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VERBA TUA MANENT IN AETERNUM

INAUGURANDO SÍNODO ROMANO

Inaugurando o Primeiro Sínodo da Diocese de Roma, o Santo Padre João XXIII, no dia 24 de janeiro último, na Arquibasílica de São João de Latrão, pronunciou uma alocução de que destacamos os seguintes tópicos:

Primeiro Sínodo Diocesano de Roma: porque foi convocado

"... Permiti-Nos, veneráveis Irmãos e diletos filhos, dizer uma coisa que revelamos a poucos, e como que sob religioso segredo. Quando em Nossa humilde oração o Senhor fez-Nos brotar na intima simplicidade do coração a ideia de um Concilio Ecumênico, e modestamente falamos a este respeito com alguns, uma voz comovida sugeriu-Nos: "Santo Padre! • Bela ideia a de um Concilio Ecumênico; mas porque não pensar antes de tudo nas necessidades imediatas de Roma, com a preparação de um Sínodo Diocesano da Urbe, que é o centro da Cristandade e, de meio século para cá, ampliou as suas proporções passando dos 400.000 habitantes de 1900 para mais de dois milhões, conforme a estatística mais recente?"

. . . É o primeiro nos anais eclesiásticos de Roma, mãe dos povos cristãos, e é digno do maior respeito, já desde o seu primeiro anuncio. Abstenhamo-nos de julgar em tom menos favorável e cortês para a Urbe o fato de que a celebração de um Sínodo entra somente agora em sua historia, ao passo que há séculos e séculos se vêm celebrando e continuam a celebrar-se ainda Sínodos Diocesanos em todas as nações católicas do mundo, principalmente desde a publicação dos atos do Concilio de Trento.

... Longe estamos, porém, de admitir que a vida do Clero em Roma durante a Idade Média e nos séculos sucessivos, antes e depois do Concilio de Trento, se desenrolasse sine lege e um pouco a esmo.

... A experiência do passado posta a serviço das últimas exigências do mundo moderno fornecerá conselhos preciosos para relembrar as coisas antigas, indicar sabiamente o que é necessário fazer de novo e como fazê-lo bem, ampliar, elevar, tornar mais sublime a ação e a vitalidade religiosa; assim é que haverá um verdadeiro incremento de nossas energias cristãs, impregnadas, santificadas e exaltadas pela graça de Jesus.

Distinção e não separação entre Clero e fiéis no Sínodo

O Sínodo Diocesano que está na iminência de realizar-se é uma reunião de eclesiásticos, e só de eclesiásticos pertencentes ao Clero diocesano secular e regular. No momento em que as atividades do Sínodo tiverem início, a voz de um Prelado convidará todos os leigos a sair: Exeant omnes, como que para assinalar as demarcações nítidas na Igreja de Deus entre Clero e povo. Significa isto talvez uma fratura e separação entre Clero e fiéis, entre Sacerdotes e leigos?

De modo algum, absolutamente, nenhuma separação. Mas cabe recordá-lo aqui... Ao Clero compete uma função diretiva e santificadora de todo o corpo social (da Igreja), para o que é necessário um chamamento, uma vocação divina, uma consagração. O povo cristão é convidado à mesma participação na graça celeste. Mas a distribuição dessa graça, o Senhor Jesus, Verbo de Deus feito homem para salvar o mundo inteiro, confiou-a ao sacerdócio, à ordem sacerdotal expressamente instituída para o exercício desta altíssima função mediadora entre o Céu e a terra, para benefício e santificação do povo que toma o seu nome de Cristo".

A PESSOA DO SACERDOTE É SAGRADA; SUA VIDA DEVE SER SANTA

Na primeira sessão do Sínodo Diocesano de Roma, realizada no dia 25 de janeiro, o Santo Padre pronunciou uma alocução sobre o Sacerdócio católico. Ressaltamos nela as seguintes palavras:

“... A solicitude do Bispo por sua Diocese, além da preparação de boas ordenações de caráter disciplinar, consiste no esforço para tocar as vontades a fim de que se ponham em ação, e se renove tudo o que mostra sinais de esgotamento de usura, e tudo se nutra de energias novas.

O ponto central e mais elevado para este fomento de vigor e beleza espiritual é o Sacerdote, e no Sacerdote, a pessoa e a vida.

Pois bem, a pessoa do Sacerdote é sagrada; sua vida deve ser santa.

Fontes de inspiração antigas para as necessidades novas

Diletos Irmãos e filhos. Poderíamos ocupar vossa atenção com a amplitude de uma explanação doutrinaria patrística, ou inspirada em considerações de ordem e estilo moderno e mesmo moderníssimo. Preferimos poupar-vos isto e deter-Nos ante duas fontes de doutrina celeste, evangélica e eclesiástica, quais sejam, o ensinamento de São Pedro e de São Paulo em suas epístolas e, ao lado destes dois oráculos, os Cânones e Decretos do Concilio Tridentino, completados e ilustrados pelo preciosíssimo Catecismo Romano, ou Catecismo do Concilio Tridentino, publicado por São Pio V (1566) e reeditado pelo Papa veneziano Clemente XIII (1758-1769) . Este Catechismus Romanus, o Cardeal Agostinho Valerio, amigo de São Carlos Borromeu, o qualificava divinitus datam Ecclesiae, e a ocasião Nos é grata e dela Nos valemos — também em razão do título do volume, que honra Nossa cidade episcopal — a fim de ressaltar-lhe o altíssimo valor para o uso corrente da pregação sacra nas paróquias, e para quem tem pouco tempo para estudos profundos, bem como para quem, mergulhado neles, procura precisão teológica, dogmática e moral.

Caráter sagrado da pessoa do Sacerdote

... Para abordar nosso tema dizíamos, pois, que a pessoa do Sacerdote é sagrada. Como tal é constituída pelo rito solene da ordenação. O encargo primeiro e principal do Sacerdote é oferecer-se como hóstia imaculada para completar a obra de Cristo, Redentor do gênero humano. Desta união com Cristo que renova sobre o altar o Sacrifício da Cruz, diz bem o Concílio de Trento: Divina res est tan sancti sacerdotii ministerium — É coisa divina o ministério de um sacerdócio tão santo (Sess. XXIII, c. 2). Este caráter de consagração aumenta de dignidade quando se lhe acrescenta o poder conferido ao sacerdócio de perdoar os pecados: Quis potest dimittere peccata, nisi solus Deus? — Quem pode perdoar os pecados senão Deus? (Marc. 2, 7.

Pois bem, torna-se natural que esta oferenda divina e este exercício de misericórdia, de perdoar os pecados em nome de Jesus morto pelos pecadores e ainda hoje saudado, com São João Batista, como o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, sejam tanto mais agradáveis a Deus quanto mais inocente, mais puro, mais imaculado, mais distante do pecado e próximo do Céu for o Sacerdote que se oferece com Jesus e absolve em nome de Deus.

. . . Mas, que é esta aspersão do Sangue (mencionada por São Pedro no início de sua primeira epistola) senão uma evocação do sacrifício do Corpo e do Sangue para cuja celebração o Sacerdote de Cristo é consagrado? Expressão verdadeira e simbólica esta, que fez um doutor da Igreja, mais recente, escrever : Christus magna sacerdotum tunica — Cristo é a grande túnica do Sacerdote; isto é, a vida do Sacerdote deve ser toda penetrada da santidade de Cristo: Induimini Dominum Jesum Christum — Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo. São as mesmas palavras de São Paulo (Rom. 13, 14).

O exercício da caridade no mundo pode tornar-se tentação para o Sacerdote

. . . Ouçamos agora o próprio São Paulo. Em sua epístola aos hebreus (cfr. 5, 1-5) e na segunda a Timóteo ele exalta o sacerdócio dos Presbíteros escolhidos entre os homens e constituídos em favor dos homens para as coisas que dizem respeito ao culto de Deus, a fim de oferecer oblações e sacrifícios pelos pecados. Ensinamento que assume profunda gravidade quando ele declara que "ninguém que milita para Deus se embaraça com negócios do mundo, a fim de ser agradável a Quem o alistou" (2 Tim. 2, 4).

Sentença clara que, reafirmando implicitamente o caráter sagrado da pessoa do Padre, fixa os contornos de sua esplêndida fisionomia e indica os princípios fundamentais da santidade de sua vida.

Ah ! Ouvíssemos bem e sempre, nós, Sacerdotes do Senhor, estas palavras! E imitássemos o exemplo de Jesus Cristo que, aos doze anos, respondeu à sua Mãe e a São José, aflitos por havê-Lo perdido — justamente para dar uma regra aos seus Sacerdotes dos tempos vindouros: "Não sabíeis que devo ocupar-Me das coisas de meu Pai?"

É São Lucas que narra este episódio (2, 48-49) . E o mesmo São Lucas em seu Evangelho nos oferece outras páginas admiráveis acerca do desinteresse do Sacerdote pelas coisas terrenas e sua atitude de espírito em meio às vicissitudes deste mundo. O Padre não pode subtrair-se à proximidade imediata do mundo, principalmente se carrega as solicitudes mais pesadas do ministério pastoral, onde o exercício da caridade, que é grave encargo e dever, pode tornar-se uma tentação para sua alma sacerdotal.

Não basta ao Padre ser tão perfeito quanto um leigo perfeito

Lede, diletos filhos, nestes dias, todo o capítulo 12 de São Lucas, a que um exegeta da Bíblia — o Pe. Hetzenauer — sob o título geral "Institutio discipulorum et turbarum", faz seguir estes vários temas: "De sinceritate et animo impavido — De avaritia vitanda — De sollicitudine superflua — De vigilantia — De dispensatione fideli — De separatione hominum — De probatione temporis".

Ouvindo essas palavras de Jesus, que, como dissemos, se lêem no Evangelho de São Lucas, São Pedro, que estava presente, Lhe perguntou ingenuamente: "Senhor, é para nós que dizeis esta parábola, ou também para todos?" (Luc. 12, 41). O Senhor continuou seu discurso recomendando a prudência, a discreção, precisamente aos que têm as responsabilidades mais graves e que, como Pedro e seus companheiros, foram chamados por Deus ao árduo ministério. O que prova bem que o verdadeiro Padre, o apóstolo do Senhor, não somente deve ser perfeito no exercício das virtudes que também os leigos devem praticar segundo as exigências de seu modus vivendi, mas ainda tem que ultrapassar todos os outros e ser um exemplo luminoso, um motivo de edificação para todo o rebanho cristão, que muito justamente reclama para sua paróquia um Sacerdote santo e que por sua doutrina e costumes proporcione a todas as famílias as bênçãos celestiais, a paz, a concórdia e a santidade".


AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

Bens de alma na vida popular

Plinio Corrêa de Oliveira

O Museu Nacional de Arte Antiga, de Portugal, guarda entre outras preciosidades o Presépio de São Vicente de Fora, da autoria de Joaquim Machado de Castro, no século XVII. Apresentamos em nosso clichê um pormenor desse Presépio: os pastores vindos a adorar o Menino Deus.

Se bem que a intenção do escultor tenha sido a de representar gente do campo da Judéia, ao tempo do nascimento de Nosso Senhor, andrajosa como muitas vezes o eram no Oriente os pastores, todavia os tipos humanos, as fisionomias, os gestos, os modos de ser que fixou em sua obra correspondem a pessoas do ambiente que cercava o artista, isto é, do bom povinho do campo em Portugal, no século XVII.

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Ao considerar à primeira vista esta cena, um ou outro observador experimentará uma sensação de desordem. Estamos habituados às massas disciplinadas e sem alma das grandes cidades modernas, que vemos lotar silenciosamente os cinemas, ou atravessar sombria e apressadamente os cruzamentos das ruas, quando o apito de um guarda ou um sinal luminoso detém o transito dos veículos para as deixar passar. Essas multidões são sem alma e padronizadas até quando, à uma, batem palmas em grandes manifestações coletivas, como se fossem um só ente imenso em que se teriam dissolvido as pessoas como gotas de água no mar.

Nesta perspectiva, esse magote de gente causa estranheza. Todos, tendo ouvido a mensagem angélica, correm ao encontro do Presépio. Até o cão, no primeiro plano, está apressado. Mas em cada figura a nota pessoal é tão peculiar, que o grupo tem em seu conjunto algo de efervescente e caótico.

E com efeito cada rosto, cada modo de andar ou de correr, exprime uma reação inteiramente pessoal em relação à Boa Nova. Os dois rapazinhos da frente parecem simplesmente movidos de curiosidade. É a despreocupação real, e muitas vezes excessiva, de sua idade. Um camponês já mais maduro, com olhos dilatados e brilhantes pela alegria, e fisionomia inteligente, parece intuir com muito discernimento o alcance do grande acontecimento. Mais para trás, um velho com um chapéu de grande aba levantada, grita e chora de emoção. No fundo, um personagem de capuz e barba branca, a um tempo veloz e meditativo, se mostra profundamente impressionado.

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Cada alma, neste grupo de lúcidos analfabetos, é como um mundo interior do qual jorra a expressão de uma personalidade pujante.

Ignorantes, iletrados, eles não foram submetidos aos terríveis processos de padronização da civilização mecânica do século XX. Não têm o pensamento imposto pelos mesmos jornais, a sensibilidade modelada pelo mesmo cinema, a atenção subjugada o dia todo pela atração magnética do rádio e da televisão.

E isto nos faz lembrar o trecho admirável — e nunca assaz citado — de Pio XII sobre "povo e massa": "Povo e multidão amorfa, ou, como se costuma dizer, massa, são dois conceitos diversos. O povo vive e move-se por vida própria; a massa é de si inerte, e não pode mover-se senão por um agente externo. O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais - no próprio lugar e do próprio modo - é uma pessoa consciente das próprias responsabilidades e das próprias convicções. A massa, pelo contrário, espera uma influência externa, brinquedo fácil nas mãos de quem quer que jogue com seus instintos ou impressões, pronta a seguir, vez por vez, hoje esta, amanhã aquela bandeira. Da exuberância de vida de um verdadeiro povo, a vida se difunde, abundante e rica, no Estado e em todos os seus órgãos, infundindo neles, com vigor incessantemente renovado, a consciência da própria responsabilidade e o verdadeiro sentido do bem comum" ( Radiomensagem de Natal de 1944 ).