a imprensa, para os livros o resumo apressado de suas observações sobre os mais variados assuntos a que o impelia sua imensa curiosidade intelectual, o autor da «Ilusão Americana», esse ilustre representante da aristocracia rural de São Paulo, nos dá, a impressão de alguma coisa que passa não somente com a rapidez, mas também com o brilho de um raio.

Eça de Queiroz, que tão bem o retratou na figura do Jacinto de «A Cidade e as Serras», diletante que carregava às costas, como o próprio Fradique Mendes, vinte séculos de civilização, assim caracterizava sua obra literária: «Todos os seus livros são guerras — desde a primeira página ao primeiro frêmito, as ideias alçam o seu pendão, as ironias despedem a sua flecha, os argumentos brandem a sua clava, as citações clamam, as cifras silvam — e, na pressa e excitação da lide, tudo rompe, um pouco tumultuariamente, num arranque para avante, contra a coisa detestada que urge demolir!...» (do prefácio das «Collectaneas», vol. I, p. XXIX, São Paulo, 1904).

UM LUTADOR DESTEMIDO

Foi assim, com esse ímpeto guerreiro, e levado pelo seu amor ao Brasil, que ele lançou um brado de alerta aos seus compatriotas contra o perigo de uma indiscriminada tendência de imitação dos Estados Unidos, iniciada nos primórdios da era republicana.

Quando soube da vitória inesperada que obtivera em Pavia, foi felicitado pelo seu triunfo, Carlos V se limitou a responder: «Os cristãos não devem regozijar-se senão com as vantagens que alcançam sobre os infiéis». É um triste dever o que, por vezes, nos impele a combater os nossos próprios irmãos. Assim, tanto nos «Fastos da Ditadura Militar no Brasil», quanto na «Ilusão Americana», o católico, o monarquista, o tradicionalista Eduardo Prado cumpria um amargo dever de consciência. Fiel a seu Deus e a seu Rei, quem lhe pode lançar ápodos pelo fato de levar ao auge seu ímpeto combativo, quando estava persuadido de que se tramava a ruína, sobretudo moral, de sua pátria?

Estava certo de que o futuro lhe faria justiça. Passado o ímpeto jacobino, «ninguém duvidará então de que, quem escreve estas linhas, só atacou os dominadores do Brasil porque, como homem civilizado e de seu século — aborreceu a traição, amou a liberdade e detestou a tirania» («Fastos da Ditadura Militar no Brasil», p. 364, ed. de 1890).

UM BRASIL AUTENTICAMENTE BRASILEIRO

Em prefacio a uma recente edição de «A Ilusão Americana», procura-se insinuar que esse livro vale como uma denúncia dos métodos que fazem funcionar a economia capitalista no mundo hodierno. Nada mais falso. Se houve alguém de mentalidade arejada, infensa a qualquer modalidade de jacobinismo, de porque-me-ufanismo, ou de «petróleo é nosso», esse alguém foi Eduardo da Silva Prado. Qual era, por exemplo, sua opinião sobre o papel desempenhado pelo capital estrangeiro no Brasil? «Todas essas empresas (N. da R.: sobretudo inglesas e belgas), que enumeramos, representam milhões de libras esterlinas que nada, ou quase nada, rendem aos capitalistas. Entretanto, estes capitais aí estão frutificando para o Brasil, mantendo a facilidade de transporte em regiões que dela se aproveitam e dando luz e água às populações. E as empresas que dão alguma remuneração, de quantos benefícios não enchem o Brasil?» (p. 124 de «A Ilusão Americana», São Paulo, 1893).

Portanto, ao combater com tamanho ardor a mania que se instaurava no Brasil republicano, de tudo copiar servilmente da América do Norte — e sobretudo os defeitos que lá não faltavam — não pretendia esse brilhante espírito abrir um fosso entre os brasileiros e os seus irmãos de outras partes do continente americano e instituir uma cabeça de ponte por onde, no futuro, fosse fácil uma invasão do imperialismo socialista e europeu em nosso terra, pois que de mais odiosamente anti-brasileiro que o comunismo que em seu tempo já lançava as garras sobre o mundo? Seu desejo era construir um Brasil bem brasileiro, que, como ele, estivesse preparado para receber de braços abertos todo o contingente da ajuda cultural e econômica que nos viesse do estrangeiro, desde que fosse mantida a nossa independência política, cultural e econômica. Desde que não se tratasse de traduzir ou de simplesmente importar, mas de assimilar.

Fala-se hoje insistentemente em autenticidade. O que Eduardo Prado desejava é que o Brasil fosse autenticamente brasileiro, como de modo tão pitoresco se acha retratado na carta que lhe endereçou Fradique Mendes: «...no dia ditoso em que o Brasil, por um esforço heroico, se decidir a ser brasileiro, a ser do novo mundo — haverá, no mundo uma grande nação. Os homens têm inteligência; as mulheres têm beleza — e ambos a mais bela, a melhor das qualidades: a bondade. “Ora, uma nação que tem a bondade, a inteligência, a beleza (e café, nessas proporções sublimes) — pode contar com um soberbo futuro histórico, desde que se convença que mais vale ser um lavrador original do que um doutor mal traduzido do francês» (Eça de Queiroz, «Última carta de Fradique Mendes», p. 387 de «Últimas páginas», Porto, 1938).

De tudo isso Eduardo Prado tinha uma noção até mais clara que o autor de «A Ilustre Casa de Ramires», pois, além de brasileiro, se achava junto da fonte da verdade e de todo o bem, que é a Santa Igreja, da qual sempre se confessou filho submisso e foi defensor desassombrado, em uma época em que o laicismo mais descabelado era a moda.

PRESTEMOS-LHE NOSSA HOMENAGEM

Nesta passagem do primeiro centenário de seu nascimento, queremos prestar nossas homenagens a essa figura de pregoeiro da boa causa, cuja obra, fragmentaria e apressada, com todos os seus naturais senões, por partir de quem tinha muito de homem de sociedade e de «globe-trotter», está ainda à espera de uma análise mais detida e circunstanciada, para dela tirarmos proveitosas lições que nos ajudem a corrigir o roteiro deste grande Brasil que cada vez mais avança pelo mar tempestuoso das lutas políticas e sociais que empolgam o mundo moderno.